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Foto do escritorFabiana Lima

Holy Spider (2022)

Se é verdade que um filme nasce a partir do espectador, a violência, quando retratada no Cinema, abre espaço para vários caminhos interpretativos



Aos diretores que optam por não nos poupar dos choques visuais causados por cenas violentas, a acusação de uma possível fetichização é sempre uma possibilidade. No entanto, enquanto alguns espectadores irão seguir o caminho simplista e até mesmo conservador, da condenação da violência nas telas, outros podem se permitir enxergar a importância de certos choques visuais como um importante elemento de impacto para um filme. Em Holy Spider, Ali Abbasi faz escolhas corajosas na busca por esse impacto e confia aos seus espectadores uma maturidade interpretativa dessas cenas, até o último minuto, onde o choque dos violentos assassinato (mais especificamente, estrangulamentos) são justificados com um final tão impactante quanto toda a crueldade que se faz presente no seu desenvolvimento.


O filme, baseado em eventos reais que ocorreram no Irã no início dos anos 2000, conta a história do serial killer Saaed Hanae que se tornou uma espécie de mártir para fundamentalistas religiosos da região após assassinar brutalmente dezesseis mulheres. O homem, que parecia extraordinariamente comum, jantava com sua esposa e filhos como se qualquer um fosse mas, às quintas, Saaed saía nas ruas de Mashhad com sua moto à procura de prostitutas, as quais estrangulava até a morte com a justificativa de que estaria limpando o pecado e a “sujeira” das ruas. Homem extremamente religioso que era, Saaed não acreditava estar cometendo um crime - mesmo quando suas vítimas imploravam pela própria vida ele era impiedoso e cruel. Sua empatia e humanidade são seletivas e estão a serviço de um perigoso fundamentalismo religioso, encorajado pelo próprio estado iraniano.



Não bastasse o próprio tema do feminicídio ser relevante e fazer parte de um extenso debate atual, Holy Spider também abriga embates morais dentro dessa sociedade religiosa, especialmente de ordem social. Afinal, quem eram essas mulheres que foram assassinadas? Porquê eram tão vulneráveis? Em uma cena específica, a jornalista investigativa que divide o protagonismo do filme com o serial killer que tanto quer capturar, é assediada pelo próprio delegado que seria o responsável por investigar os crimes tão brutais e representar a lei. Fica nítido, portanto, que o próprio Estado compactua com um projeto exterminador dessas mulheres e que este não possui a menor intenção de retirá-las do local de vulnerabilidade social que se encontram, nem de punir o assassino. Nesse momento, percebemos que estamos diante de um problema muito mais profundo daquele contexto social, onde os feminicídios são apenas um sintoma de um já enraizado pensamento conservador e patriarcal, que percebe a vida de mulheres como algo descartável.


Abbasi tem o mérito de construir tensão de uma forma que, embora não seja inédita no Cinema, funciona para o filme. Foram várias as cenas em que, como mulher, o medo que senti foi praticamente tangível - como se pudesse atravessar a tela. Na cena em que a jornalista é perseguida tarde da noite enquanto anda sozinha pelas ruas desertas de Mashhad, por um homem que se encaixa nas características do assassino, embora seja uma cena curta, Abbasi faz dela desesperadora o suficiente para fazer prender a respiração por alguns segundos. O diretor, portanto, mostra dominar muito bem sua obra e assim provocar os sentimentos que quer deseja no espectador: da tensão à comicidade, da vingança ao medo.



Ao invés de suprimir os momentos banais da vida do assassino e escondê-lo como uma incógnita até o desfecho dos crimes (algo que é tentador e esperado para um filme que lida com o jornalismo investigativo), opta por retratá-lo como um dos seus personagens principais e faz dessa escolha o ponto alto da obra. Enquanto acompanhamos a vida de Saaed e presenciamos seus anseios, conflitos familiares e alterações de humor, estamos torcendo profundamente para que ele seja capturado pela jornalista. Isso é fundamental para passar uma das mensagens mais importantes do filme: feminicídios também são cometidos por homens aparentemente comuns. É fundamental lembrar que, seja em nome da própria “honra” ou mesmo em nome de “deus”, todo homem é plenamente capaz de cometer atrocidades.


Assim como homens como Saaed não deixam de existir apenas porque não os vemos, a violência que eles cometem não deixam de existir só porque nos recusamos a vê-la em tela. Na forte cena final de Holy Spider, é nítido que esse tipo de violência e crença na inferioridade das mulheres se perpetua nessa sociedade ultraconservadora. Falar sobre o fundamentalismo religioso e todos os assassinatos que ocorreram acaba sendo tão importante para o momento em que vivemos, que mesmo os pequenos deslizes cometidos por Abbasi se tornam irrelevantes quando analisamos a conjuntura dessa obra e o que ela significa ao usar o Cinema como fim, mas também como um meio, a fim de tê-lo como uma ferramenta de impacto social com o objetivo de induzir seu espectador a um estado de reflexão.


Nota da crítica:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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