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Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022)

Foto do escritor: Lucas TameirãoLucas Tameirão

O maneirismo estéril de um cineasta encoleirado à mediocridade do MCU.



Na minha crítica de “Homem-Aranha: Sem volta para casa” (que você, caro(a) leitor(a), pode ler clicando aqui), considerei a ideia de que esse filme colocava o MCU numa espécie de encruzilhada: se, por um lado, o filme ainda sofria com a mão pesada das demandas burocráticas impostas pelo estúdio, por outro, ele já sabia integrar certos elementos de modos dramaticamente significativos, não se contentando apenas com um fan-service gratuito, e já se relacionava com as progressões e os arcos dramáticos dos seus personagens – em especial, é claro, o Peter Parker/Homem-Aranha de Tom Holland – de maneiras mais sensíveis.


Meu questionamento, às luzes disso, era o seguinte: será que isso significa que o MCU está, simplesmente, reformando a sua fórmula de produção ao basear-se ainda mais no fan-service, ou será que se trata do estúdio realmente concedendo, de pouquinho em pouquinho, o controle criativo da produção aos realizadores? Na época, ainda não havia como dizer com certeza, porém, segundo as minhas perspectivas, havia motivos para se ficar animado, e o principal deles era que ninguém menos do que Sam Raimi, o grande cineasta por trás da saga original de “The Evil Dead” e, especialmente, no que concerne os interesses de uma franquia de filmes de super-herói, a trilogia do “Homem-Aranha” protagonizada por Tobey Maguire (até hoje, o melhor das telonas).


Entretanto, depois de “Doutor Estranho no Multiverso da loucura”, embora talvez ainda seja um pouco cedo para pendurar as chuteiras e me dar por vencido, admito que fico menos otimista. Na mais recente edição do herói que, no MCU, está sendo protagonizado por Benedict Cumberbatch (que os executivos da Disney e da Marvel sabem acertar no casting, é preciso reconhecer), a impressão é de que há uma certa ambição artística sendo proposta; parece haver, em outras palavras, uma personalidade mais vigorosa, a presença de um cineasta de estilo específico buscando oxigenar a mesmice costumeira dos atuais filmes da Marvel com uma ou outra artimanha estética maneirista – mas que, no entanto, não passa de uma impressão, já que o filme em si, afinal, jamais se emancipa do aspecto mercantil Disney-Marvel já consagrado no cinema blockbuster de hoje em dia.



A começar que a história do filme, por si só, é capenga: em primeiro lugar, a trama encontra os pretextos mais genéricos e previsíveis o possível para justificar o seu desenrolar; por exemplo, a ideia de que os sonhos nada mais são do que acessos ao Multiverso é uma das primeiras “teorias dos sonhos” que aparece na Internet quando se pesquisa pelo tema (sem brincadeira, procurem por si mesmos), ou Wanda, que preenche o papel da vilã porque quer ficar com os filhos custe o que custar, sendo que, que eu me lembre, essa problemática familiar da personagem já havia sido resolvida em “WandaVision”.


Em segundo lugar, os valores dramáticos de elementos evidentemente relevantes à narrativa são sumariamente desconsiderados: o Darkhold, por exemplo, que tem o poder de seduzir aquele que o usa a uma espécie de “lado negro místico” e aparentemente foi a causa central da morte de um Doutor Estranho alternativo, assim que cumpre a sua função narrativa, deixa de ser importante – e não vale dizer que o efeito do artefato de magia negra está no terceiro olho que surge na testa do Doutor Estranho no final do filme, porque a trama toma essa ocorrência como particularmente relevante; no máximo, trata-se de ainda mais um aceno ao fã mais idólatra do super-herói –, ou, ainda, a tal “Possessão Onírica”, que, embora tenha as suas consequências para o universo de “Multiverso da loucura” bem delineadas, no fim das contas, não passa de um plot device para possibilitar o salto de Wanda entre universos e, eventualmente, a aparição do Doutor Estranho Zumbi em cena.


E, em terceiro lugar, os arcos dramáticos como um todo não são instigantes o bastante para que se valha o envolvimento emocional: o percurso da Miss América, a mais nova integrante do MCU, não é nada além da velha história do jovem inseguro que, após um discurso motivacional de um personagem qualquer, acaba por sentir-se encorajado a assumir o controle sobre os próprios poderes e, por conseguinte, sobre a própria existência – dessa maneira, a sua presença na narrativa é mais funcional do que qualquer outra; ela, basicamente, é a desculpa do enredo que possibilita o Doutor Estranho saltar de um universo paralelo a outro –, Wanda, como antagonista, nem ao menos tem um confronto mais vultoso contra o Doutor Estranho, acabando por pôr um fim a si mesma por conta própria, e o Doutor Estranho, com efeito, tem uma atuação mais próxima de uma contenção de danos do que um protagonismo mais ativo.



(Não sejamos, caro(a) leitor(a), tão precipitados em pôr o peso da culpa nos ombros dos roteiristas de “Multiverso da loucura”: Deus sabe que a criatividade de quem tem que enfiar uma história minimamente coesa no meio de uma avalanche de demandas impostas pelo estúdio dura só até certo ponto. Se os enredos dos filmes oferecidos pelo MCU estão ficando cada vez mais saturados, por conseguinte com as suas espessuras dramáticas cada vez mais dispersas, não é aos roteiristas que devemos apontar o dedo e culpar, e sim ao estúdio, que recorrentemente exige o cumprimento de certas demandas de mercado – demandas estas que estão sendo criadas pelo próprio estúdio há muito tempo, desde o primeiro “Homem de Ferro”, de 2008 – acima do ato de se narrar uma boa história cinematográfica.)


E, por esse roteiro anêmico, a realização de Sam Raimi passa correndo com notável desinteresse, aparentemente em constante busca por situações em que possam ser efetuados um ou outro arranjo técnico maneirista mais espirituoso. É como se Raimi estivesse plenamente consciente de que não iria conseguir fazer um bom filme de qualquer maneira – e, mesmo que conseguisse, tratar-se-ia, afinal, de um esforço irrelevante, já que o interesse do atual espectador da Marvel não é o de apreciar uma narrativa cinematográfica bem realizada –, e, às vistas disso, buscasse se divertir da forma que fosse possível; escolho acreditar que Raimi está consciente desse seu desprezo pela trama de “Multiverso da loucura” porque, para mim, é difícil de acreditar que o mesmo cineasta por trás de tramas tão cuidadosamente construídas como as da saga “Homem-Aranha” assinada pelo diretor concebeu um filme que concede tanto desprezo pelo próprio conteúdo narrativo. A Raimi, pelo que parece, resta tentar revigorar a mesmice estética costumeira do MCU, de qualquer maneira que seja possível, com a aplicação de seus distintos maneirismos estilísticos.


(“Maneirismo” em cinema, cabe denotar, refere-se a uma certa crise criativa a qual alguns cineastas são acometidos, num sentindo quase patológico, ao sentirem o peso da história do cinema e por se perceberem não pertencentes a nenhum movimento cinematográfico mais sólido que questione e/ou avance as possibilidades de expressão da forma cinematográfica, recorrendo, por conseguinte, a reinvenções estilísticas dos paradigmas convencionais de expressão – realizando tais paradigmas, portanto, de maneiras distintas; daí, fala-se em maneirismo. E, no que se tem ao MCU, faz mais do que sentido falar em um “peso histórico” que produz uma demanda pela “reinvenção estilística de paradigmas convencionais de expressão”, mesmo que a história do MCU seja relativamente curta; caso contrário, não se falaria com tanta frequência numa tal “fadiga da Marvel”.)



E, de fato, é certo que os “momentos Sam Raimi” são os melhores de “Multiverso da loucura”: eu mesmo senti pontadas de alegria ao ver a câmera assumindo uma perspectiva subjetiva toda disforme, evocando o simbionte do Venom que espreita um Peter Parker frustrado, furtiva e predatoriamente, esperando o momento certo para o bote, em “Homem-Aranha 3”, ou o espírito maligno que persegue um Ash alucinado de desespero, ferozmente destruindo obstáculo atrás de obstáculo, de “Evil Dead II”, ou, ainda, quando Raimi se aproveita das circunstâncias cênicas para brincar de maneira mais criativa com a condução da ação, como quando o Doutor Estranho luta contra uma versão sua maligna e a trilha sonora vai se construindo dos feitiços cujas conjurações derivam de instrumentos musicais largados pelo cenário.


Mas mesmo esses maneirismos mais inventivos jamais se livram de um aspecto plástico já característico do padrão Disney-Marvel que, hoje em dia, já é prerrogativa em todos os filmes que integram o MCU – o que, como não é de se espantar, machuca de modo geral a expressividade da realização de Raimi. Isto é, concede-se a Raimi uma falsa liberdade criativa, uma falsa sensação de controle sobre as suas formas, de modo que, no saldo final, “Multiverso da loucura” ainda diz mais respeito aos interesses mercadológicos de manutenção da marca do estúdio; Raimi está livre para fazer as peripécias técnicas que quiser, contanto que estas sejam efetuadas num cercadinho controlado pelo estúdio. Um gênio criativo posto numa coleira.


Dessa forma, se, por um lado, há a inserção de certos elementos de terror, por outro, eles nunca são explorados a fundo de fato pelo filme, porque um longa genuinamente de terror (em especial, um terror histriônico e colérico à la Sam Raimi) certamente afugentaria grande parte de um público que espera ver uma historinha tranquila envolvendo os seus super-heróis favoritos; se, de um lado, a câmera de Raimi tem mais personalidade do que em empreendimentos anteriores do MCU, por outro, ainda há a insistência num aspecto imagético digital e limpo, em cenários excessivamente compostos por computação gráfica e com um esquema de iluminação que prioriza a nitidez da imagem (e, consequentemente, o conforto visual do espectador) ao invés das possibilidades de expressão dos planos; se, de um lado, o design de produção do projeto de Raimi ambiciona ideias diferentes, flertando até com um conceito estético de filmes de terror B, por outro, o cineasta nunca tem o controle criativo necessário para explorar a fundo os efeitos estéticos dessas ideias, e acaba que elas ficam parecendo só meio malfeitas para os padrões da Marvel, mesmo (o melhor exemplo disso, a meu ver, é o Doutor Estranho Zumbi: fosse uma composição de planos que valorizasse a textura da maquiagem, o que poderia resultar num efeito macabro interessante, o trabalho desse personagem não teria soado tão tosco).



E, ao final, quando a narrativa finaliza no lugar-comum do MCU, servindo apenas de prelúdio para a próxima iteração da franquia envolvendo o Doutor Estranho, fica enfim claro de que o maneirismo de Raimi se comprova estéril: não rompe com nada, não subverte nada, não transpõe padrão convencional nenhum. No fim das contas, o que temos é um filme que não se interessa pelo seu próprio enredo, não concede condolência alguma ao espectador que terá que suportar uma narrativa tão preguiçosa e mal trabalhada como a de “Multiverso da loucura”, e que, ainda por cima, é flagrantemente limitado em suas aspirações criativas.


Peço, caro(a) leitor(a), que leia em voz alta a frase que acabei de descrever, no parágrafo acima: por acaso te soa como a descrição de um bom filme? Bem, não. Acho que não. Para falar a verdade, é com uma certa tristeza que se constata a mediocridade de “Multiverso da loucura”, porque efetivamente significa ratificar que é este o espaço que o MCU, o mais poderoso player do atual mercado de blockbusters hollywoodianos, concede a cineastas de estilos tão distintivos como Sam Raimi. Pelo que parece, longe estão os dias de “The Evil Dead” e dos “Homem-Aranha” do diretor...


De qualquer forma, no entanto, espero que “Multiverso da loucura” produza, ao espectador médio do MCU (aquele fã alucinado que, honestamente, está ficando velho demais para vibrar que nem um menino no parque de diversões ao ver os seus heróis favoritos brotando na tela, um atrás do outro), algum tipo de epifania cética: “será que eu gostei mesmo desse filme, ou estou só me sentindo ainda mais fatigado com os filmes da Marvel? Isto o que sinto é uma genuína gratificação decorrente de uma poderosa e narrativamente significativa experiência cinematográfica, ou só alívio que ela finalmente acabou? Se eu acabei de assistir a um filme que, afinal de contas, não me trouxe nada de exatamente novo e só reiterou a impressão de que todos esses filmes estão parecendo ser cada vez mais iguais, então, por que insisto em continuar me dando socos na cara assim?”


Nota do crítico:


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