A mise-en-scène como vida e a vida como tragédia no mais recente melodrama de Christian Petzold.
Este texto contém spoilers.
Afire (em alemão, Roter Himmel), algo como “céu vermelho” no idioma original e “em chamas” no inglês, é o novo filme do alemão Christian Petzold (Phoenix, Undine), uma da grandes referências do melodrama contemporâneo. Seu filme mais recente, com influências declaradas das obras de Éric Rohmer, as quais Petzold maratonou durante a pandemia da Covid-19, retoma a tradição dos “filmes de verão” pelos quais o cineasta francês ficou mais conhecido. A obra encena as férias de verão de dois amigos, Leon (Thomas Schubert) e Félix (Langston Uibel), que acidentalmente se encontram com Nadja (Paula Beer) e Devid (Enno Trebs), com quem desenvolvem relações por vezes românticas, por outras complexas. Enquanto as personagens desfrutam as férias de verão e trabalham (Leon escreve seu livro, Félix desenvolve seu portfólio artístico a partir de fotografias do mar), cresce a ameaça de queimadas que se alastram pela Alemanha. É interessante já notar, aqui, como apresenta-se uma recorrente oposição melodramática entre dois elementos primordiais: a água, no mar, e o fogo, das queimadas; é uma disputa dialética entre o mergulho na profundidade das emoções e aquilo que queima o coração, também muito bem trabalhado em outro grande melodrama recente - Retrato de Uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma.
Na ação que se desenvolve em Afire, a princípio, as personagens estão protegidas do risco do fogo por conta de sua localização, porém, ao longo da obra, começa a importar menos o fator lógico/espacial do fenômeno geofísico, e este passa a assumir uma categoria de ordem simbólica, alastrando-se ferozmente em direção à casa de praia das personagens - ao mesmo tempo em que as relações entre estes se aquecem, chegando perto de queimar. O resultado do avanço das queimadas é trágico como se anuncia: resulta na morte de Félix e Devid, que viviam um romance, com seus corpos queimados permanentemente presos um ao outro, e suas mãos entrelaçadas pelo fogo. Leon, que tentava aproximar-se de Nadja, por quem se apaixona ao longo do filme, tem esta aproximação interrompida pela chegada do “céu vermelho”.
A partir destes elementos, Petzold constrói um filme filosoficamente trágico, no sentido nietzschiano, que percebe a vida, inclusive em seu horror, como uma poesia trágica, uma obra de arte. Diante das queimadas, Petzold filma seus atores sempre muito bem integrados ao ambiente ao redor, situados espacialmente na mise-en-scène. Ao não separá-los da natureza que os cerca, o diretor une os diferentes acasos narrativos com os quais trabalha - as férias de Leon e Félix, seus trabalhos individuais, a presença de Nadja e Devid, o fogo que se alastra - em torno de um só ponto de chegada, que se trata essencialmente do contato individual de Leon, que assume o protagonismo do filme (sobretudo possuindo o protagonismo do olhar), com o mundo ao mesmo tempo que se trata também do mundo em si com o qual ele se relaciona. Petzold consegue nessa união indivíduo e mise-en-scène aludir ao que Lenin escreveu sobre a relação dialética entre particular e universal, que muito bem cabe à encenação cinematográfica, especialmente no melodrama, gênero que tende a assimilar o universal a partir da esfera particular, individual:
"Por conseguinte, os opostos (o singular se opõe ao universal) são idênticos: o singular só existe na ligação que conduz ao universal. O universal só existe no singular, através do singular. Todas as coisas singulares são (de um ou de outro modo) universais. Cada coisa universal é uma parte, ou um lado, ou a essência do singular. Qualquer universal abarca apenas aproximativamente todos os objetos singulares. Qualquer elemento singular só entra incompletamente no universal. E assim por diante."
(Retirado de "Introdução à Estética Marxista", de Georg Lukács, que por sua vez cita Lenin a partir de "Obras Filosóficas Póstumas, Viena-Berlim, 1932, pág. 287")
É precisamente essa compreensão dialética do cinema que coloca cineastas como Petzold anos-luz de distância de uma certa tendência contemporânea que compreende a individuação melodramática como mero hiperindividualismo pós-moderno e, com isso, isola os atores do todo da mise-en-scène, jamais conseguindo situar os indivíduos nos ambientes que alimentam e pelo qual são alimentados. Também, ao desenvolver esta dialética na objetiva, Petzold vai estabelecendo a tragédia como matéria-prima poética: a partir dos cadáveres de Félix e Devid entrelaçados ou pela perda do amor que leva Leon a finalmente escrever uma obra literária, o que vinha tentando fazer ao longo do filme sem sucesso, com sinceridade. Porque, vejamos que, até então, Leon era um voyeur do mundo: ele olha, mas esconde-se de ser olhado. Ele vê Nadja, que devolve o olhar, mas Leon esconde-se e, em seu voyeurismo, castra-se e impede-se de viver uma experiência tácita com aquela realidade. Do outro lado, seu amigo Félix, fotógrafo, vive o verão e os amores no corpo, e por fim olha a partir do que sente sua pele - por isso suas fotografias ressoam com aqueles que as veem. Quando Leon finalmente dá corpo à sua escrita, são as fotografias de Félix que tornam-se o olhar de seu livro, compondo as imagens finais da obra do amigo.
Para tanto, Petzold conduz tudo de maneira muito sutil, sob uma simplicidade profunda de ações, estabelecendo suas personagens a partir de ações elementares, como: um plano dos olhares constantes de Nadja para Leon durante a primeira conversa que todos têm à mesa, seguido do contraplano de seu incômodo com a situação; ou a partir do cabelo de Paula Beer como Nadja, que parece uma floresta queimando a partir de suas mechas ruivas - vale ressaltar como Petzold não banaliza a presença deste elemento na cena, e filma com muita atenção à textura dos fios de Nadja, a la Hitchcock com os cabelos de Kim Novak em Vertigo. O que isola Leon do ambiente que o cerca também está na mise-en-scène (e não em sua negação): a maneira como se veste, seu olhar e expressões de descontentamento, constantemente isolam-no do clima de "férias de verão" que circunda as outras personagens.
A própria catarse melodramática ao final também só é possível pela sutileza e simplicidade de um plano-contraplano, que ao mesmo tempo que proporciona um reencontro (fragmentado espacialmente) entre Nadja e Leon, deixa em aberto sua concretização - assim, os dois se reencontram pelo olhar, ao mesmo tempo que se desencontram pela montagem, que se recusa a apresentar uma última imagem reveladora. Jamais saberemos se Leon, ao viver a tragédia tacitamente, conseguiu arder sob os cabelos de Nadja, visto que, ao fim, estão juntos novamente e ao mesmo tempo apartados, numa contradição dialética que somente é possível ao cinema.
Nota do crítico:
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