"O Exorcista" à sua imagem e semelhança
- Davi Pieri 
- há 11 minutos
- 4 min de leitura
Sobre portas, crucifixos, camas; olhos, ouvidos e a sacralidade das coisas mais profanas

“Ossos termina exatamente como o filme Street of shame (Akasen chitai, 1956), de Mizoguchi: há uma jovem que cerra a porta e lhe contempla, e a porta é fechada sobre você. Isso quer dizer que você não pode entrar no filme. A parte desse ponto, lhe é vedada a entrada. (...) Penso que o que Mizoguchi quis dizer nessa sequência final foi: ‘a partir daqui este filme não é mais possível, vai se tornar tão insuportável que talvez não haja mesmo um filme’. Depois de fechada a porta, um filme não é mais possível. (...) Ficção é sempre uma porta que queremos abrir ou não - não é um roteiro. Devemos entender que uma porta serve a entradas e saídas. Acredito que hoje, no cinema, quando uma porta se abre, é sempre algo de falso que se apresenta, pois diz ao espectador: ‘entre neste filme e você ficará bem, você viverá uma boa experiência, mas, ao final, o que se vê nesse gênero de filme não é mais do que você mesmo, sua projeção. Você não vê o filme, você vê a si mesmo.’ Ficção no cinema é exatamente isto; você ver a si mesmo numa tela. Você não vê mais nada, você vê a si mesmo, e toda Hollywood se baseia nisso. É muito raro hoje que um espectador assista a um bom filme, está sempre a ver a si mesmo, a ver o que deseja ver.”
(Pedro Costa, 2005)
Em O Exorcista (William Friedkin, 1973), pouco após vermos a cama da pequena Regan (Linda Blair) chacoalhar como um touro enlouquecido, o primeiro médico a examiná-la afirma para sua mãe, Chris MacNeil (Ellen Burstyn), que: "o problema de sua filha está em seu cérebro, não na sua cama". Mas nós que, como Chris, vimos a cama, não podemos negar que o problema está nela. Aqui, Friedkin já estabelece uma relação muito honesta com seu trabalho: ele desloca a centralidade do filme da explicação psicológica para a prova materialmente observável. E com isso, nos ensina a ver e ouvir melhor; a estarmos mais atentos à imagem da cama que à explicação da imagem cerebral observada na radiografia. Esta é talvez a única função que se pode naturalmente atribuir ao cinema, e é pedagógica: ensinar-nos a ver e a ouvir.
Para isso, durante todo o filme, o diretor trabalha com uma sugestividade que é tanto abstrata quanto frontal. Um exemplo é o comportamento de Regan: Linda Blair é uma atriz magnética, e a câmera de Friedkin é atraída por ela, de modo que, no começo do filme (antes da possessão tomar uma forma explícita), sua face aparece frequentemente enquadrada em primeiro plano e por períodos relativamente longos, de modo a gerar certo estranhamento que nos faz questionar se há algo de errado desde o início com a menina. Assim, o filme nos força a ver, a investigar nosso olhar. O mesmo acontece com outras imagens e sugestões, que vão paulatinamente se tornando mais explícitas.

Contudo, apesar do nível de explicitude a que chega a possessão, os médicos não escutam Chris e não olham para Regan. Somente o padre Merrin o faz, interpretado por Max Von Sydow, que nos é apresentado no início do filme para somente ser retomado no último ato. Ao chegar na casa da família MacNeil, ele ouve o demônio que possuiu Regan. Com isso, imediatamente sabe o que fazer. Quando o padre Damien (Jason Miller) pergunta se Merrin não quer antes ouvir sobre toda a história envolta no caso de Regan, o mais velho apenas responde: "para quê?" A continuação desta frase me parece que poderia ser algo como: "para quê... se eu ouço? Se eu vejo? Se, por isso, sei? Se suas explicações, contextos e histórias não resolveram o problema, e por isso estou aqui". Friedkin nos diz algo como: "veja, vocês assistiram duas horas de ladainhas dos médicos, da mãe de Regan e de todos à sua volta, porque ninguém sabia ver ou ouvir. Era preciso ensiná-los." Merrin chega ao sacrifício durante o ritual de exorcismo, então, para ensinar, pela prova, que a fé é tudo menos cega.
Desta forma, a imagem-chave de O Exorcista - o quarto e a cama - guia os que não vêem nem ouvem em direção à fé, encerrada no sacrifício dos dois padres para expulsar o demônio. Esse caminho é marcado por portas, que se abrem e se fecham, demarcando limites também da própria visualidade. Friedkin não vende o horror e a dor de seus personagens como que num mercado barato de efeito e emoções. As imagens de horror da figura de Regan possuída duram tempo suficiente para serem assimiladas, mas não esgotam-se, de modo que somos frequentemente expulsos do quarto pelo corte seco na montagem, restando assim apenas uma porta fechada e personagens apoiados na escada da casa, desesperadamente em dúvida do que viram. Igualmente, Chris sai e fecha a porta para chorar a dor da filha; Damien sai do quarto e fecha a porta para chorar o luto pela mãe. A porta é o elemento demarcador que separa a visão enquanto libertação perceptiva do fetichismo voyeurista. Mas por essa mesma porta concentra-se, em poucos metros quadrados, a materialidade do mistério, do horror e da fé - manifestada nos grunhidos e gritos de Regan possuída. Estes que rompem os limites de seu quarto-mônada por toda a casa, com a menina presa ao próprio corpo implorando para ser ouvida.
Portanto digo que O Exorcista é, antes, um filme sobre cinema. Que se inicia frente às câmeras, com a atriz Chris MacNeil, e se encerra com um convite à sala de cinema. Assim, revela aquela que é a verdade mais silenciosa porém menos oculta: de que o mistério do mundo está no visível, e que este mistério pode ser encontrado na superfície das imagens dos bons filmes.
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