top of page

“Aqui Não Entra Luz”: entre o espaço e o aperto

Karolina faz uma observação sensível nos gestos discretos da vida cotidiana, convertendo o ordinário em experiência política e afetiva


Crítica de Aqui Não Entra Luz na Cobertura - 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Saí da sessão arrasada. Com o rosto inchado de tanto chorar aquele choro feio e barulhento, de fazer careta e soluçar. Peço desculpas a todas que se incomodaram com meus sons horríveis de choro durante a sessão. Mas me emocionei diante da força silenciosa dessas mulheres em diálogo confrontativo com a herança sombria da escravidão, atualmente enrustida de trabalho doméstico. Sem dúvidas, o melhor filme da Mostra Competitiva, embora eu tenha me demorado para digerir tudo e essa seja uma crítica tardia, fora do calor do momento do festival. Mas ainda acredito que merece um texto e uma escrita mais pessoal e íntima, pois até hoje me emociono falando sobre ele e queria muito que minha mãe pudesse ter visto.


O documentário reúne entrevistas de mulheres de cinco estados brasileiros — Bahia, Maranhão, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro —  que atuam ou atuaram como trabalhadoras domésticas durante a vida. A partir dessas conversas, emerge uma mistura de lembranças agridoces, relatos de violência, racismo e exploração trabalhista, financeira e psicológica que ainda refletem a realidade de milhões de mulheres no Brasil. Ao mesmo tempo, os depoimentos transparecem a resistência cotidiana dessas mulheres na luta por direitos e a presença marcante da maternidade, componente central e unificador de todas as histórias de vida contadas.


Minhas primeiras percepções sobre o filme é que as imagens se dão o devido tempo, tanto quanto a narração — que apesar de pessoal impõe propriedade sobre o assunto e reconhece sua própria desimportância, não dando de encontro com a tendência “petracostista” que tanto tive o desprazer de ver neste festival. A segunda coisa que me chamou atenção foi o cuidado ao escolher as cores no título, a designer em mim sorriu quando vi a falta de contraste entre as cores do background da tela com o título do filme. Afinal, onde não se entra luz não é possível ver com tanta nitidez e contraste das formas e o que aquela escuridão esconde. É uma falta de contraste que até demonstra mais do que esconde.


Ainda, foi acalentador perceber o cuidado com a montagem e condução dos não-atores, pois é perceptível a dedicação e o tempo investidos tanto no filme quanto em cada entrevista. Gosto especialmente de ver quando há um acompanhamento dos casos posterior às entrevistas nesse tipo de documentário, e não apenas uma extração de realidades e vidas expostas em tela para circular em festivais. Karoline faz isso com muita sensibilidade. O filme me acalentou e partiu meu coração diversas vezes durante a sessão, numa verdadeira montanha-russa de sentimentos.


Outro ponto importante de ressaltar é a dicotomia “espaço e aperto”, pois é evidenciada como tema central logo no começo do longa, como uma lógica que une todos os outros pontos trabalhados no documentário, pois a diretora Karoline Maia  inicia o filme falando sobre o espaço que ela e sua mãe poderiam se movimentar dentro das casas de patrões quando era criança e a disparidade de espaço entre essas casas e a sua. Ela parte da visão subjetiva e autobiográfica para uma investigação dos espaços de outras mulheres e como esses espaços interferiram em sua vida. Do íntimo para a alteridade. Pesquisa cinematográfica. Aliás, essa investigação de espaços, ainda que partida de uma vivência distinta e num movimento contrário, remete ao que a professora da Universidade de Brasília, Mariana Souto, desenvolve no livro Infiltrados e Invasores (2021), no qual  reflete sobre relações de classe no cinema brasileiro e em que espaços essas relações se manifestam — e analisa especialmente espaços das empregadas domésticas nas casas de seus patrões. Aqui Não Entra Luz


Crítica de Aqui Não Entra Luz na Cobertura - 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Maia inicia a demonstração dessa alteridade com um corte seco de memórias de infância para uma câmera na mão que acompanha a dificuldade de Rosinha, uma das entrevistadas, para entrar no banheiro da empregada, soterrado de pertences da família para a qual trabalha. Afinal, o bem-estar de Rosinha importa menos para a família do que as memórias de acumuladores abastados. A sequência revela, ainda, Rosinha comendo num canto sozinha da casa do patrão e com pressa para terminar, pois ela não pertence àquele espaço, está invadindo a área de lazer e comunhão da casa grande.


Nessa mesma linha de análise, a diretora estabelece um comparativo entre espaços, analisando mapas, plantas baixas e projetos arquitetônicos das casas dos patrões, em um gesto que remete aos desenhos e esquemas apresentados no livro Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Ela observa como a área de serviço é quase sempre menor que o quarto da empregada, embora, em alguns casos, este último receba até mais entrada de luz natural. A disposição dos ambientes revela a mesma lógica escravocrata brasileira: a área de serviço se opõe à área de descanso, delimitando quem deve trabalhar e quem pode repousar. Dessa forma, Karoline consegue traçar um intrigante desenho genealógico da opressão da mulher negra no Brasil.


Crítica de Aqui Não Entra Luz na Cobertura - 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Nessa sequência, a diretora aprofunda o olhar e desenha um paralelo entre o quarto de empregada e a antiga senzala mais diretamente — ambos escuros e com pouca ventilação. Mesmo com o reconhecimento formal do trabalho doméstico pelo Estado e pelos sindicatos, as condições espaciais e simbólicas revelam a persistência de estruturas coloniais. E em certos aspectos, uma senzala poderia dispor até de mais espaço para abrigar pessoas escravizadas do que o quarto minúsculo reservado às trabalhadoras domésticas na contemporaneidade.


O relato de Rosinha, prossegue sobre a maternidade e o medo da filha ficar com a patroa: “já perdi muito” — diz a entrevistada. Ela relata que parou de levar a filha junto a ela para serviço por medo de que a filha se apeguasse à patroa, ou pior, o contrário. Na fala, que num primeiro momento revela um medo “irracional”, ela sintetiza uma dor histórica da mulher negra, pois a figura da empregada doméstica é vista como uma “escrava moderna”: limpa, passa, cozinha, serve, cuida e, muitas vezes, assume o papel de ama de leite ou de barriga de aluguel das “senhoras”.


​​E mais, a participação da mãe de Karoline é de uma beleza singular. Com vergonha de participar do documentário, a mãe da diretora decide se deixar incluir apenas cinco anos depois do primeiro convite. Num primeiro momento, ela aparece numa cena de lazer, na praia. Acompanhada da narração da filha, o espectador é conduzido às lembranças de infância de Karoline com sua mãe na praia. Momentos em que a mãe, em serviço, não podia brincar com ela, pois cuidava dos filhos da patroa. O contraste entre presente e passado; entre descanso e trabalho, é uma cicatriz profunda para a realizadora.


Há uma delicadeza dolorosa nos relatos das entrevistadas, mas também uma força incontestável. É nessa dualidade e complexidade  das personagens que a diretora encontra o equilíbrio, entre doçura e dor; fragilidade e resistência, para aprofundar o desenvolvimento de suas personagens. Além disso, duas cenas com Marceline, a entrevistada da Bahia, me chamaram atenção: a primeira, em cima da cama deitadinha com a serenidade de quem fofoca a alguém íntimo, e a segunda, em que ela mostra toda orgulhosa uma cortina nova, uma conquista tão simples. Aqui eu me acabei de chorar.


Crítica de Aqui Não Entra Luz na Cobertura - 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Por fim, formato 4:3, ao incorporar os arquivos de memórias pessoais da família da diretora, confere ao filme uma atmosfera de intimidade, aproximando o espectador do relato. Além disso, não posso deixar de mencionar o esmero da diretora com as imagens de celular — algo que tem sido amplamente utilizado no cinema contemporâneo, mas que fortuitamente recebe o tratamento estético necessário para integrar os arquivos de forma harmônica e coerente à narrativa. Aqui, porém, há um evidente polimento e uma preocupação em homogeneizar essas imagens às outras, evitando a banalização do recurso e explorando o potencial expressivo e afetivo do arquivo pessoal no filme.


“Entre a ideia e o poder de realizar existe um abismo”, que bom que você pôde.


Essa crítica faz parte da cobertura do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro



Nota da crítica:


Crítica de Aqui Não Entra Luz na Cobertura - 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro


Fique ligado na Cine-Stylo para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos sobre cinema. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:


Crítica de Aqui Não Entra Luz na Cobertura - 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Comentários


  • Ícone do Instagram Branco

© cine-stylo - 2025

bottom of page