O corpo como espetáculo do futuro na mise-en-scène de David Cronenberg

Como é o futuro que imaginamos? Normalmente, é a concretização do projeto iluminista: tecnologias racionalistas operadas por seres racionalizados, um mundo touch screen que na realidade minimiza a sensibilidade háptica e centraliza o cérebro na experiência com o mundo. David Cronenberg, porém, nunca pareceu simpatizar com esta visão de futuro: na mesma década em que um filme como Blade Runner (1982) saia e Star Trek vivia sua “nova geração”, Cronenberg lançou A Mosca (1986), em que mergulhava as promessas do progresso da ciência num esgoto cujo futuro científico era a deterioração do corpo. Em 2022, o diretor nos agracia com Crimes do Futuro, no qual constrói um mundo tão imerso na relação corpórea com a realidade que, quase que de forma natural, esta relação é transmitida para sua mise-en-scène.
Toda a elaboração tecnológica do mundo no filme é feita a partir da organicidade das coisas: não há touch screen, mas, ao contrário, controles que somente funcionam a partir de uma relação muito sensível de toque, como algo orgânico, feito de carne e pele; máquinas que se movimentam e se estruturam como pedaços de material biológico. Daí, é um passo natural para que Cronenberg exercite sua mise-en-scène gráfica que lida de maneira frontal com o corpo em cena, pautando seu filme no espetáculo corpóreo: o corpo é o mote daquela sociedade, especialmente em sua sensualidade, no tesão, no sexo, na busca por uma maneira de sentir mediante o estágio avançado da evolução humana em que a dor deixou de ser algo percebido sensivelmente. Desse modo, os indivíduos do filme procuram o prazer que a dor antes permitia. Sendo sexo e dor intimamente correlacionados, deixando de existir a dor o sexo deixa de fazer sentido como originalmente. Por isso que as cirurgias operadas nos corpos, os cortes feitos sem qualquer anestesia e em qualquer lugar, são, como diz a personagem de Kristen Stewart "o novo sexo". O novo sexo consiste em buscar o prazer sensual da dor em seu extremo - a única maneira na qual, no futuro de Cronenberg, ela pode ser sentida.
O filme estabelece uma relação com o sexo, com o prazer e com a dor absolutamente estranha mas curiosamente reconhecível, seja sensorial ou intelectualmente. É de fato uma obra que constrói todo um panorama intelectual que dá sentido ao choque proporcionado pelas cenas mais gráficas, mas que, ao mesmo tempo, permite sentir no corpo o toque no controle da máquina performática de Saul Tenser (Viggo Mortensen) que por vezes parece um órgão genital, as dores dos cortes, as tensões sexuais, os beijos raros, a necessidade do contato físico, a estranheza das comidas e o incômodo na garganta que persegue o protagonista por boa parte do filme. Apesar de todas as vivências no filme estarem fortemente conectadas ao corpo, podemos enxergar em Saul um artista que poderia, sob nossos princípios, ser chamado de "mental", como um pintor ou um compositor musical; sua arte existe para a negação do corpo em prol de um conceito, de maneira contrária ao dançarino com diversas orelhas espalhadas pelo corpo - que utiliza de sua condição para criar um espetáculo que a glorifica como parte da música pela qual dança. Porém, concretamente, a relação da personagem de Viggo Mortensen com sua arte não é nada mental, mas absolutamente corporal - pois nesse mundo, mesmo o que poderia ser entendido como "mental" está sob a lógica corporificada de uma sociedade que se acostumou com o choque (como forma de sentir, especialmente a dor física) e na qual os artistas tentam, a partir dele, gerar uma poesia que o supere (como o próprio Cronenberg faz com sua direção que apela ao choque do gore mas sob uma unidade de estilo que a torna igualmente conceitual).

Elaborando melhor sobre a estranheza da obra, longe das qualidades sensoriais reconhecíveis, existe uma construção de universo muito particular que faz com que este seja um dos filmes com maior potencial na criação de um novo mundo, tão vivo quanto estranho, que já pude ver. Certas premissas daquela realidade já estão muito bem estabelecidas e fluem naturalmente na história sem que precisemos compreendê-las totalmente, a não ser como uma maneira de existir daquela sociedade. Para além disso, a decupagem e construção visual de Cronenberg abraçam a estranheza como elemento constitutivo da mise-en-scène. O corpo está sempre centralizado sob um ambiente também (aparentemente) biótico, numa atmosfera de cores e iluminação lamacenta, que se suja na exposição do corpo ao contato com o mundo. Na decupagem, o diretor comumente constrói uma relação espacial na cena a partir de triangulações: normalmente, ângulos sempre iguais de personagens em posições pré-determinadas na cena se alternam - algo que, fugindo da decupagem mais clássica, que está costumeiramente expandindo a quantidade de planos da cena pela variação de angulações, gera um desconforto visual que é parte do desconforto perante a realidade apresentada. Quando uma triangulação como essa se ausenta, dando espaço a algo como um plano-sequência, pode ser para construir uma cena marcada de tensão sexual pela proxêmica das personagens como aquela em que Timlin (Kristen Stewart) encurrala Saul em seu escritório até arrancar-lhe um beijo (pela primeira vez no filme inteiro).
Ao fim, temos o protagonista provando, pela primeira vez em sua vida, a barra sintética fabricada por Lang Dotrice (Scott Speedman). Sua reação, em um close up fechadíssimo como a filmagem de uma filmagem, sintetiza muito do que a obra vinha construído até então: Saul chora ao prová-la, sentindo o que nenhuma das outras comidas até então fez com qualquer outro personagem (que não tivesse já provado a barra, que sempre apareceu como um alimento causador de desejo), de modo que a única comida que o faz regozijar é advinda do artificial, o orgânico natural não apela mais a seus sentidos "evoluídos". Porém, mais do que isso, esta cena final simboliza a união entre artificial (ou industrial) e orgânico, o ser, seus bio-componentes e a tecnologia que cria - a indissociabilidade entre corpo e instrumento-máquina; ou seja, ela existe sob os mesmos preceitos que são mote da mise-en-scène de David Cronenberg em todo o filme.
Nota do crítico:

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