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A Órfã (2009)

Foto do escritor: Rodrigo HeberRodrigo Heber


A ÓRFÃ é um grande êxito de Jaume Collet-Serra, um dos diretores que melhor dominaram seu ofício no mainstream americano das últimas décadas. Como um mestre da tradição hollywoodiana, ele evita chamar a atenção para si, mesmo quando é artificial, e decupa com precisão, mesmo quando corta rapidamente de uma câmera instável para outra. Nesse sentido, nunca vou me esquecer da cena em que a protagonista Kate, uma ex-alcoólatra, é confrontada pelo esposo e pela terapeuta sobre uma garrafa de vinho encontrada por Esther, a “órfã”. A cena abre com um close das mãos angustiadas de Kate sobre o colo e progride para planos mais abertos, focados nos rostos dos atores. Quando, no meio da discussão, a protagonista é julgada injustamente, Collet-Serra corta para um breve close dela batendo as mãos no colo, somando indignação à agonia preexistente. Essa cena traz o tipo de espontaneidade controlada que Adam McKay adoraria saber filmar. O público não se perde ou se distrai com a decupagem de Collet-Serra, mas ela nos conduz, acentuando gestos significativos que perderiam força a olho nu.


O filme é basicamente sobre uma mulher que se sente desconfortável em meio ao conforto. Ela é uma pianista talentosa, com uma família linda e uma casa enorme, mas sente as coisas fora do lugar. Tal desconforto se vê representado na neve, que domina grande parte das imagens do filme. Kate já tem dois filhos — Daniel, um menino rebelde, e Max, uma menina surda — e sofre diariamente por ter perdido um bebê no parto. Por mais que ela ame seus filhos, ela sente que eles nunca serão como a criança que nunca teve. Então, Kate e seu marido John adotam a órfã russa Esther, que parece ser a criança perfeita. Ao contrário de Daniel, ela é gentil e educada; ao contrário de Max, ela pode ouvir e gostar da música de Kate. É como se os sonhos da protagonista se materializassem.


Inclusive, o longa se inicia com uma ótima sequência de sonho — a única em que Collet-Serra pesa a mão estilisticamente. Nela, a protagonista relembra a perda de seu bebê: inundados por uma forte luz branca, Kate e John chegam felizes ao hospital, mas ela começa a sangrar e o sonho se transforma em pesadelo. O filme corta pra sala de operação, que é escura; as poucas fontes de luz se borram na tela de acordo com a intensidade do sofrimento da protagonista. John sumiu e os médicos e enfermeiros parecem conspirar contra Kate. O parto é realizado e, por fim, uma enfermeira sorridente de olhar sádico mostra o bebê — reconhecidamente morto e ensopado de sangue, mas gritando. A apresentação do sonho mais terno e agradável da protagonista é a apresentação do horror mais gráfico do filme. A chegada de Esther também traz essa contradição.



Sonhos e ideais raramente encontram correspondência no mundo real e o pesadelo de Kate se motiva nisso: uma frustração prática que não aconteceria no mundo das ideias. Contudo, o mundo real é experimentado e conhecido pela mesma psique que sonha — por isso, as frustrações. Essa noção é consistentemente trabalhada na integração visual de ambientes bizarramente isolados e compartimentalizados e na aparição de superfícies reflexivas ao longo do filme. O plano que melhor resume esse procedimento estilístico é aquele que apresenta o consultório da terapeuta de Kate; começamos no banheiro da protagonista e, com um movimento de câmera lento, a parede se transforma num chão coberto de neve — é uma transição feita por computador que flui muito naturalmente. Esse chão com neve é o chão da rua do consultório, que é subterrâneo, mas possui uma pequena janela de vidro. Pela janela, vemos Kate conversando com a terapeuta; no reflexo, vemos o movimento da rua. Esse procedimento se repete explícita ou implicitamente ao longo do filme, desenhando o campo de batalha psicológico da narrativa, cujo terror tanto rompe quanto adiciona barreiras. É um tratamento visual de problemáticas que vem desde Dostoiévski e o seu interesse obsessivo pela forma como o ambiente interno dos indivíduos se relaciona com o ambiente externo comum. Também são notáveis ecos da obra de Hitchcock (dostoievskiana ao seu modo), mais notavelmente de PSICOSE, em que trajetórias pessoais se fundem umas às outras através de rupturas terríveis (a começar pelo assassinato na banheira). Essa forma de unir e desunir, de ser direto com elementos cênicos naturalmente indiretos, é uma constante cujo valor estético, mais do que simbólico, colabora pro desenvolvimento de uma sensibilidade sobre o mundo no qual as personagens vivem.


Ainda sobre a organização visual dos elementos cênicos da obra, é interessante como o último ato está repleto de ambientes divididos em duas camadas. Começamos pelo quarto de Esther, com as pinturas feitas à luz negra; em outro momento, Kate está no topo de uma estufa e se esforça para salvar sua filha, que está no chão da estufa com a assassina (existe um teto de vidro que tanto une quanto separa as personagens); no lago congelado, um cenário que separa duramente o ar e a água por uma crosta de gelo, Kate luta contra Esther pelo presente de Max enquanto revisita seu passado. É um filme em que mundos opostos (real e ideal, principalmente, mas também o da alegria e o do luto) se chocam e se misturam constantemente, até que os traumas e vícios sejam superados e a protagonista chegue ao equilíbrio.


O problema inicial de Kate é que tanto o seu sofrimento quanto o vislumbre de felicidade pela chegada de Esther se baseiam em grandes frustrações mal assimiladas. A realidade pode ser cruel e insensível, como a vilã, mas também é a fonte de todas as alegrias existentes. Sendo assim, a protagonista só pode alcançar alguma redenção na medida em que reconhece o horror relacionado à idealização e abraça a vida como ela é, entendendo que as frustrações são desprezíveis para quem valoriza o que tem. A vitória sobre Esther, afogada no mesmo lago em que Max perdeu sua audição, é a vitória sobre os ideais esfarelados. No final, tudo o que temos é a realidade: ordinária, frustrante e meio vazia — maravilhosa para quem a valoriza.


 

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