Steven Spielberg dá um tratamento digno para um universo de referências enquanto força as barreiras do real e digital na linguagem
Não muito tempo atrás escrevi sobre Thor: Amor e Trovão e, no texto em questão, argumento um pouco sobre como os filmes de heróis progressivamente deixaram de ser e acabaram entrando em um espiral de não existência. Tal julgamento se estende a todos os filmes fruto de um algoritmo, grandes blockbusters com toneladas de computação gráfica e às franquias intermináveis que inflam os cofres de grandes estúdios. Todavia, mesmo que por um breve relance, ainda vejo esperanças no blockbuster e, para provar minha fé, resgato aquele que o criou.
Em 1975 Steven Spielberg lançou essa tendência no cinema com Tubarão e, desde então, foi um expoente em sua produção. É inevitável dizer que os diferentes enredos que levava a tela tinham apelos mais populares, afundando-se na ficção científica e no melhor que a ação e a aventura poderiam oferecer para construir sua encenação e, nessa, jamais poupou recursos e profundidade. Não necessariamente em relevância e importância, mas quando trata-se da harmonia na movimentação entre atores e câmera, eu ousaria dizer que o diretor tem um talento muito semelhante ao próprio Hitchcock. Isso sem falar no papel que exerceu em uma certa revolução nos efeitos especiais.
Interrompendo a rasgação de seda, me direciono para o ponto central desse texto, atestar Jogador N° 1 (2018) como a prova de que Steven Spielberg ainda oferece substância nesse tipo de produção. Sendo não só acessível e popular, ele também revela que até alguns dos maiores clichês do cinema atual conseguem galgar ainda mais profundidade quando usados a favor da proposta, isso entre outros aspectos bem interessantes que gostaria de pontuar, então permita-me explicar.
Bom, o diretor foi um dos responsáveis por fundamentar o que hoje conhecemos como cultura pop, então, por si só, o filme já diz muito a respeito não só sobre o que ele ajudou a criar como também ao seu trabalho em si. De qualquer modo, é o trato que dá para tais referências, com peso e relevância, que o tornam tão poderoso. A maioria dos filmes “teens” que apelam para esse recurso, na esperança de se conectar com a audiência através de seus outros gostos, mantém a referência na fala ou na simples reprodução, seja de uma música, trecho de um filme ou personagens jogando a algum jogo, por exemplo. Aqui elas são uma parte indistinguível da narrativa, as regras de seus universos se mesclam com as do próprio filme para criar algo novo ainda que atracado com o material fonte.
Tomemos de exemplo o segmento em que as personagens adentram o tão temido Hotel Overlook de O Iluminado. Não cabem nos dedos das mãos as vezes em que a cena de Jack Nicholson atravessando a porta com um machado foi reproduzida em outras mídias, mas na maioria desses exemplos é como se a obra em questão parasse para que o espectador possa relembrar o trabalho de Stanley Kubrick. Spielberg traça um caminho um pouco diferente, ao invés de dividir seu público, uma vez que quem tem a referência em questão é temporariamente transportado e quem não tem acaba não experienciando-a, o diretor prefere pegar na mão de ambos para mergulhar no universo que vai referenciar. Aqui não só mostra o hotel, as páginas do livro que Jack está escrevendo, o quarto 237, as gêmeas, o mar de sangue e todos os aspectos clássicos de um dos melhores horrores da década de 80, mas ressignifica todos à seu favor.
Então agora não temos só Jogador Nº 1 ou O Iluminado, temos uma amálgama entre ambos. As folhas agora contam as horas, a criatura do quarto 237 é uma ameaça muito maior, o machado varia de tamanho e até mesmo o grande salão de baile ganha uma nova função. Não acho que seja sobre ter ou não ter a referência, acho que é mais sobre como usá-la, como ela funciona dentro do filme. Felizmente, aqui funciona muito bem.
Outro êxito do diretor é saber usar o digital para amplificar a experiência sensorial que o cinema pode proporcionar. Aliás, não é muito difícil ver diretores que, por mais que tenham até algo interessante para apresentar, se percam justamente na criação de uma mise-en-scène dentro da computação gráfica. Todavia, como estamos falando de Steven Spielberg, isso não é um empecilho e é, inclusive, um de seus maiores trunfos. Para exemplificar vou falar de uma sequência pequena, tão autorreferente quanto o restante do filme, mas que, para entender a sua relevância, precisaremos olhar mais uma vez para o passado.
Voltando para 75, um dos recursos utilizados pelo diretor que mais impressionam visualmente em Tubarão é o cunhado Efeito Vertigo (imortalizado por Alfred Hitchcock em Um Corpo Que Cai). Nele a câmera é aproximada de um objeto, muitas vezes o rosto dos atores, enquanto a lente vai abrindo, tendo menos zoom. O resultado é uma ilusão que parece remodelar o objeto e, normalmente, é usado para explicitar uma grande realização, a chegada de uma ideia ou algo do tipo. Esse é um efeito prático, feito com câmera, lente e um trilho que movimenta o equipamento, portanto, tem limitações físicas para acontecer, como o comprimento do trilho, a distância focal da lente, o próprio peso do equipamento, a dificuldade em sua operação e até mesmo ter um espaço minimamente amplo para fazê-lo funcionar.
Como Spielberg curva a computação em prol do cinema e não o contrário, ele acha o ambiente perfeito para transpor as barreiras do mundo real e elevar esse mesmo movimento a uma escala completamente diferente. Em um pequeno trecho, o vilão Nolan Sorrento entra no campo de batalha e, para revelá-lo, o diretor usa justamente o Efeito Vertigo. Entretanto, sem as amarras as da realidade, tema que inclusive é desenvolvido no próprio enredo, ele pode cruzar uma distância surreal para trazer esse efeito para tela. A câmera cruza o que parecem ser centenas de metros e vai de um ângulo extremamente fechado para uma grande angular em questão de milésimos de segundo. Na vida real, ao menos nas condições que temos hoje, algo dessa magnitude seria, se não impossível, muito improvável.
Um tratamento extremamente refinado para os parâmetros tão duvidosos do “cinema pop”. Não é como se olhasse para a computação como um grande remendo, apenas para solucionar seus problemas e corrigir suas imperfeições visuais, é uma preocupação que precede o processo de pós-produção, construindo toda a obra em uníssono com a ideia de fazer algo sem amarras, possibilidade que tem exclusivamente da animação 3D. Sinto que alcança uma esfera ainda mais especial uma vez que o diretor tem essa alcunha de trazer sonhos para a realidade e, agora, acha no universo digital uma maneira de expandir sua linguagem.
Acho que, dentro de determinadas ressalvas, dá para dizer que esse é um filme muito autoconsciente. Não necessariamente em ter plena noção de ser um filme, mas sim no desenvolvimento de sua narrativa, quase um organismo vivo, construído através de muitos outros. Steven Spielberg é não só um precursor (que por si só já é digno de muitos créditos), mas também um reconstrutor.
Nota do crítico:
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