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O Contador de Cartas (2021)

O corpo e a alma indivisíveis de um ex-torturador norte-americano



O Contador de Cartas é um filme que nos induz a uma conexão espiritual muito particular com um sujeito psiquicamente conturbado, de uma maneira que remete a qualidades transcendentais do estilo de Robert Bresson; Paul Schrader, aliás, talvez seja o principal legatário contemporâneo do cineasta francês. Aqui, em primeiro lugar, há uma certa rigidez visual, presente na decupagem, nas performances e nas marcações de cena. Essa rigidez nos faz reparar, especialmente, nos aspectos materiais da diégese, dos cenários aos personagens.


E, nesse contexto, o arco do protagonista, William Tell, um ex-torturador atormentado pela culpa, nos conduz a um processo de interiorização psicológica. A performance de Oscar Isaac, nesse sentido, é toda “voltada para dentro”, de modo a dar vida a um personagem pouco expressivo, estóico, que, como um fantasma, vagueia de cassino em cassino, buscando não deixar rastros por onde passa, numa fuga silenciosa do próprio passado. Sua razão – reforçada pelo monólogo interior, que nos aproxima de sua consciência atormentada – é a “não-existência”, porque viver com o peso do passado é uma agonia.



Então, a partir dessa abordagem formal muito bem definida, a progressão do filme, mais do que nos fazer reconhecer as marcas desse passado que condena o protagonista, gradativamente nos faz perceber a ligação intrínseca entre o seu corpo, a partir da dimensão material que o filme explora, e sua mente, por meio da interiorização espiritual ao qual ele nos conduz.


E, uma vez que corpo e alma são inseparáveis, a purgação do espírito só poderá acontecer através da redenção da carne – uma redenção que será tão violenta quanto as raízes que aprisionam esse espírito à culpa. Por isso, ademais, a redenção de Tell é intransferível: ao tentar alcançá-la por meio da salvação de Cirk, um rapaz traumatizado pelo mesmo passado que assombra o protagonista, a trama termina em tragédia, e, literalmente nos últimos instantes da narrativa, Tell é forçado a mudar de rumo.


Aliás, é por causa da maneira como Paul Schrader define tão bem a sua abordagem que o clímax me soa particularmente expressivo. Ao relegar para o extracampo o combate final entre Tell e John Gordo, o superintendente do protagonista nos seus anos como torturador na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, o push-out da câmera nos estimula a imaginar esse combate – quer dizer, a percebê-lo, em toda a sua sanguinolência e brutalidade, com os “olhos da alma”. Eis, como resultado, a expressão máxima dessa indissociação entre corpo e alma que o filme, ao longo de sua duração, sugere, num embate final que consegue ser físico e mental em igual medida.



No mais, vale refletir sobre as implicações desse arco de redenção para o contexto maior que lhe serve de pano de fundo: os Estados Unidos. A experiência traumática de William Tell faz parte de um trecho particularmente sombrio da história estadunidense – e um trecho que está longe de se tornar passado. Os escândalos de tortura de detentos de Abu Ghraib, afinal, são apenas uma parte do recorrente padrão de abusos e brutalidades em penitenciárias estadunidenses fora dos EUA, como no Afeganistão e em Guantánamo Bay.


Quem se responsabilizará por esses abusos? E pela tortura? Aliás, para um país que elege torturadores para a governança estadual, a tormenta psíquica de Tell deveria ressoar com todos os cidadãos estadunidenses, cuja realidade é sustentada, dentre outras atrocidades, pela invasão intercontinental e por crimes de guerra. Por isso, enfim, O Contador de Cartas, como tem sido de praxe nos filmes mais recentes de Paul Schrader, é uma obra contemporânea e vital.


Nota do crítico:


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