Napoleão é um épico que abraça a mediocridade, onde a magnitude do poder de um imperador se vê diminuída por uma decupagem contida
O cinema sempre expressou um apreço por narrativas épicas de guerras, notáveis por seu teor melodramático, capaz de glorificar os protagonistas e transformar o terror em espetáculo. Embora diversas produções tenham exitosamente traduzido esse poder imagético para as telas, o renomado cineasta Ridley Scott, que vem apresentando certa “perda” de potência em seus últimos trabalhos, enfrenta desafios ao tentar transmitir essa paixão pelo espetáculo em seu filme sobre Napoleão. Estaria a indústria impactando renomados diretores? Ou estariam eles, porventura, "perdendo-se" em suas próprias obras? Afinal, estamos nos referindo a um diretor que domina a habilidade de espetacularizar a ação, como evidenciado em Gladiador e Alien, além de decupar habilmente o melodrama, como visto em Blade Runner. No entanto, o que observamos em Napoleão é um filme fragmentado pelo desejo incessante de números mercadológicos.
Já havia sido divulgado anteriormente, mesmo antes do lançamento de Napoleão, que uma versão estendida de 4 horas seria disponibilizada no serviço de streaming da Apple. Isso deixa claro que o filme exibido nos cinemas não se encontra "completo" ou conforme o diretor idealizava, ou seja, mais uma vez, a indústria cultural molda à autoridade artística de um diretor. Esse fenômeno não é novidade; Hollywood sempre teve o hábito de modificar obras, mas atualmente parece não hesitar em admiti-lo. Em meu recente texto sobre As Marvels, abordei essa questão de forma mais aprofundada. No caso de Nia DaCosta, ela se adapta ao algoritmo da Marvel, enquanto aqui Scott se ajusta ao ritmo que a indústria cinematográfica julga necessário. Três ou quatro horas parecem ser tempo demais para eles. Diante dessa realidade, testemunhamos um épico que assume contornos de mediocridade quando o poder de um imperador é reduzido a uma edição contida. Ridley Scott é um diretor que colabora muito bem com sua equipe de montagem, porém, em Napoleão, testemunhamos uma confusão visual sem precedentes. Com uma montagem desmembrada, o filme de 2h30 se apresenta de maneira apressada, deixando de explorar a profundidade da trama e negligenciando a complexidade de seus personagens.
A relação entre o tempo e o cinema é intrínseca e profunda, refletindo não apenas a natureza temporal inerente à narrativa cinematográfica, mas também as diversas maneiras pelas quais os cineastas manipulam e representam o tempo. O cinema, como forma de arte temporal, utiliza uma combinação única de elementos visuais, sonoros e narrativos para explorar as nuances temporais da experiência humana. Sendo, portanto, uma arte temporal por excelência. Essa sucessão de imagens em constante mudança permite que os cineastas manipulem a percepção do tempo, acelerando, desacelerando, interrompendo ou invertendo a sequência cronológica. Dessa forma, o autor transcende a rigidez do tempo real e oferece possibilidades narrativas únicas.
A montagem, por sua vez, é uma das ferramentas fundamentais do cineasta, desempenhando um papel importantíssimo na manipulação do tempo. A montagem permite que diferentes momentos no tempo sejam conectados de maneiras que excedem a linearidade. Flashbacks, flashforwards e técnicas de montagem são frequentemente empregados para explorar temas como memória, antecipação e a passagem inexorável do tempo. No entanto, Ridley Scott não explora nenhuma dessas possibilidades linguísticas que a forma do cinema pode oferecer. Tudo se apresenta de forma destoante, incapaz de gerar qualquer tipo de estímulo sensorial e emocional.
Se o tempo se manifesta de tantas maneiras na arte do cinema, ele certamente está presente na fotografia. Afinal, o cinema é a arte de capturar as imagens em movimento, ou seja, uma fotografia avançada que não só molda a estética visual de um filme, mas também influencia diretamente a percepção do tempo por parte do espectador. A escolha de técnicas fotográficas, como iluminação, composição, enquadramento e o uso das cores, pode criar uma atmosfera temporal específica, gerando um impacto “palpável” sensacional. Napoleão, contudo, renega toda a magia das cores que circundam a espetacularização e abraça o cinza, resultando em um filme sem alma, sem vida, sem amor. A sensação que dá é que estamos diante de uma obra gerada pela necessidade de vender, de criar demanda, onde o tempo não encontra espaço para ser e pertencer.
Refletindo sobre a representação do tempo no cinema, é crucial destacar que ela não se restringe apenas à dimensão narrativa, como busquei esclarecer. O design de produção, os efeitos visuais e a Mise-en-scène como um todo contribuem para a construção de uma estética temporal única em cada filme. A forma como um diretor movimenta a câmera e a manipula pode alterar a compreensão do tempo dentro da obra, e em épicos, auxiliam na criação do espetáculo. Apesar de Ridley Scott, em suas cenas de ação, conseguir transferir eficientemente o texto para a imagem, tudo se apresenta tão desprovido de vida que as batalhas e o poder estratégico de Napoleão perdem toda a força, não deixando espaço para qualquer chance de admiração.
Entre o espetáculo dos atos de Napoleão, existe um romance, ou pelo menos a ideia de um. A busca constante por desenvolver personagens complexos e multifacetados, diante de todos os entraves autorais, parece resultar em atuações e construção de personagem que nunca atingem seu ápice (se é que isso existe no cinema). Mais uma vez, o tempo não tem liberdade para ser. Josephine grita, mas nunca é verdadeiramente ouvida pelo espectador; o amor extraordinariamente complexo entre Napoleão e Josephine clama, mas não é agraciado. No final, Napoleão torna-se um filme “incompleto”, seja pela indústria da cultura ou pelo próprio “desentendimento” do diretor com sua arte.
Filme assistido a convite da Espaço Z e Sony Pictures.
Napoleão estreia nos cinemas de todo o Brasil nesta quinta-feira dia 23 de novembro.
Nota do crítico:
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