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"O Agente Secreto" e o cinema despido

Kléber Mendonça Filho cria uma jornada emocional intensa com uma conclusão que reafirma o gênero cinematográfico como ferramenta de resistência e enfrentamento da vida


Crítica de O Agente Secreto

A paixão pelo cinema do crítico e diretor Kléber Mendonça Filho já era perceptível pelo próprio corpo de sua obra, tanto textual como cinematográfica. Entretanto, Retratos Fantasmas (2023) tornou isso ainda mais evidente através da exploração temática dos cinemas enquanto espaço de conexão e memória, em um documentário que borra as fronteiras da realidade e constroi um mundo muito próprio, trazendo o específico — Recife, o Cinema São Luiz e tantos outros — que se mistura com um aspecto mais geral do sentimento de nostalgia e pertencimento.


Agora, em 2025, o diretor retorna com uma espécie de sucessor espiritual; O Agente Secreto se encaixa no que gosto de chamar de “filme cinéfilo”, pois abraça aspectos muito elementares da formação de gêneros dentro da sétima arte a partir de um viés que ultrapassa o simples texto, mas se revela na forma. No filme, acompanhamos Marcelo (Wagner Moura), um homem viúvo que busca escapar das garras da repressão do regime militar brasileiro com o seu pequeno filho. Para isso, ele precisa se reinventar a partir de situações um tanto inusitadas, o que gera encontros com personagens únicos e novos algozes.


Diferente do que vemos em Os Fabelmans (Steven Spielberg, 2023), por exemplo, a premissa não aponta para o cinema de forma direta. Ainda que o espaço apareça no filme e tenha sua importância narrativa, não se trata de uma “carta de amor ao cinema” nos moldes mais diretos. Na verdade, KMF vai por uma direção que se assemelha mais ao que Bertrand Bonello fez em A Besta. Lá, o cinema é encarado a partir de suas transformações de gênero e potencialidades temporais. De forma bastante semelhante ao filme francês, O Agente Secreto é dividido em capítulos que, para além de evoluir um senso narrativo, apresentam desafios de gênero e forma muito próprios.


Crítica de O Agente Secreto

Se a primeira parte do filme nos leva para o suspense, com ações quase crípticas — o personagem de Wagner Moura anda de um lado para o outro, conhece pessoas que não parecem ser quem realmente são e toma atitudes que não soam claras a primeiro momento —, o filme rapidamente dá piscadelas para a comédia do absurdo, posteriormente inclinando-se ao terror e por fim seguindo na direção da ação e do drama. Diferente do filme de Bonello, entretanto, Kléber Mendonça Filho não faz dessa dança de gêneros algo puramente marcado pelas diferentes partes do longa, mas as utiliza como ferramentas que se distribuem ao longo de todo o filme — com exceção do final, que falaremos posteriormente —, criando uma experiência caótica e cheia de surpresas, mas ainda coesa.


Essa coesão nasce das presenças humanas tão bem encenadas pelo filme, com destaque especial para os trabalhos de Wagner Moura, Tânia Maria, Gabriel Leone e Alice Carvalho. Ainda que o filme traga essa variação de gêneros — a cena inicial de suspense que funciona numa decupagem bastante direta com o plano do policial encarando Marcelo, ao mesmo tempo em que o extra-campo guarda um elemento que, sempre que revelado, gera arrepio e estranhamento —, há um trabalho de consistência humana enorme. Os personagens são quem são a todo momento, mostrando que a flexibilidade de ações — Marcelo se infiltra em instituições, conversa com pessoas que ele detesta, foge em alguns momentos, encontra espaço para romance em outros — não é uma flexibilidade de identidade. Os nomes e os gêneros cinematográficos mudam, mas aquelas pessoas são sempre as mesmas, precisando carregar os traumas, pendências e alegrias do passado.


O resultado disso é um filme que corria o risco de soar fragmentado, mas encontra uma costura muito honesta e, principalmente, humana. O aspecto do gênero do cinema — a cena da perna cabeluda sendo talvez a que é mais escrachada e desavergonhada nesse ponto — nasce como homenagem à sétima arte, mas não se limita a isso, sendo parte do próprio universo emocional dessas pessoas. Em algum sentido, soa como o trabalho dialético de Retratos Fantasmas, que encontra uma coexistência entre o específico e o universal. Ainda que tais personagens sejam indivíduos bem delimitados (inclusive geograficamente), eles também funcionam a partir do viés de um país de história conturbada, bela, triste, sangrenta e com respiros de alegria.


Crítica de O Agente Secreto

Nesse sentido, o gênero cinematográfico surge como uma espécie de refúgio diante do próprio terror — aqui, falo do terror real, aquele que se vive na pele — que se vive. Talvez, até mesmo uma forma de encontrar forças diante do inaceitável, de colocar uma luz dentro de um túnel que não parece ter fim. Daí, as voltas e voltas que o filme

dá (é um filme de andanças, no fim das contas), revelam-se como voltas da própria vida, quando se enxerga um abismo e tenta-se a todo momento desviar dele. É uma alegria triste, um sorriso diante do absurdo (como as histórias de terror de uma perna que persegue pessoas enquanto quase cem são mortos durante o carnaval e a polícia comemora). Distrações de um país em eterna crise, numa abordagem que usa os dispositivos da forma (uma das cenas conta com um foco dividido dos mais belos que vi no cinema) como reforços de gênero, mas também refúgio de todo esse sofrimento.


O Agente Secreto acaba sendo isto: um filme de suspense, de drama, de ação e de terror, mas acima de tudo uma tragédia. O final torna-se tão potente exatamente por isso: ao despir-se dos formalismos de gênero — dê adeus aos planos mais longos que reconfiguram o espaço da sequência de ação, a violência cartunesca do terror, os cortes rápidos com diálogos ágeis da comédia —, resta a miséria de uma realidade sem sal, sem sabor. Planos chapados, luz desinteressante, diálogos que — propositalmente — recusam qualquer forma de piscadela para o público. É frio, parado e anticlimático. E, diante de tudo que foi construído e mostrado, por isso tão impactante.


O irônico é que uma luz surge no último diálogo, já no minuto final: o hemocentro já foi um cinema, espaço de ação, terror, drama, comédia e, principalmente, sonhos. Diante do horror, o próprio filme se faz. Ainda que o cinema do universo da obra não exista mais, o filme O Agente Secreto existe enquanto testemunha de si mesmo, o documento definitivo de sua materialidade. Talvez, mesmo em uma história regada de sangue e decepção de um país aparentemente sem futuro, exista esperança. Mesmo na morte, ainda pode haver memória e, por isso mesmo, vida. E o cinema pode ser essa força.


O Agente Secreto será lançado dia 6 de novembro em todo o Brasil.



Nota da crítica:


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