“O Pescador de Ilusões” e a relação entre o sagrado e o ordinário
- Pedro Daher

- há 5 dias
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Filme de Terry Gilliam — famoso por seu humor ácido e elementos de exagero com recortes caricatos — é sensível e melancólico, sem deixar de flertar com a psicodelia

Contos de fadas e aspectos lúdicos do universo fantástico sempre couberam em recortes de realidade, na literatura e no cinema. Mas poucos cineastas conseguiram trazer características emocionais a uma cidade cinzenta como a Nova York dos anos 80, tomada por individualidade e ações automatizadas, onde ninguém reflete sobre o que faz ou como faz, à maneira de Terry Gilliam, em “O Pescador de Ilusões”, de 1991.
Os filmes do cineasta estadunidense não são particularmente conhecidos pela simetria, didatismo ou por serem agradáveis de olhar. Na verdade, a fotografia sempre opera a favor da funcionalidade burocrática do cotidiano, das operações invisíveis sistematizadas que mais aborrecem do que causam conforto ou prazer.
Há sempre um aspecto labiríntico no decorrer dos estabelecimentos, um quê de claustrofobia e sufoco, tanto para o espectador que acompanha a irritante ausência de entropia nos caminhos oferecidos, quanto nas personagens que tendem a se rebelarem ou mudarem o rumo de suas vidas por não se encaixarem no esquema proposto pelas obras. O cinema de Gilliam tende a repelir, afastar, todo e qualquer sintoma de regularidade na vida de suas personagens, que sempre precisam buscar algo para além dos conformes e do que é oferecido, fugindo ou se estabelecendo em uma sociedade alternativa .

Logo no início, o filme parece interessado em mostrar como uma pessoa egoísta e arrogante pensa. Jack Lucas (vivido por Jeff Bridges, com cacoetes que seriam adotados em outros papeis) é um radialista inconsequente e imprudente, que destila ódio e sarcasmo em seu programa de projeção nacional e nunca acha que a conta chegará. Sua vida muda pela primeira vez quando ele é obrigado a zerar tudo e descobrir um outro jeito de viver, sob uma nova perspectiva. Uma de suas falas resulta em uma tragédia que move o sentido do filme e traduz assombração em uma bela sinfonia de redenção impulsionada pelo poder da amizade (talvez um tanto quanto encharcada demais de conselhos de auto-ajuda para quem já tinha dirigido Brazil - O Filme e outros filmes mais abstratos). Um de seus ouvintes promove um massacre em um restaurante, matando sete pessoas.
Enquanto Parry (interpretado por Robin Williams), um ex-professor que desenvolve Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) após ter perdido a esposa no contexto do assassinato, se tornando uma pessoa em situação de rua. A metáfora que nasce da união de Jack e Parry é a tentativa de alcance a um delírio épico: a busca por um cálice vazio de sentido guardado em uma das prateleiras de um ricaço da Sétima Avenida que, no delírio de Parry, significa o cumprimento de um propósito, de ascender rumo a um milagre, já que a humanidade foi perdida.
Nas coadjuvâncias, Anne (Mercedes Ruehl), a namorada extremamente participativa de Jack, em um papel que lhe rendeu o Oscar de atriz coadjuvante. Ela toca com maestria uma videolocadora que também é um refúgio de mágoas reprimidas em que a arte salva a vida —de outras pessoas— algumas vezes, e é ela quem oferece um prazo de renovação ao despertar de novos sentimentos. Lydia (Amanda Plummer) reveza entre a contenção do cinema mudo, com um charme atrapalhado e gestos retraídos a alertas de apego que levam ao desespero da solidão. Ela faz o contato mais tangente de Parry com o romance de outrora, com a ternura que ele um dia conheceu, ainda que a imagem que ele tenha da moça seja apenas uma projeção e ele não saiba absolutamente nada dela além do que imagina. No fundo, os dois vivem um tormento com momentos de leveza e afago.

O que sustenta o pesadelo que Parry e, em outra instância, Jack, vivem são as cenas noturnas, que mais parecem nos levar a outra dimensão, a uma caverna de sensações esquecidas e muito, mas muito pesar. Há muitos toques artesanais na construção desse pesadelo, e também do sonho acordado durante o dia. Parry vive entre materiais de sucata, e Jack incorpora as vestimentas e as crenças do amigo, mesmo que ainda possua um pensamento corporativo e por muito tempo acredite que toda essa “missão” não passe de uma grande bobagem.
Ao longo do filme, Gilliam adota como questionamento a ordem das posições sociais e laços de afeto, com acidez, mas dessa vez com o acréscimo de um novo elemento, que torna seu filme extremamente palatável: melancolia, daquela que contamina memórias e aos poucos corrói a noção do passado, trazendo às personagens distorções sobre quem elas são e quem representam.
Nota da crítica:

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