
Falar de ÓRFÃ 2: A ORIGEM não é tão fácil quanto pensei que seria. Vi o filme numa sessão lotada e todos ao meu redor pareciam ter detestado, inclusive o amigo que me acompanhou. Desde o início, um grupinho sentado à minha frente ria em todas as cenas, até as que não eram particularmente engraçadas. Meu amigo chegou a apelidar esse filme de “a comédia do ano”. A reação da plateia me incomodou por alguns motivos, mas certamente não envolve o fato deles terem achado graça. O filme é, de fato, engraçadíssimo e, como já explorei em outro artigo, terror e comédia se relacionam inevitavelmente. O roteiro é explosivo em moldes tarantinescos e o diretor William Brent Bell cria imagens de apelo pop o tempo todo — aliás, tem cenas que parecem tiradas de algum vídeo-clipe —, mas nada foi suficiente para angariar o público que ama esse tipo de coisa em contextos diferentes. Minha sensação é de que parte do público entrou na sala querendo zombar do filme por sua própria natureza (uma continuação de franquia popular) e o restante só acompanhou.
Todo filme requer alguma boa vontade de seu público e o cinema de gênero normalmente requer algumas expectativas também. Inicialmente, ÓRFÃ 2 parece ser uma continuação de terror como qualquer outra (ainda que seja uma prequel): acompanhamos a mesma história que já vimos com outras personagens. Dessa vez, no entanto, o ponto de vista que seguimos é o da vilã, a “órfã” Esther. Não só é interessante porque temos a chance de entendê-la melhor, mas principalmente porque isso faz o filme começar num nível de maldade diferente do anterior. A protagonista anterior era uma sofredora atormentada, mas Esther é uma assassina sanguinária. E isso marca uma diferença fundamental: o primeiro filme é sobre o enfrentamento de um trauma, enquanto o segundo vê os traumas com bastante naturalidade desde o começo. A violência que antes horrorizava se tornou banal.
Quando vemos Esther se infiltrar nessa nova família, sabemos que algo não está certo, e tanto podemos nos atentar para parte do plot twist quanto podemos — pelas expectativas ligadas a uma continuação do gênero — acreditar que a desconfiança da mãe e do policial não passam de “sementes” pra resolução no último ato. Independentemente, o plot twist chega e descobrimos que o nível de maldade com o qual nos acostumamos é bobagem em comparação ao nível de maldade que se escondia por trás do roteiro genérico e da família genérica que dominavam a tela até então. Esther não é a única pessoa cruel e sanguinária nessa história, pelo contrário, e a graça do filme se torna a competição de maldades na família — de forma velada, pois o pai desconhece os segredos de sua própria casa. Estamos diante de uma sátira das aparências e da corrupção humana que Brian De Palma poderia ter dirigido. A variação tensa entre surpresa e previsibilidade da primeira metade de filme é o tipo de jogo metalinguístico que De Palma pensaria desde o roteiro — como pensou nos seus remakes não-oficiais de Hitchcock. ÓRFÃ 2 não é um filme tão metalinguístico quanto VESTIDA PARA MATAR, mas sua preocupação com convenções, aparências e estereótipos que podem ser mantidos ou quebrados pelo narrador é a base de sua experiência. Existe uma conexão direta entre cometer atrocidades parecendo uma família normal e ser um filme tão cruel e satírico parecendo uma continuação genérica. Estruturalmente, pode ser comparado com MATCH POINT, de Woody Allen, que relaciona as convenções do gênero de romance à dissimulação de seu protagonista.
Estamos diante de um filme cínico, que valoriza mais a crença do que o objeto da crença. Não à toa, Esther é uma criminosa iniciante, aprendendo a enganar, e sua evolução pessoal está justamente neste aprendizado. O filme considera que, para as coisas darem certo na vida, é mais importante engolir o choro e aprender a mentir do que realmente ser o que se diz ser. O próprio conceito da protagonista reforça essa tese, já que ela nasceu geneticamente condenada a não ser o que parece. Por esse alinhamento entre jornada da personagem e visão do cineasta, podemos concluir que, do mesmo modo como o universo sensível do primeiro filme se molda à subjetividade de sua protagonista, ÓRFÃ 2 lida com os conflitos de Esther através do pastiche e da satíra.
Após elogiar tanto, vale observar que ÓRFÃ 2 apresenta o curioso fenômeno do diretor sortudo. Não me parece que William Brent Bell está seguro do brilhantismo de seu material e muito menos que ele saiba articular a linguagem em prol do filme. Minha impressão atual é de que ele tem certo talento, mas é pouco habilidoso. Ele vai razoavelmente bem com as cenas mais simples e é excepcional com ação; mas, de repente, a câmera vai para uma posição louca, surge um slow motion, quase tudo desfoca e só metade da cabeça de um personagem é enquadrada em primeiro plano… daí a gente percebe que o coitado entrega sua direção à sorte e, quando não sabe bem o que fazer, revira aleatoriamente sua caixa de ferramentas. Ele evoluiu em relação a BONECO DO MAL, que é um ótimo filme dirigido por um amador (no melhor sentido do termo). Uma cena como a da fuga de Esther do hospício, que nos eletriza e define a protagonista como centro moral e estético da obra, já é coisa de profissional, mas seu estilo ainda parece meio impensado. Eu normalmente comparo diretores que não pensam seu estilo e apenas filmam muito para nos cativar a Sidney Lumet, mas a comparação seria injusta, já que Bell parece ter mais consciência das implicações éticas de sua estética (e é certamente mais humilde nesse âmbito). Ele até filma para nos cativar, mas não trata a forma como um embrulho atraente pro conteúdo dramático; ele entende que, em última análise, o conteúdo é a forma — com a qual se esforça muito para nos envolver. A comparação mais adequada talvez seja Zack Snyder, que admiro muito, mas reconheço como limitado. A diferença é que Snyder nasceu com olhos privilegiados para a composição visual e Bell apenas dá pro gasto. Entretanto, o fenômeno em questão é o do diretor sortudo porque, de algum modo, roteiro e colaboradores garantiram um espaço seguro, no qual ele pôde atirar para todos os lados e, mesmo assim, acertar quase todos os tiros. Bell não é um ótimo diretor, mas ÓRFÃ 2 é um ótimo filme.
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