Em mais recente trabalho, Scorsese busca um equilíbrio entre a importância de seu tema e os seus interesses criativos mais particulares
Apesar de enfatizar a importância de seu tema e de retratar os Osage de forma respeitosa, “Assassinos da Lua das Flores” não deixa de ser um blockbuster que se vale de um relato histórico para conceber uma dramatização, em muitos sentidos, tipicamente hollywoodiana. O interessante, contudo, é a forma como o próprio filme reconhece isso. Nesse painel, Scorsese se coloca tanto na posição de “aliado”, quanto reflete de maneira autocrítica sobre o fato de estar, no fim das contas, explorando o trauma de uma cultura nativa para fazer o tipo de filme que lhe interessa.
Localizando-nos na relação entre um homem branco e uma mulher indígena, Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e Mollie Burkhart (Lily Gladstone), a trama explora diferentes gradientes de violência, por assim dizer: desde atos mais grandiloquentes, como os titulares assassinatos, a formas mais sutis de violência presentes nas relações e atitudes miúdas. A espinha dorsal de “Lua das Flores”, afinal, é a violência iminente na forma como uma cultura se impõe sobre a outra, que é retratada por Scorsese de maneira sóbria e melancólica.
Ao longo do filme, a cultura dos Osage vai perecendo com a crescente influência dos homens brancos. Na verdade, desde a primeira cena a chegada do homem branco é tida não apenas como o prenúncio de uma onda de assassinatos, mas como o primeiro prego no caixão de todo um modo de vida. A própria longa duração do filme, bem como o envenenamento paulatino de Mollie, reflete essa morte gradual, em que os assassinatos nada mais são do que a etapa mais incisiva de um projeto de extermínio cultural.
Ademais, o aspecto mais notável do filme é o seu trabalho de caracterização. Dado o foco na implicação genocida de interações cotidianas, a construção de personagens autênticos e dramaticamente significativos era fundamental; portanto, é gratificante que a maior potência do filme esteja em como ele lida com seu elenco. E o destaque, é claro, vai para a dupla protagonista: Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone.
No que tange a Ernest Brukhart, personagem de DiCaprio, trata-se de um sujeito desprezível cujo senso de superioridade advém unicamente de estar associado ao rancheiro William Hale (Robert DeNiro), mas é um indivíduo subserviente e impotente. O traço definidor de seu caráter não é outro se não a covardia, e o mais interessante é o modo como isso subverte a típica caracterização do homem branco (estrelado por uma grande celebridade) do cinema hollywoodiano: ao invés de ser admirável e de incorporar valores de prestígio social e nacional, DiCaprio dá vida a um homem obtuso que, na verdade, revela a truculência e a covardia do branco colonizador.
Lily Gladstone, por outro lado, é um show à parte, emprestando o seu ar sereno e astuto a uma personagem que emana um senso muito peculiar de sabedoria. Com efeito, quando posta em contraste a DiCaprio, todas as dimensões temáticas do filme – as incongruências culturais entre brancos e nativos estadunidenses e, em especial, a sugestão de violência sempre presente nas formas como aqueles se colocam em relação a estes, mesmo que involuntariamente – ficam em evidência; por isso, as cenas dos dois estão entre as melhores do filme.
Apesar de tudo isso, contudo, “Assassinos da Lua das Flores” possui um enredo tipicamente “Scorsese”. A estrutura narrativa, por exemplo, remete a filmes como “O lobo de Wall Street” e “Os bons companheiros” – e não apenas porque “Lua das Flores”, como o primeiro, tem Leonardo DiCaprio como um protagonista que acaba confessando os seus crimes num tribunal, ou porque, como o segundo, tem Robert DeNiro como o antagonista que acaba sendo delatado por aquele que antes fora o seu protegido. Mais do que isso, as maquinações dramáticas são as mesmas: os três filmes podem ser descritos como trabalhos sobre um personagem de moral ambígua que dá cabo às suas motivações criminosas até ser capturado e punido pela lei.
Na verdade, o filme tem a estrutura de um blockbuster hollywoodiano de sucesso propriamente: conflito claro e bem estabelecido, antagonista decididamente “do mal”, subtrama de romance que se entrelaça com os temas sugeridos pelo enredo, resolução definitiva e, ao menos no plano narrativo, moralista (no fim, Ernest é punido pelos seus crimes e pela sua falha de caráter). Sem contar o elenco de peso, que é um agrado por si só, a maneira como o filme se alimenta de tropos de gênero do western e do filme de máfia (este último que parece ser uma preferência quase inconsciente de Scorsese) e que a experiência como um todo, apesar da metragem intimidadora, é consistentemente estimulante, cortesia da trilha-sonora primorosa de Robbie Robertson e do instinto de montagem inigualável de Thelma Schoonmaker.
Ora, convenhamos: quem em sã consciência iria assistir a um filme sobre o extermínio de uma comunidade indígena relativamente desconhecida não fosse este o assunto do mais recente longa-metragem de Martin Scorsese e estrelado por alguns dos maiores titãs do cinema hollywoodiano contemporâneo? Poucos espectadores, provavelmente. E Scorsese sabe disso; por isso, decide assumir-se como o arquiteto da dramatização, num epílogo em forma de rádio-teatro metalinguístico que, diga-se de passagem, é um deleite para o cinéfilo apaixonado (e fã de Jack White).
Com este movimento, Scorsese, em primeiro lugar, clama para que o espectador não se contente com o simples fato de que o filme trata de um tema importante para, então, se esbaldar com o espetáculo cinematográfico feito de romance, traições e intrigas. Com efeito, Scorsese estabelece o mesmo precedente para si, não se permitindo supor que seus interesses particulares, no fim das contas, não se sobrepõem aos seus temas. O que, acima de tudo, é de uma honestidade notável. E, em segundo lugar, tal movimento revela uma certa autoconsciência, da parte do cineasta, acerca do próprio estilo de cinema, introspecção esta que tem sido uma das marcas de seus últimos filmes e é, enfim, um dos mais animadores sinais de sua vitalidade artística.
Nota do crítico:
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