Jordan Peele usa o medo de olhar para o desconhecido como forma de resgatar e homenagear o Cinema enquanto um exercício profundo de observação
Foi Jean Cocteau que disse que “o Cinema é um acontecimento visto pelo buraco de uma fechadura”. Essa visão hitchcockiana do Cinema, a qual André Bazin, em seu artigo “Teatro e Cinema” irá comparar com uma invasão à domicílio, é a prova da obscenidade do ato de “ver” na sétima arte. Observar o outro significa, nesse caso, uma clara invasão de privacidade, mas é um crime que nós enquanto espectadores gostamos de cometer. É curioso pensar nisso porque, desde criança, não consigo pensar em absolutamente nada mais assustador do que ser observada e até hoje, tenho pavor à ideia de acordar e estar sendo observada fixamente.
No entanto, a ideia de observar o outro, especialmente através das telas, sempre foi algo muito bem-vindo. O que é, claro, aparentemente contraditório. Mas, se pararmos para perceber e pensar no Cinema como esse prazer escopofílico e voyeurista, nada faz mais sentido que isso. Observar o outro em nosso local de conforto, no escuro de uma sala de cinema, é muito diferente de estar sendo observado de forma despreparada, desavisada, na rua. O motivo pelo qual eu entendo minha escopofobia é que não posso prever as ações de quem, na espreita, possa estar me olhando. Por outro lado, enquanto espectadora, tenho a ilusão de por meio de uma câmera, deter o poder e a onisciência dos eventos e pensar, comigo mesma, ao fechar das cortinas, “ainda bem que o que aconteceu ao personagem, não aconteceu a mim”.
Contudo, existem alguns filmes que possuem o poder de conseguir nos pôr nos dois locais ao mesmo tempo: o do espectador passivo, escopofílico, que observa tudo e tem consciência da fantasia que se constrói perante a tela, e o espectador moderno que é “abduzido” pelo filme e, portanto, se torna como os personagens, um escopofóbico, que sente a observação na pele e vive, por duas horas, o medo através deles. O terceiro e mais à vontade filme de Jordan Peele é justamente o tipo de obra que com maestria nos apresenta esses dois pontos de vista diferentes. A perspicácia da direção está em usar a câmera tanto como um instrumento de imersão para universo aterrorizante daquilo que não se vê e não-se-pode-olhar, tanto como transformar o espectador no próprio ser aterrorizante ao nos posicionar na perspectiva de quem, com sua observação, assusta.
Desse modo, Peele coloca o desconhecido, o “alienígena”, como uma alegoria para esse instrumento que por anos teve o papel dúbio de ora nos colocar enquanto como testemunhas passivas dos mais absurdos eventos ou, no cinema moderno, como participantes ativos daquele universo: a câmera. Todos os muitos vieses de interpretação dessa obra nascem ou resultam no medo irracional e paralisante de ser observado e, em contraponto, pelo prazer que esse medo proporciona a quem o exerce onisciente. E, o Cinema, sendo a arte de observar o outro e ser observado também, é o grande tema dessa história.
Logo no início do filme, após a marcante cena de abertura, adentramos uma espécie de túnel o qual, ao final, nos leva ao dito primeiro filme feito na história do Cinema, a obra Cavalo em Movimento (1878), de Muybridge. De início, apenas uma série de fotos que, quando justapostas, criavam a ilusão do movimento. Mas que, após isso, possibilitou a criação de muitas outras obras e, mais à frente, o nascimento do Cinema como hoje conhecemos. É mais que claro, portanto, que Peele decide realizar uma homenagem. Mas não sem antes impô-la à críticas e subtextos racial e histórico ora sutis, ora escrachados, sua marca registrada desde filmes como Corra! (2017) e Nós (2019).
No primeiro monólogo que assistimos, a personagem de Keke Palmer concede uma espécie de aula dentro de um set, sobre a origem da sua família, Haywood, de origem negra, que não por acaso tem ligação direta com o experimento de Muybridge. Ali, percebemos que existe um pioneirismo que remonta à uma tradição de séculos daquela família a qual, lamentavelmente, caiu em decadência com a modernidade (talvez uma forma de falar com a decadência do gênero Western na modernidade, também?). Assim, quando os irmãos Haywood se deparam com a existência de um OVNI em sua fazenda, percebem nisso a oportunidade de voltarem da beira da falência e, então, poder assumir o papel de relevância que um dia já foi deles.
Por si só, essa história central já conversa bastante com toda a trajetória do Cinema desde sua concepção até os dias atuais, carregando consigo uma crítica em como a modernidade nos transforma em ávidos consumidores do entretenimento, desvalidando e esquecendo um pouco a cada dia, o pioneirismo da arte e suas origens. Mas, se adicionarmos o fato de que observamos não apenas a história desses irmãos, como também a da tragédia do macaco Godry que se revolta ao recusar-se em ser domado pela indústria e a história de um ilusionista de Circo que é sobrevivente de tudo isso, interpretado por Steven Yeun, temos uma vastidão imensa de críticas e interpretações que são feitas através de muitas simbologias que vão surgindo a cada mise-en-scène.
Acredito que a vontade de Peele, no caso, foi exatamente essa: nos dar a sensação de que tudo tem um porquê. Mas nem tudo precisa ser explicado. Ao recusar-se em adotar o mesmo tom autoexplicativo de filmes anteriores, o diretor se permite ser mais criativo e deixar, assim, boa parte das suas críticas para a imaginação de cada um. O prazer que eu tive assistindo Nope! foi de justamente me permitir não entender ao certo o que significa um sapato sujo de sangue e em pé. Foi aceitar essa ideia lovecraftiana, emprestada de Twilight Zone, Tarantino, Spike Lee, Spielberg e muitos outros, que nem tudo precisa estar completamente explícito, à lá “Fuck the Police”, para fazer total sentido dentro daquele universo de coisas improváveis.
Uma das cenas mais interessantes do filme, sem dúvida, é quando na perseguição que existe do lado de fora das fazendas Haywood, Peele nos permite entrar na perspectiva da câmera, do gerador de medo. Sobrevoamos o personagem de Kaluuya como se fossemos o objeto não-identificado daquela dimensão, completamente à vontade com a ideia de gerar medo no outro, ao passo que sentimos o mesmo terror de quem, de alguma forma, apavoramos. É quando volto à ideia do prazer escopofílico, do início do texto, a partir do qual o Cinema, ao meu ver, jamais existiria sem. Nope! vem apenas confirmar tudo isso e, então, nos por nesse local de reflexão sobre todos os seus subtextos e suas críticas centrais, que ao final acaba reivindicando o apagamento histórico sofrido por minorias desde a concepção do Cinema.
Ao finalizar o seu filme, o diretor decide ficar gravado em nossa mente com uma cena final de arrepiar, onde a origem da cena de abertura, desse túnel que desemboca na luz do Cavalo em Movimento (1878), acaba nos levando à um poço artesiano (localizado em um Circo, local intrisecamente ligado à origem do Cinema) que funciona como uma câmara escura e captura a mesma câmera propulsora do medo, para o seu interior ao apaziguar essa observação e, então, finalizar com uma cena digna de clássicos filmes Western, algo que enxergo não apenas como uma homenagem ao Cinema e sua origem, como também ao gênero que é, até hoje, o mais elementar do Cinema Americano.
Com maestria e um domínio impressionante sobre a câmera, o som, o design de produção e os próprios atores, e tudo aquilo que quer transpor para o espectador em termos de emoção e perspectiva, o diretor se consagra com mais um filme que não irá sair das nossas mentes tão cedo. Peele finalmente passa a compreender e reconhecer o impacto das imagens e usá-las ao favor da sua narrativa, deixando para o subtexto aquilo que de fato é necessário se deixar. Enquanto isso, o medo de ser observado e o prazer de observar, embora alegórico, é latente.
Nope! é uma crítica à indústria do entretenimento desenfreado e infundado, àquilo que não se pode domar, ao apagamento histórico das minorias na origem dessa arte, e muitos outros vieses que não conseguimos ver de primeira, nem de segunda. Mas, também, é uma homenagem à história do Cinema, ao Western e à ficção científica e, principalmente, aos que se desafiaram a filmar o impossível. Até porque, se pararmos para pensar, é justamente essa arte que faz o impossível ser possível, todos os dias. Faz a ideia de filmar pessoas sendo filmadas por um objeto não-identificado algo real e muito, muito apavorante. Por isso,
muito mais que entender todos os símbolos, o filme me faz querer festejar o impossível. E, assim, também homenagear com meu olhar, todos aqueles que, ao longo da história do Cinema, se propuseram a fazê-lo.
Nota da crítica:
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