A força da estilização formal (ainda que menos comprometida) na expressão de um competente estudo de personagem
Pearl não é um filme tão comprometido com paradigmas de gênero quanto X. Notavelmente, entretanto, tratam-se de propostas muito distintas: enquanto o primeiro longa da trilogia idealizada por Ti West e Mia Goth é muito mais um “filme de trama”, este mais recente, por outro lado, é um de “personagem”. Logo, se aquele buscava dialogar com aspectos característicos do slasher texano a partir de uma ótica tanto temática quanto formalmente contemporânea, este busca construir um panorama psicológico de sua personagem titular de maneira mais focalizada.
Por essa lógica, faz todo sentido que o projeto do longa tenha nascido da construção biográfica feita por Goth para o seu trabalho com a personagem em X. Pearl, em outras palavras, interessa-se não apenas pelo elementar da caracterização desta personagem, que já suficientemente serviria aos propósitos do filme precedente – a repressão de sua sexualidade, isto é –, mas também por diversos outros aspectos de sua formação psicológica. Que a sua vida bucólica, no fim das contas, aprisiona-a; que ela foi subjugada a uma mãe rígida que também teve seus desejos destruídos e que despeja seus ressentimentos na filha; que os seus sonhos (feitos de cinema) foram destruídos com a frieza de um “você não é o que estamos procurando”, e isso condenou-a a uma existência sufocante.
Em síntese, é um filme que busca uma compreensão mais profunda e até mesmo compassiva de sua personagem; busca, isto é, realmente examinar as raízes de sua psicose e, a partir disso, aproximar-se dela. Ou seja, é um retrato sólido digno de uma protagonista – ou, deveríamos dizer, uma estrela – que todo se encaminha para a revelação máxima de suas patologias, ao invés de um esboço suficiente para uma personagem coadjuvante.
Ademais, a abordagem formal de Ti West, como em X, caminha entre o mais estilizado, gráfico, e o mais sóbrio, “dramático”. Aqui, entretanto, esse equilíbrio estilístico serve à expressão de como a protagonista expurga os seus demônios internos. Tudo o que é reprimido transforma-se em sanha assassina, esta que, por sua vez, toma forma em violência estilizada – e, a cada revelação, nos tornamos mais íntimos da personagem titular, mais próximos de melhor compreender sua psicologia conturbada. Logo, toda a afetação de West, mais do que culminar num exercício vazio de paródia aos gêneros clássicos do cinema industrial estadunidense, serve, aqui, a um propósito dramaticamente significativo. E, quando o ápice dramático de um filme cheio de violência exploitation é um simples close-up e uma forte entrega, isso é dizer alguma coisa sobre a sua competência.
Aliás, agrada-me que West não se delongue em tentar “justificar” as suas estilizações, no sentido de dar ao espectador um porquê de a realidade de Pearl ser tão cenográfica, tão claramente postiça. Isso até existe no longa, mas este, sabiamente, prefere concentrar-se nos efeitos de seus artifícios para comunicar aquilo que há de reprimido nas entrelinhas da progressão dramática. Assim, ao invés de retornar ao vício auto-induzido em insulina da personagem, que é sugerido na primeira vez em que ela vai ao cinema, o filme prefere confiar, por exemplo, no efeito (Kuleshov) de um ovo sendo esmagado e um soldado explodindo para melhor expressar o quão desesperadamente ela deseja que seu noivo não volte da guerra, além de reforçar a associação entre repressão dos desejos e apetite assassino.
Novamente, por sinal, parece haver aqui uma intenção de West de resgatar apelos mais gráficos do cinema de gênero sob um verniz contemporâneo, algo que está mais flagrante em X, mas que, aqui, também é evidente. Ora, se a ambientação de Pearl numa pandemia, com o resgate de alguns signos sociais bem marcantes – não só o uso de máscaras em ambientes públicos, como o padecimento do pai da protagonista, que inclusive é narrativamente relevante, já que condena a mãe à vida doméstica –, é alguma indicação, o cineasta claramente busca oferecer um arcabouço de referências às sensibilidades geracionais do público de hoje. E, mesmo que não atinja o mesmo nível de diálogo com paradigmas de gênero que X, ainda assim, trata-se de um sólido e interessante estudo de personagem.
Nota do crítico:
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