A sedução do mal é a porta de entrada para um dos trabalhos mais emocionalmente densos do gênio Martin Scorsese.
A estética é moral e, quando falo de estética, não me limito a uma questão visual, mas a todo um conjunto de sentidos que permitem nossa compreensão do mundo. Sendo assim, no cinema, a estética pode ser entendida como o conjunto de escolhas que definirão a forma que enxergamos (e ouvimos) o universo ficcional apresentado. Isso se reflete na montagem, no modelo de atuações, na forma que o texto é entregue, nas músicas escolhidas, entre outros. Como consequência lógica disso, podemos afirmar que os diferentes gêneros cinematográficos carregam cargas morais de suas formações históricas e estéticas.
Toda essa introdução busca preparar nossa percepção sobre um dos gêneros mais antigos do cinema: o faroeste. Com sua rica exploração dos cenários naturais, a ideia de um desbravar do homem (branco) através do deserto selvagem e da luta pelo sonho americano, o cinema western é o sonho de muitos, mas também o pesadelo de tantos outros. Historicamente, os “vilões” estão muitas vezes ligados à cultura indígena, como podemos ver em Rastros de Ódio, de John Ford. Da mesma forma, os heróis costumam ser homens brancos corajosos que solucionam seus problemas através da violência, mesmo indo contra as diretrizes da justiça oficial.
Com isso em mente, Martin Scorsese escolheu uma história real para nos apresentar um faroeste em transformação, autoconsciente e, dessa forma, ciente de suas próprias limitações. É interessante, contudo, que essa autoconsciência não vem de uma forma professoral ou mesmo tacanha, como quando certos filmes parecem zombar de suas próprias raízes cinematográficas. Aqui, na verdade, Scorsese reafirma a origem do western em cada escolha formal e narrativa: há o olhar para o deserto de Oklahoma como uma terra de oportunidades, a cidade em crescimento e efervescência, o protagonista (Leonardo DiCaprio) com sua ambição conquistadora e a montagem serena, mas ágil, que reafirma a velocidade com a qual as transformações urbanas chegam. Tudo isso vem acompanhado de uma trilha estimulante e que exala o sentimento de mistério e aventura.
Essas características, se mantidas do começo ao fim do filme, poderiam tornar Assassinos da Lua das Flores mais uma homenagem ao gênero do que qualquer outra coisa. No entanto, ao percebermos que a história na verdade revela um esquema bárbaro de violência e roubo contra os povos originários, fica evidente que Scorsese não quer exaltar o colonialismo e o racismo, mas revelá-los como parte de uma estrutura que, em certas circunstâncias, é um tanto sedutora.
Por isso, não é surpresa que a elaboração dos esquemas de assassinatos no filme sejam tão engajantes. Thelma Schoonmaker - editora que trabalha com Scorsese há décadas - monta esses momentos com grande agilidade, algo que até nos remete aos filmes de assalto, onde vemos uma construção de planos elaborados e inteligentes. Isso é reafirmado ainda pelo personagem interpretado por Robert de Niro, sempre calmo e sereno, mas com palavras fortes que revelam a violência real que ele planeja.
Essa lógica apresentada pelo filme - que ganha ainda mais potência pelo carisma natural de cada um dos atores escolhidos - torna a ideia da violência sedutora. Pela escolha de Scorsese de acompanharmos tudo através dos olhos dos criminosos, somos colocados numa posição de comparsas passivos, de forma que não praticamos o mal diretamente, mas nos deleitamos com o processo que nos é exibido. Essa passividade, inclusive, é uma das bases do próprio fazer cinematográfico e, ao optar por potencializá-la, Scorsese nos proporciona uma situação de estranho desconforto e paradoxo, onde nos engajamos pelo que é mostrado em tela - e pela forma que é mostrado -, mas também temos plena consciência da monstruosidade do que será feito.
Essa escolha, obviamente, poderia fazer o filme caminhar por uma estrada moralmente reprovável e até mesmo hipócrita. Entretanto, Assassinos da Lua das Flores entrega sua principal carta na execução dos planos criminosos, isto é, nos assassinatos em si. É nessas cenas que Scorsese rejeita qualquer estilização proveniente dos antigos filmes de faroeste. Não há música, planos engajantes ou montagem veloz. São cenas simples e em planos mais abertos, onde os personagens são brutalmente assassinados sem meias palavras. Não há uma dramatização explícita ou uma exploração dessa violência. São só assassinatos frios e calculados.
Essa escolha estética - e, portanto, moral - traz um choque diante de tudo que vinha sendo mostrado. O filme constrói uma ideia sedutora e formalmente confortável (pois nos remete ao western tradicional que já conhecemos), tudo isso para nos arrancar desse torpor estético e nos revelar o peso real por trás de cada uma dessas escolhas. A passividade se transforma em um horror seco e sem arrodeios. Nesse sentido, Assassinos da Lua das Flores não é - e nem quer ser - gratificante.
Essa conversão do faroeste para o anti-faroeste também encontra um fio de condução da representação dos povos Osage. Ainda que sejam as vítimas, eles não são santificados, mas revelados como um povo que, aos poucos, foi perdendo sua ligação com o natural (as poucas cenas fora da cidade são apaziguadoras e distantes do agito urbano) e engolidos pelo “estilo de vida americano”, estilo esse que enxergava os povos originários apenas como selvagens a serem explorados e nada mais. Paradoxalmente, essa desconstrução cultural foi incentivada - e empurrada - pelo próprio Estado, que obrigava aquele povo a inscrever seus filhos em escolas cristãs, por exemplo.
Como consequência, a paz das imagens naturais contrasta com a paisagem urbana em que os cidadãos não-indígenas parecem mais como lobos observando suas presas do que qualquer outra coisa. Esse olhar essencialmente racista se revela integrado àquela sociedade e conduz a diálogos que mostram a naturalização daquele discurso e, mais uma vez, a monstruosidade dos perpetradores da violência.
Nessa dança do western com o anti-western, Martin Scorsese reconhece suas próprias limitações e, em um dos finais mais brilhantes de sua carreira, revela como é impossível termos a verdadeira noção dos sofrimentos das vítimas. Ao invés disso, ele opta por apontar a força sedutora e, com isso, nossa própria conivência passiva para com os autores de tão severa violência.
Não obstante, o diretor expõe ainda a sistematização e repetição dessa violência. Disso, a duração de quase 3 horas e meia do filme leva a fadiga que, propositalmente, desgasta o engajamento causado pelo desenvolvimento dos esquemas criminosos. A violência e opressão se tornam parte da própria estrutura narrativa e cansam, surgindo mais como um vício de parte da sociedade do que como uma “aventura criminosa”.
Ao fim da projeção, revolta e exaustão se misturam. Em uma empatia que se desenvolve através das escolhas da linguagem - com destaque especial ao ritmo adotado -, Martin Scorsese apresenta uma de suas obras mais pesadas emocionalmente e, ao reconhecer seus próprios limites, nos presenteia com um dos épicos mais brilhantes do ano.
Nota do crítico:
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