Com características do cinema de Buñuel, Luiz Alcoriza e Rogélio González despertam o mais intenso desejo assassino sobre a burguesia e o catecismo moralista.
Sem dúvida esse foi um dos melhores filmes que vi neste mês, e talvez neste ano. O Esqueleto da Senhora Morales (1960), está num entre-lugar muito gostoso, pois é algo ímpar mesmo dentro de seu próprio gênero: cine negro mexicano – um tipo de cinema dedicado às histórias criminais de espaços urbanos e personagens ambíguos. Um filme com senso de justiça sádico, munido de um poderoso humor perverso numa trama que balança entre Buñuel e os “irmãos” britânicos: Peeping Tom e Psicose, lançados no mesmo ano.
A história de um casamento fadado ao fracasso, preso às amarras religiosas e morais, entre um taxidermista jocosamente ateu que decide assassinar sua esposa, uma fanática religiosa, após vinte anos de um casamento-purgatório. Baseado no conto O Mistério de Islington, o filme expande o texto para construir personagens muito mais densos. O que não traz nenhuma surpresa, pois o roteiro foi assinado pelo gigantesco Alcoriza.
A Sra. Morales (Amparo Rivelles), é uma mulher com problemas sensoriais, de insegurança e de autoimagem agudos, mas que se agarra à religião para ter, minimamente, algo próximo à aceitação da sua condição. Ou, simplesmente, encontrou algum nível de masoquismo semelhante ao seu no catolicismo.
Gloria, mesmo após anos sobre os cuidados do marido e constantes verbalizações de aceitação e valorização direcionadas a ela, não consegue sentir qualquer empatia por Pablo Morales (Arturo de Córdova), e pior: ao longo dos anos ela parece ter desenvolvido um sádico prazer em tortura-lo. Então, roemos as unhas e torcemos por um feminicídio a cada segundo que decorre. Um sentimento tenebroso, pois o filme nos conduz a pensar no feminicídio como salvação para um homem preso a um casamento infernal.
Muito embora o longa percorra uma corda bamba entre a misoginia e o ódio direcionado à Igreja, ele toma decisões astutas que partem imediatamente ao seu ponto central: o ataque camuflado – mas nem tanto – contra o conservadorismo católico mexicano da classe burguesa. E aí vem o alívio, pois uma parcela da tensão do espectador sobre o filme parte de um local mais consciente sobre a violência contra a mulher. Embora ele consiga – ainda em 1960 – se livrar dessa situação por conta própria.
Daí, Rogélio molda o que seria um crime perfeito. Ele nos conduz até um ponto do filme onde o espectador já está em outro plano e nutre um sadismo fervoroso sobre a ideia da morte da Sra. Morales. Aqui já não há mais qualquer expectativa de empatia ou noções éticas, mas o sangue quente, pois assim que o temos alguma sensação de alívio, Alcoriza e Rogélio são ainda mais sádicos que o feminicida e o espectador, pois dão fim a todo o clero e fanáticos, a burguesia insalubre da região, assim como o próprio Sr. Morales, numa situação completamente hilária e maldosa.
E são as nuances que evitam reduzir os personagens e a trama ao maniqueísmo barato. Embora lidemos com uma fotografia de contraste – que define com nitidez essa sociedade mexicana de pólos opostos dentro e fora de casa –, temos uma personagem que é posta como “vilã” ambígua. Gloria Morales, mesmo que cruel, ainda é vítima de um feminicídio arquitetado e o filme expõe seu sofrimento físico e psicológico. Ele torna Gloria ainda mais vítima que o próprio Sr. Morales. Sem essa dualidade moral marcada entre os personagens e a presença de vilões e heróis perfeitos, muito propícios da narrativa clássica estadunidense, González e Alcoriza conseguem transformar uma história sombria em algo aprazível.
Em O Esqueleto da Senhora Morales, o diretor faz o que pouco foi feito no cinema de países católicos à época: esfaquear múltiplas vezes o “puro” e a hipocrisia do catolicismo. Aqui, o longa talvez tenha ido ainda mais longe que seus irmãos britânicos voyeuristas, pois há o tempero latino. A resposta à sociedade burguesa mexicana dentro do recorte da crise econômica pós-guerra em um país latinoamericano. González cria um regalo macabro, que não é terror, nem drama, nem comédia, mas uma produção quase fábula – com direto a lição de moral – de onde deveria estar a burguesia e o clero: a sete palmos do chão.
Nota da crítica:
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