Errol Morris questiona o rigor da justiça e da verdade através de um manuseamento brilhante da linguagem documentarista
Existe uma percepção errônea (porém muito comum) de que um documentário deve mostrar a realidade como ela é, revelar a verdade ao mundo. Essa noção desloca o documentário do meio artístico ao qual ele pertence - o cinema - e ignora a autoralidade do diretor que, ao invés de documentar os fatos, fornece uma visão sobre eles. Da mesma forma, essa visão é recebida de uma maneira diferente por cada pessoa que assiste ao filme, tornando o caminho entre a realidade e o espectador muito mais sinuoso. Em A Tênue Linha da Morte (The Thin Blue Line em inglês), Errol Morris reconhece e brinca com essa ilusão de “mensageiro da verdade” inerente à percepção desse tipo de cinema.
O filme já inicia com aquilo que será sua principal força motriz - relatos. Ouvimos relatos de Randall Adams e David Harris, os dois principais envolvidos no assassinato de um policial em Dallas, e é através deles que a cena do crime vai tomando forma. Logo, outras pessoas envolvidas também dão sua versão da história no que parece ser um grande quebra-cabeças em que cada entrevistado coloca uma peça - mas a imagem completa nunca parece fazer sentido. As várias perspectivas que, seguindo o fluxo de um documentário comum, deveriam convergir para uma verdade única, na verdade mais confundem do que esclarecem. Sempre que pensamos estar perto dessa verdade, Morris revela alguma informação (ou insere mais um jogador nesse quebra-cabeças) que liquidifica tudo aquilo que parecia sólido, forçando uma constante revisão de posicionamentos e de confiança por parte do espectador.
Em meio às diversas reviravoltas que fazem os “personagens” irem de culpados a inocentes rapidamente, o filme re-encena a sequência do assassinato de formas diferentes. Se num momento o foco da encenação é o caminho que a vítima fez até o carro do culpado ou a arma que disparou o tiro, em outro a atenção se volta para os carros que passaram pelo acontecimento e as percepções que as possíveis testemunhas tiveram. É um domínio brilhante de mise-en-scène, do que mostrar e quando mostrar, que só reforça a sensação de “será que eu deixei passar algum detalhe?” que permeia a experiência de assistir a esse filme. Como se sempre houvesse mais um ângulo por onde enxergar aquela situação - e é agoniante a calma com que Morris nos revela esses ângulos.
Toda essa busca que nos é proposta por uma verdade que se mostra cada vez mais distante é usada também como base de um questionamento social explicitado pelo título do filme. Direto do inglês, “tênue linha azul” é um termo popularizado nos Estados Unidos para se referir à instituição da polícia, que supostamente separa a ordem dos “cidadãos de bem” do caos dos criminosos. Contraditoriamente, o caso abordado pelo documentário é deturpado por essa mesma instituição e pelas autoridades de justiça envolvidas, que muitas vezes agiram na direção contrária à busca pela verdade. É denunciando tais atitudes que o filme levanta reflexões sobre a integridade da instituição - a “linha azul” se revela não apenas tênue, mas também embaçada, não-firme. E o mais interessante é a forma natural de como essas provocações são feitas, apenas deixando as pessoas falarem e revelarem, por si mesmos, o descompromisso com o justo.
Depois de juntar todas as peças, a imagem do caso que parecia ser simples é finalmente formada por completo. Sabemos quem foi o culpado, como aconteceu, mas ainda assim nada parece totalmente certo. Fomos tão expostos à fragilidade dessa entidade chamada verdade - e consequentemente, da justiça - que, quando a alcançamos, parece uma ilusão. A trilha sonora de Philip Glass e o jeito como o filme acaba evocam bem esse sentimento melancólico. A Tênue Linha Azul é um exercício autoconsciente da linguagem do documentário que utiliza dos seus signos não apenas para criar uma narrativa intrigante do começo ao fim, mas também para meditar sobre uma das maiores sinas da humanidade - a busca pela verdade.
Nota do crítico:
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