Desejo a todo vapor em "Trens Estreitamente Vigiados"
- Giulia Dela Pace

- há 3 dias
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A celebração da discreta resistência tcheca contra a ocupação nazista, protagonizada pelo erótico, desejo e transgressão

Para Eric Hobsbawm, os tchecos não tiveram uma participação de fato expressiva nos movimentos de resistência contra o nazismo, assim como os franceses. Trens Estreitamente Vigiados demonstra essa precária participação da resistência, pois apesar da ocupação nazista parecer ter grande importancia para os tchecos, o diretor Jiří Menzel e Bohumil Hrabal, autor do livro homonimo, reconhecem que o “grande plano” nazista era apenas plano de fundo e quase insignificante para a vida dessas pessoas. Mesmo a personagem representante da resistencia tcheca, Viktoria Freie (Naďa Urbánková), só se mostra ativa e útil ao findar do longa, não somente por facilitar a explosão de um trem de carga nazista, mas por descabaçar Milos (Václav Neckár) — o protagonista e a caricatura duma inocência acomodada de servidores públicos do Estado tcheco — para que ele então se torne o heroi mártir da obra.
Trem de carga, que aliás, seguiria para as bordas da URSS — o que aponta para uma história ambientada entre o final de 1944 e início de 1945, quando os nazistas ensaiam uma invasão fracassada no território soviético — revelando uma autoconsciência fílmica em situar o espectador num recorte histórico específico, ainda o deixe aproveitar a vida mundana dos personagens a priori como trama principal. Assim, enquanto se diverte com as pequenas histórias bobinhas dos personagens, o espectador é levado a perceber que ainda o menor e mais insignificante dos atos, ou mesmo atos os mais atrapalhados, contribuiram para o fim da guerra e derrota da expansão nazista e o filme faz questão de reconhecer a miudeza da resistência tcheca contra a ocupação nazista, mas não deixa de dar a devida importância.
Assim, Trens Estreitamente Vigiados (1966), se porta como um filme “simples”, deixa se transparecer como um caleidoscópio de facetas interessantes e férteis para uma análises mais aprofundadas. Mas foi na vida mundana das personagens que eu encontrei maior a maior potência do filme, a sua força motriz, pois o desejo das personagens é o que dá movimento às engrenagens do filme, como as caricaturas que ao perverterem as regras, por vezes presentes apenas no imaginário do espectador, naturalmente e cada uma à sua maneira, transbordam em poder transgressor. Algo até comum para uma comédia da Nova Onda (Nouvelle Vague) Tcheca, como vemos em As Pequenas Margaridas (1966), pois ambos os filmes carregam um humor mórbido, um desejo explícito e erótico que caminha com as personagens ao longo de toda a narrativa.

E são as personagens femininas que me interessam mais. As mulheres, assim como em As Pequenas Margaridas (1966), são donas de si e libertas. Fazem o que querem, são líderes da resistência, funcionárias da ferrovia, afogadoras de ganso (literalmente), provocadoras, brats, dominantes e não animais indefesos a serem caçados pelos homens do filme, mas também caçam, desejam e se deixam ser desejadas. Uma tendência comum à época de realização do filme, tendo em vista o movimento hippie em seus primórdios, a tendência do cinema erótico italiano, japonês e brasileiro em registrar as pautas feministas e tudo que pudesse estar eclodindo no mundo poucos anos antes da Primavera de Praga e Maio de 68.
São elas que se revoltam quando veem seus desejos frustrados, quando aquilo que querem lhes é negado, quando seus desejos não são atendidos. Elas não se conformam. Por outro lado, os homens se refugiam em atitudes mais “passivas” — dramatizam, são verborrágicos, ameaçam o suicídio — numa tentativa de dar forma ao próprio descontentamento sexual. Tomemos duas cenas como exemplo.
Na primeira, temos o momento em que Máša (Jitka Bendová), namorada de Milos, o convida para “dormir” em sua casa. Quando os dois se deitam é Máša quem inicia as carícias, enquanto Milos sofre quase que instantaneamente de ejaculação precoce — quem nunca errou que atire a primeira pedra. Máša, então revoltada, não pela falta de controle do namorado, mas por ele a recusar logo em seguida, se levanta da cama e vai dormir no sofá às pressas. Deixando Milos sozinho e envergonhado na cama, sofrendo o abandono da parceira.

Como segundo exemplo, temos a divertida cena dos carimbos, onde a telegrafista da estação, Zdenka (Jitka Zelenohorská), provoca o sinaleiro Hubicka (Josef Somr) numa performance brat de caçador e caça, onde ela simula ser caçada pelo colega de trabalho. Ao ser “dominada”, Zdenka é posta em cima da mesa de trabalho da estação e é carimbada por Hubicka diversas vezes na parte traseira da coxa. Insatisfeita, Zdenka abaixa a calcinha para que o sinaleiro então a carimbe em uma das nádegas. Sem demonstrar explicitamente o sexo e as carícias, os carimbos se transfiguram na materialização do objeto de desejo da cena — o próprio tesão e a transgressão. A sequência prossegue com a mãe da telegrafista descobrindo a perversão íntima de sua filha, leva Zdenka para o posto policial e tribunal para que todos vejam a indecência performada pelo colega de trabalho da filha. Mas o tiro acaba saindo pela culatra, pois Zdenka revela não apenas ter provocado Hubicka, mas demonstra divertir-se com a situação e fala de forma descontraída sobre o ocorrido quando lhe é perguntado.
Ainda, o humor mórbido do filme — semelhante ao de Pequenas Margaridas — se manifesta mais claramente na sequência em que Milos tenta se suicidar, cortando os pulsos na banheira de um bordel, após sofrer com a ejaculação precoce. Apesar da carga trágica do momento, o filme escancara o quão ridícula é a situação e a torna cômica. Mais adiante, as cicatrizes do suicida acabam salvando-o de ser capturado por soldados nazistas; afinal, um suicida fracassado não serviria de grande coisa para o Reich. O erro deles, porém, está em não perceber que o que Milos precisava não era força, mas desejo. Quando finalmente aprende a desejar, ele encontra também coragem e força — o Eros freudiano —, tornando-se herói e mártir ao explodir o trem de carga nazista que, embora não revelado pelo filme, seguiria para as bordas soviéticas a fim de auxiliar na pretendida invasão.
Apesar de algumas diferenças culturais da estrutura, humor e direção, o espectador consegue superá-las com certa naturalidade, resultando em uma obra ao mesmo tempo cômica, erótica e subterraneamente política. Trens Estreitamente Vigiados recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1968, um reconhecimento que, embora não represente grande coisa, atesta o alcance internacional e a relevância de sua leitura sobre uma ferida histórica pouco cicatrizada à época de sua realização. No fim, trata-se de uma comédia com toques eróticos — posteriormente o cinema tcheco evoluirá para um fértil cinema erótico na década de 1970, acompanhando outros países e a revulução sexual ao redor do globo —, de humor tipicamente tcheco, que combina inocência e acidez para transformar o absurdo da guerra em algo estranhamente humano e divertido.
Nota da crítica:

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