Em sua obra-prima, Jorge Furtado nos leva ao extraordinário sem perder a base cotidiana.
O Homem Que Copiava, do gaúcho Jorge Furtado, abre numa sequência bastante significativa: num caixa de supermercado, o protagonista André (Lázaro Ramos) enfrenta dificuldades para comprar tudo o que necessita com o dinheiro que tem. Um dos itens comprados, com muito esforço, é uma caixinha de fósforos, que ele usa, logo em seguida, para incendiar uma pilha de dinheiro. A própria estrutura dessa sequência reflete a dinâmica do restante do filme: sem tirar os pés do mundo real, saímos de uma situação ordinária para uma situação completamente extraordinária e surpreendente. No momento seguinte, passamos a acompanhar a rotina de André, guiados por sua narração honesta e livre (é um fluxo de consciência bem engraçado). Por um tempo, até nos esquecemos da cena de abertura, que mostra um evento posterior da narrativa.
A monotonia cotidiana impera durante os trinta minutos iniciais da obra, em que pouca coisa parece estar em jogo dramaticamente. A sensibilidade compartilhada entre diretor e protagonista é o que mais nos cativa: o humor simples e ligeiramente melancólico de André está em tudo, desde a maneira atrapalhada dele lidar com as mulheres até as piadas sobre os tipos que se relacionam com ele — o mais patético é, sem dúvidas, Cardoso (Pedro Cardoso).
Todavia, é através da montagem — a forma cinematográfica de raciocínio lógico — que o filme se torna um reflexo esplendoroso da subjetividade de André. Um ótimo exemplo do seu senso de humor refletido na montagem aparece quando ele fracassa em chamar Sílvia (Leandra Leal) para sair. Surge um insert que o mostra levando uma torta na cara e lambendo o glacê, como quem tenta se contentar na desgraça. A seguir, enquanto ele lamenta para nós seu fracasso, surge mais um insert: Sílvia falando, com um sorriso e um olhar sedutor, exatamente o que ele queria ouvir.
André trabalha como operador de fotocopiadora (leia-se xerox) e está sempre atento ao mundo que o cerca. Sem empreender uma busca ativa por conhecimento, ele aprende um pouco de tudo o que levam para ele copiar (apenas lendo, entediado). A atenção e a lógica são as maiores virtudes de André, que raramente tira proveito delas graças à sua passividade. Ele é tão passivo que um de seus passatempos favoritos é observar os vizinhos pela janela, através de binóculos. André é uma espécie de voyeur. A diferença entre ele e o típico voyeur dos filmes de Alfred Hitchcock é que André vive no mundo real. O cineasta britânico, que era avesso ao realismo, dizia que, enquanto muitos diretores filmavam fatias da vida (slices of life), ele filmava fatias de bolo (slices of cake). O Homem Que Copiava, no entanto, é um filme bastante realista que se transforma, de reviravolta em reviravolta, num filme de gênero. Mas nem o seu realismo ou o seu gênero são puros; ele começa numa fatia de vida com cobertura de chocolate e se transforma numa fatia de bolo com recheio de vida. E a transição se dá conforme o protagonista evolui em sua jornada.
Num filme de Hitchcock, a vida de uma pessoa comum pode se tornar uma aventura por golpe do acaso. Na vida real, entretanto, nada de tão surpreendente acontece. Para a maioria das pessoas, o cotidiano é bastante previsível. Acordamos, trabalhamos e vamos dormir, para repetir tudo no dia seguinte. André, que se sente mal nessa inércia, sonha em “ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar”. Sua jornada, contudo, o levará a amadurecer seu sonho.
Através de uma fragmentação formal profunda, somos bombardeados de referências culturais e informações da história pregressa de André. Ao mencionar a rua Roosevelt, onde trabalha, ele nos conta o que leu sobre o presidente americano; ao ver uma ilustração, ele se lembra do desenho animado que passava na TV quando o pai falou com ele pela última vez; assim que ele e Sílvia se tornam amigos, ele faz questão de lhe emprestar uma revista em quadrinhos de que gosta. A existência de André é uma colcha de retalhos. Na verdade, tudo o que existe se refere a uma infinidade de outras coisas. O que acontece com um indivíduo tem a ver com tudo o que o levou até aquele momento; pode ser resultado de escolhas pessoais ou de toda uma conjuntura que, muitas vezes, foge do seu controle. Em certo momento, Marinês (a colega de André interpretada por Luana Piovani) diz que “pai pobre é destino, mas marido pobre é burrice” — frase cômica cujo significado reverbera até o fim do filme.
A tomada de atitude de André sobre sua condição existencial vem através do seu amor por Sílvia e da observação externa da condição em que ela se encontra (vivendo com um pai abusador). Desde a timidez à enorme capacidade de observação e raciocínio, eles se assemelham muito, e o amor confirma: André e Sílvia são verdadeiras almas gêmeas. Ela é um André que não assaltou banco, copiou dinheiro ou ganhou na loteria — mas poderia, em condições mais favoráveis. Os dois se complementam até nos detalhes (muitos dos quais só são perceptíveis ao revermos o filme), como o aquário de Sílvia “parecer” uma TV e a TV de André “parecer” um aquário. Isso significa que, quando André olha pela janela e vê o pai de Sílvia se aproveitando dela, ele está vendo, simbolicamente, seu próprio pai se aproveitando dele. É nesse momento que a ficha cai e ele percebe que também precisa livrar-se das amarras do destino. É com tudo isso em mente que ele amadurece sua ideia de “ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar” e, enquanto ateia fogo ao dinheiro falso e às cartas de seu pai, diz uma das frases mais famosas do filme:
Dinheiro é só um pedaço de papel que todo mundo acredita que vale alguma coisa. Se ninguém acredita, não vale nada.
Ele continua querendo ficar rico e se mandar, mas o amor (de Sílvia) passa a ser a régua pela qual ele mede sua relação com as pessoas e com a cultura que o cerca. O dinheiro só tem valor porque ele, André, valoriza a liberdade que o poder aquisitivo traz. É uma visão de mundo meio cínica e individualista, mas que é tratada de modo bastante positivo e entusiasmante pelo filme, que nos engaja em sua luta por liberdade. Vibramos pela ofensiva de André e Sílvia contra o destino.
Ou seja, o movimento dramático que parte do ordinário ao extraordinário é também um movimento do destino ao livre-arbítrio. A inércia — que seria quebrada por um acaso num filme de Hitchcock — é quebrada pela atitude autônoma de indivíduos em busca da liberdade. E, em última análise, é esse movimento dramático sobre um mundo reconhecível (que não se perde pelo viés ideológico adotado) que faz de O Homem Que Copiava um filme extremamente profundo e, ao mesmo tempo, uma diversão “inocente”.
Lista de favoritos do redator
Cidade dos Sonhos | David Lynch, 2001
Barry Lyndon | Stanley Kubrick, 1975
A Árvore da Vida | Terrence Malick, 2011
Um Cão Andaluz | Luis Buñuel, 1929
Psicose | Alfred Hitchcock, 1960
O Homem Que Copiava | Jorge Furtado, 2003
Cães de Aluguel | Quentin Tarantino, 1992
Rashomon | Akira Kurosawa, 1950
A Primeira Noite de um Homem | Mike Nichols, 1967
Ladrões de Bicicleta | Vittorio de Sica, 1948
Cidadão Kane | Orson Welles, 1941
Taxi Driver | Martin Scorsese, 1976
O Massacre da Serra Elétrica | Tobe Hooper, 1974
Elefante | Gus Van Sant, 2003
Um Tiro na Noite | Brian De Palma, 1981
O Dinheiro | Robert Bresson, 1983
A Vila | M. Night Shyamalan, 2004
A Felicidade Não Se Compra | Frank Capra, 1946
A Grande Ilusão | Jean Renoir, 1937
Excalibur | John Boorman, 1981
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