A complexidade da vida pelo olhar simples de uma criança
James Gray é um diretor bastante conhecido pelos seus melodramas, pelo olhar apaixonado que joga sobre as relações interpessoais de seus personagens. Em Armageddon Time, sua habilidade em conduzir o melodrama não se faz presente só nas relações do protagonista com seu amigo ou sua família, mas principalmente na relação de uma criança com o mundo à sua volta.
Essa relação gera uma dialética entre a inocência infantil de Paul Graff, o protagonista, e a complexidade do mundo que o cerca. Sendo um garoto judeu que se torna melhor amigo de um garoto negro em plenos anos 80 nos EUA, Paul cresce num ambiente lotado de questões sociais e injustiças, tendo que decidir sozinho como lidará com tudo isso à medida que toma consciência de seu lugar na sociedade. De forma a ilustrar essa dialética, James Gray usa e abusa do close-up, deixando apenas o rosto de Paul em foco enquanto o som que vem de fora - os adultos falando, a TV ligada, as músicas - parecem tentar invadir o plano, evidenciando essa tentativa de se encontrar em meio a tantas influências externas.
Uma das influências mais importantes na vida de Graff é seu avô, Aaron (interpretado pelo sempre maravilhoso Anthony Hopkins), que carrega todo um passado de sofrimento e opressão, ao mesmo tempo que olha para o futuro com brilho nos olhos. É na figura do avô que Paul encontra um porto-seguro, alguém para se inspirar e que conforte seu lado inocente, como ocorre numa das cenas mais belas do ano - o lançamento do foguete no parque. Um acontecimento simples enquadrado com maestria por Gray, de forma que ao mesmo tempo que exala uma paixão pura por parecer um momento isolado do mundo complexo, evidencia um espaço vazio no centro do plano que distancia os dois personagens. É um momento de alívio, mas também de consciência dos novos tempos que virão, da necessidade de enfrentar todas as questões que parecem não ter lugar naquela brecha de intimidade.
Conforme o olhar de Paul vai amadurecendo, as relações simples do início do filme, que poderiam até soar clichês, vão dando lugar a relações mais profundas, à moralidade cinzenta e às decisões difíceis. Seu avô, que sempre o confortou, toma uma decisão que não lhe agrada; seus pais o irritam mas ainda oferecem o acolhimento de que precisa; Johnny, seu amigo, tem atitudes que Paul não compreende totalmente. Tudo vai se mostrando mais complexo e, com isso, surge uma imensa vontade de fugir. Vontade de viver com Johnny longe de tudo, se agarrar nessa relação simples e direta, nesses sentimentos puros da infância, sem influência externa. Ao final, essa vontade é colocada em prática numa tentativa de fuga, mas obviamente falha porque o mundo não é tão simples assim. Porém, se a fuga literal dos garotos não tem sucesso, então que haja uma fuga imagética, possibilitada apenas pelo cinema. O filme acaba com uma sequência de zoom-outs pelos ambientes da infância, em contraponto com os close-ups tão utilizados anteriormente, como uma forma do próprio James Gray respirar e encontrar um refúgio na simplicidade de seu cinema.
Armageddon Time arrisca ao abordar diversas questões sociais, mas acerta na representação de um olhar infantil sobre elas e, acima de tudo, um olhar humano.
Nota do crítico:
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