Equilibrando uma estrutura dramática clássica com um olhar naturalista, Catherine Breillat revela o cerne da contradição de um espírito através da observação paciente e livre de julgamentos
A câmera é como um olho - um voyeur - que testemunha os eventos de um filme. Entretanto, ela não é passiva. O como se olha importa e, dessa forma, ela revela um juízo próprio diante da realidade revelada. Com isso, é interessante a forma como Catherine Breillat opta por uma abordagem naturalista em Culpa e Desejo. Ao invés de buscar julgar o que os personagens fazem, a diretora parece muito mais interessada em perscrutar seus espíritos e tentar entender a hipocrisia inerente à alma humana. Portanto, não é de se espantar que a fotografia se foque muito mais nos corpos do que nos espaços. Como resultado, temos longos planos que enfatizam os silêncios, os olhares e os momentos antes das tomadas de decisões dos personagens. Essas tomadas intermináveis se somam a baixa profundidade de campo - quando o fundo da imagem fica desfocado -, de maneira a termos apenas o rosto dos atores em foco.
Interessante que tudo isso é executado dentro de uma narrativa até clássica em certo aspecto. Há toda uma estrutura que remete aos romances de folhetim e que, nas mãos de um diretor como Pedro Almodóvar, por exemplo, resultaria em um filme um tanto quanto diverso. Breillat, entretanto, não está interessada na exploração do romance proibido ou mesmo no julgamento moral de seus personagens, mas na observação da contradição de um espírito que, ainda assim, é uno. Como resultado, temos uma obra que trabalha com uma certa estabilidade na direção. Não há grandes picos de emoção trazidos pela montagem, que é discreta, ao mesmo tempo em que o trabalho de cor aponta mais uma vez para um naturalismo, não havendo grandes contrastes ou estilizações mais óbvias.
Breillat aposta, na verdade, numa espécie de democracia da imagem, de forma que os planos considerados imorais são gravados da mesma forma que os planos que estão alinhados com as normais sociais. Nesse sentido, a protagonista Anne (interpretada por Léa Drucker) apresenta uma divisão racional - ela descumpre normas que jura proteger através de sua atividade profissional, em que defende jovens de abusadores sexuais -, mas que não se revela no campo emocional. Com isso, o filme internaliza a contradição da protagonista que, tendo ciência de sua própria hipocrisia, é obrigada a viver com ela.
Para dar vazão a esse conflito, o filme opta pelo contraste dos corpos. De um lado, temos Anne em seus cinquenta anos. Do outro, Théo (interpretado por Samuel Kircher) tem dezessete e, como consequência, carrega uma jovialidade que já não faz mais parte da vida da protagonista. Para ressaltar isso, a obra opta pelos planos longuíssimos em que os atores têm tempo para demonstrar as diferenças que são intensificadas pelo tempo. Aos poucos, entretanto, Anne passa a emular certos comportamentos e trejeitos do seu amante jovem, como que numa medida desesperada para voltar no tempo, retornar a um estado agora impossível.
Ao mesmo tempo, Pierre (marido de Anne interpretado por Olivier Rabourdin) é um homem mais velho e, portanto, apresenta ainda mais marcas do tempo. Disso tudo, tira-se que a opção de Breillat de dilatar o tempo através dos planos longos reflete a noção de uma consciência do rigor temporal diante do próprio corpo, da própria vida. Nessa tentativa de fuga, a protagonista acaba entrando em contradição com seu próprio trabalho. Porém, mais uma vez, Breillat não se interessa por julgamentos. Ao abordar a imagem pela via do naturalismo e ao rejeitar uma estilização durante os atos contraditórios de Anne, a diretora revela a contradição como algo inerente à condição humana de seus personagens, ao invés de algo de destaque ou especial.
Ao fim do filme, a força de Culpa e Desejo não reside nas possíveis polêmicas - como é comum na carreira da diretora - de seu tema. Mais do que chocar, Breillat parece verdadeiramente interessada em fazer um exercício do olhar, encarando a vocação voyeur do cinema para observar mais do que a pura imagem pode dizer, mas o que os corações mais inescrutáveis podem acabar revelando diante das diferentes condições. Em sua abordagem, ela abraça a observação mundana livre de julgamentos ao mesmo tempo em que não descarta a estrutura clássica da narrativa dramática, entregando um filme que equilibra a ideia de tradição e contradição.
Filme assistido a convite da Atômica e Synapse. Culpa e Desejo está disponível nos cinemas.
Nota do crítico:
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