O documental e o dramático de O Último Dia de Yitzhak Rabin se equilibram na articulação consciente e engajante desses dois mundos
Uma das maiores belezas do cinema reside na fluidez da imagem, sua constante transformação que se dá através do tempo, dos movimentos de câmera, da montagem e dos elementos da cena. Essa fluidez reflete nossa própria condição de existência: sempre em movimento e transformação, ao mesmo tempo em que se admite a incapacidade de enxergar o todo; cada escolha de plano é reveladora e, paradoxalmente, limitante. De forma semelhante, o cinema - e a existência - traz uma soma do registro do real - a captura da realidade traduzida em imagem e som - e a criatividade como força ativa para o entendimento do mundo e do desenvolvimento de novas possibilidades.
Escrevo essa introdução para destacar como O Último Dia de Yitzhak Rabin carrega consigo as qualidades que me fazem ser tão apaixonado pela sétima arte. Dirigido por Amos Gitaï, o filme é um documentário que se utiliza da combinação de cenas dramatizadas, entrevistas e imagens de arquivo para construir um universo estético e crítico muito único. Nesse sentido, é interessante perceber que, isoladamente, nenhum desses recursos é inovador ou muito diferente do que já estamos acostumados. Entretanto, é na soma deles - e na forma que eles são combinados - que o filme encontra sua força.
Em “Notas sobre o cinematógrafo”, o lendário cineasta francês Robert Bresson escreve que “uma imagem deve ser transformada pelo contato com outras imagens assim como uma cor se transforma pelo contato com outras cores”. Dessa forma, ele indica que um plano - e podemos estender isso para a cena - é modificado pela sua relação com o plano seguinte. Nesse processo de transformação, o que vem depois altera o que se passou e vice-versa.
Por esse exato motivo, os primeiros momentos do filme são tão reveladores em relação à totalidade da obra. Logo na primeira cena, nos deparamos com uma longa entrevista simples - o fundo preto, plano e contraplano enquanto entrevistadora e entrevistado se revelam nas falas. Um momento absolutamente usual e, isoladamente, medíocre. É nos momentos seguintes que a entrevista e suas escolhas formais tão simples ganham força. O filme nos leva para gravações reais do local onde Rabin foi assassinado. Quando o atentado ocorre, há uma transição veloz para o meio da confusão - uma cena que, entretanto, é dramatizada, ou seja, ficcionalizada. Ainda assim, a câmera é caótica e se comporta como em um registro documental dentro da lógica dramatizada da representação.
Essa lógica de idas e vindas entre um registro mais frio e um processo de dramatização é ainda mais notável na cena seguinte, em que autoridades israelenses investigam o ocorrido. Em um plano longo, enxergamos tudo de forma distanciada até que, pouco a pouco, os personagens se aproximam da câmera e surge daí uma maior intimidade que nos coloca em uma posição emocional mais intensa em relação a situação. Acaba que esse esquema apresentado no princípio do filme é o que definirá os passos seguintes, quase como uma planta-baixa que construirá a argumentação estética e narrativa da obra.
Nesse processo, Gitaï assume a limitação do olhar, de forma que, ainda que o filme se chame O Último Dia de Yitzhak Rabin, pouco o vemos em tela. Na verdade, o que é apresentado são olhares específicos sobre tudo que ocorreu ao redor do personagem-título, percepções muito próprias e, ainda assim, limitadas para tentar compreender o que se passou (e se passa) em Israel. Interessante perceber que isso se reflete na dicotomia entre um Estado que tenta enxergar o modus operandi mais superficial do crime - os pontos fracos da segurança, falhas específicas intencionais ou não dos que deveriam garantir a sobrevivência do assassinado -, enquanto há um silenciamento daqueles que buscam compreender como o cenário cultural e religioso que propiciou o florescimento das ideias de extrema-direita.
O próprio esquema elaborado por Gitaï no começo da obra é propício a isso: vamos de um interrogatório a outro, sempre com planos mais rígidos, supostamente sóbrios, onde somos inundados por palavras e informações que pouco explicam as raízes do ocorrido. Em seguida, onde há uma oportunidade maior de dramatização, enxergamos - menos por palavras e mais por imagens - a construção do imaginário que semeou o ódio e a revolta no coração de tantos israelenses.
É nessa integração entre o fato frio - as imagens de arquivo, os textos oficiais, as entrevistas, entre outros - e a dramatização consciente que o filme encontra sua força. Tais imagens não são, de forma alguma, jogadas para simplesmente acumular informações, tampouco são professorais ou tratam o espectador como incapaz. Elas, antes de tudo, constroem um universo estético e reflexivo sobre os problemas estruturais de uma sociedade, problemas esses que são muito específicos - contam com uma formação histórica muito própria -, mas também são capazes de revelar problemas e mazelas do nosso próprio povo e sistema.
O Último Dia de Yitzhak Rabin é um filme denso, rico e versátil, que não se limita a gêneros e encontra sua verdadeira força na articulação de seus elementos em prol de um efeito total extremamente impactante e esteticamente engajante. Amos Gitaï encontra uma espécie de equilíbrio entre o fazer jornalístico mais direto e o ensaio, entregando um dos filmes mais interessantes que vi este ano.
Filme assistido a convite pela Synapse. O Último Dia de Yitzhak Rabin está disponível nos cinemas.
Nota do crítico:
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