Em um momento de efervescência cultural e política da juventude francesa, a câmera-caneta de Truffaut brilha pela dialética da relação íntima que o diretor mantém com o tema junto à neutralidade moral com a qual o aborda;
“Os Incompreendidos", de 1959, é um filme que se inicia em homenagem a André Bazin, fundador da revista Cahiers du Cinéma (onde François Truffaut, diretor do filme, trabalhou como crítico) e mentor dos jovens diretores da Nouvelle Vague, movimento moderno de renovação do cinema francês. Mais do que isso, Bazin foi uma verdadeira figura paterna para Truffaut, cuidando dele e de seus estudos por boa parte da vida. Conhecendo a relação pai e filho que os dois mantinham, é lindo ver um filme como este, que reverencia Bazin atendo-se às suas propostas estéticas enquanto teórico do cinema. Em um sentido, Os Incompreendidos remete ao verismo do Neorrealismo Italiano, movimento admirado por Bazin que buscava o hiper realismo cinematográfico. Porém, o que realmente cria uma poesia única na mise-en-scène de Truffaut não é puramente seu realismo, mas o embate interessantíssimo entre o que é filmado e mostrado de forma muito direta (tal qual os neorrealistas faziam) e os vestígios de uma forte expressão emocional do diretor (já que este é um filme com inspirações autobiográficas).
De fato, o que mais remete ao movimento moderno italiano é a forma como Truffaut lida com as situações dramáticas filmadas. Para explicar isso melhor, cito Bazin: “O neorrealismo, por definição, rejeita a análise, seja ela política, moral, psicológica, lógica ou social, dos personagens e de suas ações. Ele olha para a realidade como um todo, não incompreensível, certamente, mas indissociavelmente uno.” É essa a relação que Truffaut mantém com seu drama: o julgamento, a análise, estão fora de questão. Ainda que esteja expressando sentimentos sofridos de sua infância, o diretor jamais coloca Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), seu protagonista, como absoluta vítima de malfeitores (que poderiam ser, no caso, seus professores, diretor da escola ou seus pais). Cada personagem é contraditório e, por vezes, incompreensível (como é na vida real): é só pensarmos nas constantes mudanças de comportamento dos pais de Antoine ao longo do filme. Igualmente, a câmera e o corte são impassíveis diante dos acontecimentos, se atém justamente a mostrar. Na organização interna dos planos é que Truffaut irá construir o impacto de seu filme, bem aos moldes cinematográficos que André Bazin defendia.
Mas, apesar disso, Os Incompreendidos assemelha-se mais uma vez ao Neorrealismo em um ponto que pode soar contraditório: a denúncia social. Pois a verdade é que, apesar de a consideração de Bazin ser plenamente aceitável, ainda há — até mesmo pelo contexto da época — rastros de uma insatisfação social do Neorrealismo Italiano. Um pessimismo que surge de um país devastado e descrente, visto que o movimento se desenvolveu num momento de crise na Itália pós-Segunda Guerra. Trazendo essa insatisfação a um nível pessoal, a tocante beleza com que Truffaut conta a história de Antoine demonstra a incapacidade de uma sociedade tão ordenada e conservadora, como a França daquele período, compreender as crianças, os jovens, aqueles que vivem por e necessitam de liberdade. A repressão extrema, na realidade, afeta a todos, e a infelicidade no filme surge não por haverem pessoas “más”, mas sim porque todos estão acorrentados a uma estrutura social aprisionadora. Parece quase impossível que os adultos do filme tomassem outra decisão que não a repressiva, já que toda a conjuntura na qual estão inseridos age através da repressão.
Nesse sentido, alguns dos momentos mais tocantes são aqueles em que Truffaut contrapõe essa ordenação extrema com um vislumbre de liberdade — é em um momento em que Antoine mata a aula com o amigo René e vai ao cinema e ao parque de diversões, ou mesmo quando os dois decidem roubar a máquina de escrever do pai de Antoine, uma sequência que transmite tensão fortíssima e estimulante, tanto para nós como para os garotos. Isso é reforçado pela forma como Truffaut filma, dando-se a liberdade de deixar a montagem guiar parte da cena, como não havia feito até então. Ainda sem levarmos em conta a sequência final, que merece uma análise própria. Falarei sobre ela em breve.
O que acontece, então, é que Truffaut adota esse estilo que, por sua representação tão natural da vida em cena, permite amplamente a expressão interior do diretor numa espécie de recorte autobiográfico fílmico. É um dos exemplos mais potentes da capacidade ontológica da câmera¹ em que André Bazin tanto acreditava, onde o impacto maior surge ao mostrar a ação e não ao analisá-la. Essa abordagem brilhante acaba agregando vestígios românticos para o viés neorrealista. E em sua “neutralidade moral” quanto ao que filma, Truffaut consegue caminhar da denúncia social à reflexão íntima sobre liberdade (novamente orientando-se por uma linha entre a “percepção da realidade como um todo”, como disse Bazin, e a intimidade). Isso porque o filme não moraliza a busca por liberdade de Antoine. Ao mesmo tempo que parte desse desejo de se tornar livre em uma sociedade tão estritamente ordenada, a obra está consciente da necessidade de responsabilidade por parte do ser livre. É aí que podemos falar sobre a emocionante sequência final de Os Incompreendidos.
Os momentos finais deste primeiro longa de François Truffaut são um respiro (ou mais um grito) de liberdade. Após ser mandado para o reformatório, Antoine Doinel consegue escapar e pode enfim correr, solto, pelas matas e pela praia. Sentir o mar que tanto sonhava conhecer. Mas arrebatador mesmo é o zoom final da câmera no olhar perdido de Antoine após alcançar a tão sonhada liberdade: o garoto olha, sabe-se lá para onde, em um campo aberto mas, ao mesmo tempo, no qual há infinitas possibilidades. Para onde ir? O que pode Antoine fazer agora que está livre? O peso da liberdade é a responsabilidade: quando se é livre para tomar suas decisões, surge um perfeito equilíbrio entre o medo (de ter que agir e responder por si mesmo) e a alegria (por ter a possibilidade de agir). Portanto, o zoom que encerra o filme e congela a imagem de Antoine é a cereja do bolo, é o que mantém presente a ambiguidade que vinha guiando a narrativa de Truffaut até então. Ao fim, a neutralidade se mantém tão forte e expressiva como é ao longo de toda a 1h30min de Os Incompreendidos.
1 A capacidade ontológica da câmera, proposta por André Bazin em seus textos “Ontologia da Imagem Fotográfica” e “Mito do Cinema Total”, refere-se ao desígnio primordial do cinema, segundo Bazin, que seria a representação da realidade. Assim, a câmera fotográfica (especialmente a fílmica) surge como o meio definitivo para reprodução da realidade pelo ser humano. O cinema, então, por sua essência, é a única forma de arte munida de ferramentas para registrar os acontecimentos do mundo tal qual eles se desenrolam em seu espaço e tempo (ainda que de forma menos objetiva no caso desse segundo) concretos. Para Bazin, isso significava que o ápice da experiência cinematográfica estaria justamente em explorar tal capacidade, utilizando do realismo intrínseco ao cinema para criar poesia.
Lista de favoritos do redator
1. Amores Expressos | Wong Kar-wai, 1994
2. Gritos e Sussuros | Ingmar Bergman, 1972
3. Os Incompreendidos | Francois Truffaut, 1959
4. O Dragão de Maldade Contra o Santo Guerreiro | Glauber Rocha, 1969
5. Deus e o Diabo na Terra do Sol | Glauber Rocha, 1964
6. O Dinheiro | Robert Bresson, 1983
7. Carruagem Fantasma | Victor Sjostrom, 1921
8. Ladrões de Bicicleta | Vittorio De Sica, 1948
9. Cabra Marcado Para Morrer | Eduardo Coutinho, 1984
10. Touro Indomável | Martin Scorsese, 1980
11. Retrato de Uma Jovem em Chamas | Céline Sciamma, 2019
12. Ran | Akira Kurosawa, 1985
13. Limite | Mário Peixoto, 1931
14. A Vila | M. Night Shyamalan, 2004
15. As Duas Faces da Felicidade, 1965
16. Cidadão Kane | Orson Welles, 1941
17. Um Bonde Chamado Desejo | Elia Kazan, 1951
18. Um Homem Com Uma Câmera | Dziga Vertov, 1929
19. Anjos Caídos | Wong Kar-wai, 1995
20. Paixão dos Fortes | John Ford, 1946
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