Entrelaçando dores íntimas e gerais, O Acidente fala muito através do que é não mostrado
O cinema é uma linguagem artística que costumeiramente nos recompensa quando suportamos a tensão. Essa tensão, na verdade, é muitas vezes o fio narrativo e estético das grandes obras, podendo se apresentar de várias maneiras, como a tensão sexual de Instinto Selvagem (Paul Verhoeven) ou a tensão metafísica de Diário de Um Pároco da Aldeia (Robert Bresson). Seja como for, a ideia de uma possível ruptura - de crenças, convenções, paz - é paradoxal, pois só encontra uma forma de sossego com o rompimento em si ou com o abandono das raízes que motivam a própria tensão.
Seja qual for a solução final, é desafiador manter essa tensão não-óbvia viva por toda a metragem de qualquer filme. Por isso, considero um excelente feito (e, como um bom brasileiro, fico orgulhoso) o que O Acidente fez.
No filme, acompanhamos a ciclista Joana que, após um conflito no trânsito, acaba sendo atropelada por uma mulher que dirigia o carro acompanhada do filho, este que filmou a coisa toda. A partir daí, desenrola-se um imbróglio envolvendo uma disputa judicial entre a mulher e o ex-marido, ambos querendo a guarda do filho. Obviamente, a moça atropelada acaba se vendo no meio do fogo cruzado, tornando-se instrumento para uma possível resolução entre o conflito do antigo casal.
Sendo o centro dessa tensão, a protagonista (interpretada brilhantemente por Carol Martins) concentra a força latente de todos os conflitos não resolvidos, encapsulando, de certa forma, as problemáticas contemporâneas que vivemos em nosso Brasil com a polarização política e o crescimento vocal do discurso de ódio. Dessa forma, a personagem não é um elemento de explosão, mas de implosão dos sentimentos e vivências.
Daí, todos os elementos do filme parecem circular em torno dessa tendência à introspecção. Logo no início, vemos a protagonista ocultar o fato de ter sido atropelada e mesmo disfarçar as dores sentidas fisicamente, que só são reveladas com o escorrer do sangue. Da mesma maneira, as vestimentas utilizadas apontam para a direção de uma eterna ocultação de dores, de forma que os ferimentos da protagonista só são vistos durante cenas breves de banho.
Esse movimento de introspecção centraliza a personagem no plano, ao mesmo tempo em que gera uma desconexão com as outras pessoas ao redor. Não é de se espantar que, durante a maior parte do filme, os diálogos ocorram de forma que os interlocutores não tenham sua face revelada no mesmo plano que a protagonista. Joana concentra as dores, mas ao mesmo tempo não consegue externalizá-las.
Uma das poucas conexões que a personagem tem de forma mais explícita é com o filho do casal. Ironicamente, ele segue um padrão semelhante ao de Joana: suas crenças e sentimentos são internalizados, e mesmo a sua apresentação visual - aqui, temos um rapaz com uma grande franja que cobre boa parte do rosto - aponta para um caminho semelhante ao da protagonista.
Portanto, o filme encontra sua força - e, como consequência, sua tensão - no não revelar. É na palavra não dita, no olhar não trocado, na dor não compartilhada que encontramos a vivência silenciada de Joana. Por isso, talvez fique tão evidente alguns momentos mais maniqueístas do filme, como a forma que o pai do rapaz - um militar mais estereotipado possível - é retratado.
Isso, no entanto, não arranha a força total do filme, que consegue carregar em si um verdadeiro grito - ou melhor, uma externalização - de dores que conseguem, ao mesmo tempo, serem gerais (pois representam toda a sangria vivida pelos brasileiros nos últimos anos), assim como íntimas (vividas por Joana, uma mulher lésbica que aguarda ansiosamente o nascimento de seu filho).
Nesse amálgama de dores, O Acidente conduz a tensão de forma muito consistente, sendo desconfortável na mesma medida em que é belo. Quando o fim chega, alívio e sofrer tornam-se um só.
Filme assistido a convite da Vulcana Cinema.
O Acidente está em cartaz nos cinemas.
Nota da crítica:
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