Ressignificando um dos cenários mais tradicionais do cinema, Estranha Forma de Vida é uma das melhores representações do desejo materializado
O melodrama é um gênero conhecido por sua expressividade pulsante, seus exageros e, principalmente, pela externalização de seus conflitos e soluções. Seja através de gestos de amor ou violência, o melodrama preza por uma clareza que, muitas vezes, é vista de forma torta por alguns detratores do gênero. Acusado de uma suposta “obviedade” de suas emoções expressas, ele é costumeiramente tratado como um gênero “menor” ou mesmo inculto, principalmente por se mostrar altamente acessível e, inclusive, aceito pelas massas.
Tais acusações, obviamente, não passam de um elitismo pouco inteligente. Para além de não fazer sentido acusar algo de ter apelo popular (como se isso fosse algo degradante), tais levantamentos ignoram as possibilidades estéticas muito particulares do melodrama, onde cito, por exemplo, as escolhas brilhantes na composição de O medo devora a alma, do lendário diretor alemão Rainer W. Fassbinder. Para além das oportunidades formais, o melodrama possibilita trazer ao grande público temas sensíveis de um forma muito clara e evidente, como o próprio Fassbinder faz no filme supracitado, em que trata de uma relação romântica de um imigrante árabe na Alemanha pós-Hitler com uma mulher bem mais velha.
Nesse sentido, Pedro Almodóvar - diretor de Estranha Forma de Vida - carrega consigo toda uma tradição melodramática que se expressa não só na narrativa, mas também nas escolhas formais de seus filmes. Portanto, não é surpresa que seu mais novo filme traga esse misto de simplicidade narrativa com extravagância estética. O que chama a atenção, entretanto, é que o diretor encontra um equilíbrio muito particular nesse microverso, entregando um filme que, ainda que apresente um caminho muito direto e contido a ser seguido, também conta com uma universalidade na forma que trata temas como o desejo e a culpa.
Essa polarização temática pode ser percebida, logo a primeiro momento, na composição de seus dois personagens principais. Jake - interpretado por Ethan Hawke - é um xerife frio e comprometido com sua família, tentando ao máximo esconder suas emoções; Silva - interpretado por Pedro Pascal - surge em uma polaridade oposta, demonstrando calor e até apreço pelo passado compartilhado com seu ex-parceiro. Seguindo a cartilha do melodrama almodovariano, essas personalidades opostas são marcadas por elementos visuais muito evidentes. Como exemplo, temos os figurinos, de forma que Jake está sempre atrelado a cores frias e escuras, enquanto Silva usa cores mais claras.
Esse ponto de ruptura dos personagens, entretanto, é ainda mais aprofundado na encenação, de forma que cada um deles se comporta e se comunica de forma muito particular. Nesse sentido, é absolutamente interessante como Almodóvar nos traz um texto expositivo - aqui temos várias explicações sobre o passado dos dois, o histórico familiar, entre outros -, ao mesmo tempo em que as informações frias pouco importam. O sentido real da relação é encontrado na forma que essas informações são passadas, na dinâmica comunicacional dos personagens, na maneira que eles trocam olhares, como pausam suas falas, como justificam ações e como negam - ou glorificam - o passado.
De certa maneira, as interpretações são, acima de tudo, incorporações da justificativa real que motiva cada um desses personagens. Como consequência, Almodóvar consegue, ao mesmo tempo, trazer uma justificativa narrativa para os eventos da trama - e, mais uma vez, retornamos às informações frias dos diálogos -, assim como apresentar de forma muito evidente uma razão mais profunda para a direção que será tomada a seguir. Esse caminho traçado aproxima e afasta os personagens a partir de uma dinâmica muito calcada no olhar. E é no olhar que o processo do desejo se manifesta, sendo tão bem captado pela câmera.
Como exemplo, temos quatro planos muito específicos. No primeiro, vemos Jake perscrutar o corpo de Silva, que está de costas. A seguir, vemos o que ele enxerga: o corpo do homem amado de costas, enquanto ele é examinado de cima para baixo. Em seguida, um plano semelhante: Silva encara algo e sua expressão exala desejo. Não tarda para vermos o objeto que lhe eleva o desejo: a cama de Jake. Esses quatro planos pautados na dinâmica do olhar e do objeto de desejo podem parecer simples quando vistos de forma isolada. No entanto, eles são encadeados de uma forma quase tridimensional: Jake está atrás de Silva, que encara frontalmente a cama. Portanto, são planos que, em um movimento retilíneo, atravessa os olhares e nos entrega mais do que aquilo que é visto, mas o desejo materializado.
Essa dinâmica do olhar conduz o filme adiante, ressignificando desejo - como o vinho - e dor - como o sangue -, assim como a recusa - como quando Jake rejeita ser enxugado por Silva - e a aceitação - quando ele é obrigado a aceitar os cuidados do amante por conta de seu estado debilitado. É a força de um olhar que observa os eventos em sua materialidade, mas também ressignifica a partir de todos os elementos apresentados. Essa ressignificação, inclusive, se estende à própria abordagem que temos de westerns. Aqui, Almodóvar pega um gênero tipicamente masculino e heterossexual e adiciona um olhar próprio, mas que não se resume a escolhas narrativas. Como exemplo, temos as tomadas externas, onde John Ford facilmente optaria por enunciar a grandiosidade do espaço natural, enquanto Almodóvar prefere apontar os olhos em um plongéè (quando a câmera olha de cima para baixo), nos atentando para a fragilidade de seus personagens diante de um mundo que quer reduzi-los. Mesmo as ações afetivas respondem a essa dinâmica, sendo restritas aos espaços internos, como que proibidas de serem exibidas ao mundo, onde só há espaço para uma masculinidade pautada pela violência.
Quando o filme chega ao fim, fica aquela sensação de “quero mais”. Almodóvar consegue construir um universo tão coeso e pulsante que, mesmo seus curtos 30 minutos de duração são mais do que suficientes para captar nossa atenção e, principalmente, nosso olhar. É como se o diretor conseguisse apresentar o todo a partir de um recorte, a totalidade no detalhe, no fragmento. Uma verdadeira obra-prima do diretor espanhol!
Nota do crítico:
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