Mergulhando pelas entranhas do ser humano em suas profundezas dramáticas, Shyamalan escreve na tela um poderoso conto de fadas sobre amadurecimento.

Toda jornada de amadurecimento é mitológica. O mito do herói é em si sobre crescimento, um rito de passagem, e a história de Kitai é a de seu caminho heróico ao amadurecer. Assim, "Depois da Terra", um aparente blockbuster de ação, deixa claro, de forma muito simbólica, que este é um drama familiar - mitológico.
"Ele não precisa de um comandante, ele precisa de um pai". O gesto final de Kitai, ao não devolver a continência a seu pai, mas ao abraçá-lo, reforça essa frase de sua mãe, ao mesmo tempo que deixa claro a natureza do filme (uma história de pai e filho). Mais do que isso, é um filme que desce o elevador à essência do ser humano, tanto em seu conteúdo como em seus aspectos formais. Como não é uma história de ação que trabalha na superficialidade, mas sim uma alegoria íntima permeada por complexidades emocionais de seus personagens e seus traumas, Shyamalan torna orgânico e humano tudo o que está em sua obra: a nave e outros objetos que seriam de metal parecem ossos, cartilagens, matéria orgânica; animais selvagens como a enorme ave que captura Kitai é humanizada ao vermos seu profundo sofrimento com a morte de seus filhotes (não é um animal perdendo sua prole, mas uma mãe perdendo seus filhos). Toda a ambientação do filme orienta-se pelas entranhas do ser humano, Dessa forma, Shyamalan traz à luz os ossos do ser, em seus cenários e em seu drama.

Ao mesmo tempo, é um filme que orienta sua fotografia a partir do digital. Não apenas por ter sido filmado em digital, mas porque seu visual deixa evidente este meio. Logo, ao mesmo tempo que constrói um mundo orgânico a partir das profundezas emocionais e biológicas do ser humano, Shyamalan marca seu filme pela artificialidade do digital e do CGI. Os eventos de sua história orientam-se também nesse sentido, numa lógica de game: Kitai recebe uma missão de seu pai - chegar do ponto A ao ponto B em um mundo perigoso, com recursos limitados, necessitando sua gestão, procurando por checkpoints (os locais onde o frio não é avassalador durante a noite); e, enquanto executa esta missão, tem em seu pai esta personagem com quem se comunica e que lhe dá visão e instruções à distância (algo muito comum em diversos jogos). Se um videogame lida com a progressão de um personagem e de seu jogador a cada desafio, é uma escolha perfeita para uma história sobre amadurecimento como esta.

Então, Shyamalan caminha entre o artificial e o natural, tanto em sua imagem quanto em sua história. A partir de um mundo artificializado por sua natureza digital, o diretor mergulha nas entranhas dos dramas, traumas e dores do ser que é humano. Conta-nos um emocionante conto de fadas - afinal, o que é a Ursa que Kitai enfrenta se não um dragão? E os grandes mitos do herói nos contam, mais do que sobre a existência dos dragões, uma verdade universal: eles podem ser vencidos. Kitai não derrota a Ursa para "se provar para seu pai", mas sim para descobrir o herói e o valor em si mesmo a partir da superação de um trauma. Tanto que o garoto opta por não ser um soldado ao final, pois não é sobre isso. Matar a Ursa não é simplesmente matar o vilão, mas sim encerrar um ciclo iniciado por uma tragédia ocorrida na infância.
"Depois da Terra" é uma história que poderia facilmente ser contada, em sua essência, como um drama cotidiano. Essa é a gênese dos mitos e dos contos de fadas: sua profundeza reside em suas qualidades universais. Shyamalan compreende isso como ninguém em seu cinema.
Nota do crítico:

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