Certamente um dos filmes mais aterrorizantes e psicanalíticos do diretor.
Hitchcock é um cara complexo. Começo assim, porque acredito que será um texto difícil e até mesmo confuso, pois não vejo forma de discorrer sobre um filme do autor em uma estrutura linear. Assim, inicio relembrando o texto basilar para os Estudos Feministas no cinema: “Prazer Visual e Cinema Narrativo” (1977), onde Laura Mulvey propõe o conceito de “male gaze” e compõe seu argumento a partir da psicanálise relacionada a alguns filmes e diretores a fim de demonstrar que o cinema moldou sua linguagem a partir desse olhar masculino e do fetichismo sobre o controle do corpo e mente feminina, tendo o voyeurismo como base.
Aí entra Marnie (1964), um dos filmes citados quando Mulvey discorre sobre o fato de Hitchcock abertamente demonstrar interesse sobre a investigação do “voyeurismo cinematográfico e não cinematográfico” (p.449) em suas obras e se utilizar de “dois mecanismos” segundo a autora. Sendo eles: 1) O espectador vê exatamente o que o “herói” vê; 2) O “herói exibe as contradições e tensões experimentadas pelo espectador”(p.449).
Confesso que antes de assistir o filme alimentava certo preconceito por ele, pois tomei como base o texto de Mulvey, onde ela expõe um filme de homem protagonista dominador. Para ela, Mark (Sean Connery) é o herói voyeur e fetichista que vai conduzindo o filme assim como molda Marnie para se tornar aquilo que ele deseja.
No entanto, me surpreendi ao perceber que tive uma leitura quase completamente distinta sobre o filme, pois encontrei em Marnie (Tippi Hedren) uma protagonista aterrorizada pelas figuras masculinas fetichistas, onde homens estão longe de serem heróis e Mark está muito mais próximo de um vilão do que de um herói, embora sejam termos muito contrastante para serem utilizados com Hitchcock.
Porque o que parece haver seja, talvez, a maior exploração das áreas cinzentas sobre o caráter e os objetivos dos personagens da filmografia do diretor. Além de ser um filme de sensibilidade assombrosa sobre a personagem feminina que nunca havia visto em Hitchcock, sempre com mulheres bonitas a serem observadas e homens frios, porém de cerne “heróico”.
Se para Mulvey, Hitchcock explora duas vias do olhar masculino em suas investigações cinematográficas, em Marnie, isso é ainda mais complexificado, pois temos planos sob o olhar de Marnie em primeiro plano enquanto vítima de violência masculina e a transparência das imagens inconscientes dela, não necessariamente em primeiro plano, sobre seu desejo e medo entranhados na decupagem.
E esse é um dos méritos mais marcantes desse filme, pois todas essas imagens aglutinadas como a sequência de ações linear do ponto de vista do espectador nos deixam completamente imersos na cabeça da protagonista e muito mais sensíveis a condição dela, sem saber distinguir a realidade do inconsciente.
Não querendo anular o male gaze que conduz o filme, apesar desse trabalho do diretor, mas ainda preciso ressaltar que a escolha de Sean Connery, um dos maiores galãs da época, não parece ter sido completamente acidental. Mas feita com o propósito de fetichizar Mark e Sean tanto para o espectador como sob a ótica de Marnie – embora a forma como foi realizada ainda coloque a mulher num local de subjugação, pois Marnie deseja e repudia, simultaneamente, ser “tomada” por Mark.
Então esse é o Hitchcock para meninas. Com um gaze confuso e oscilante, não apenas do personagem para o espectador e do espectador para o personagem, mas entre eles há o inconsciente de Marnie, que embora transpareça poucas vezes durante o filme, parece ser o vetor que direciona as emoções do espectador. A escolha da profissão e o “acidente” físico da mãe de Marnie, assim como o acidente psicológico das duas são feridas abertas que nunca cicatrizaram e as impedem de viver normalmente. A relação entre as duas é abstrusa, como qualquer relação entre mãe e filha, e não se limita ao acidente revelado na cena final, mas a uma dor compartilhada muito maior: trauma que é somente de mulheres porque homens existem e agem pelas leis do patriarcado, movidos por um fetichismo não-cinematográfico sobre a mulher.
Assim, Marnie é um filme que inicia como Psicose (1960), quase como uma refação de um filme, mas que não progride como tal, pois ao invés de um homem traumatizado por uma relação conturbada com a mãe abusiva – muito mais fácil de ser avaliado como um bom filme quantitativamente por ter a força motriz baseada num “sofrimento masculino” bem freudiano – temos a história do evento canônico na vida de toda mulher: o desenvolvimento de empatia pela mãe, como mulher, e o reconhecimento da raiva sobre a mãe, enquanto filha.
Ainda, ao contrário de Psicose, onde a espectadora sente medo ao se projetar em Marion Crane, protagonista perseguida por um assassino, em Marnie simpatizamos com a protagonista traumatizada e nos projetamos no animal selvagem e acuado que é Marnie. E quanto a Mark, não o percebemos simplesmente como um vilão, mas como um predador ou um colecionador de animais obsessivo, que, assim como Marnie, é apenas percebido completamente como pessoa no fim do filme. Enquanto o direcionamento psíquico do espectador está em Marnie, a força motriz do filme está no desejo de Mark sobre ela. Desejo esse que vai muito além do sexual, mas o desejo de compreendê-la enquanto criatura e saciar sua necessidade de “adestrá-la”.
É no momento em que a obsessão de Mark se desenrola em desejo sexual, que Hitchcock comete um deslize tremendo. Não sei exatamente se na decupagem ou no tempo do corte, ou mesmo nos dois, na cena em que Marnie pensa que está sendo estuprada. Vi muitos comentários, reviews e até mesmo críticas equivocadas quanto a essa cena, e também imagino que o erro desta cena tenha sido um dos fatores para o esquecimento desse filme.
Eu também entraria nesse balaio se não tivesse voltado na cena ao menos três vezes para confirmar os cortes e a posição dos objetos de cena – em especial, o travesseiro não amassado e Mark deitado em outra cama –, mesmo porque no último ato entendemos exatamente o que cada signo daquela cena representava para Marnie. Mas nesse ponto, a execução foi falha e conflitou com os objetivos do autor.
Por fim, Hitchcock registra em sua filmografia como um todo o poder da psicanálise em conversa com a arte e seu potencial aterrorizante. Não com fins de psicologizar os elementos do filme, como realizam em grande parte das produções de “terror elevado”, mas de modo que o cinema consiga ensinar a falta de limites entre vida\morte e realidade\sonho através da psicanálise.
Nota da crítica:
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