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Foto do escritorDavi Pieri

A Mosca (1986)

David Cronenberg anamorfiza códigos clássicos do horror gráfico, aliando repulsa à comicidade, com uma malícia dramática única à postura maneirista do diretor.



No cinema, a tendência maneirista - marcante nos anos 80 - encarregava-se de distorcer, exagerar, anamorfizar os códigos clássicos do cinema. Em "Enigma de Outro Mundo", remake da obra de 1951, o diretor John Carpenter eleva tradições do horror explícito à uma potência gráfica que lida com o gore de forma tão exagerada e absurda que beira o cômico, aliado à repulsa. David Cronenberg faz algo muito semelhante, mas ainda mais aterrorizante, em seu filme de 1986, "A Mosca".


Este é um filme que lida de forma muito direta com seu caráter imediato e explícito: não há tempo a perder com as construções de romance e personagens clássicas - o casal principal se forma logo ao início do filme. Depois, o que parecia ser algo que demoraria muito tempo, que seria o objetivo final de Seth Brundle (Jeff Goldblum), acontece mais ou menos no meio do longa, sendo o ponto de virada definitivo da história: o momento em que o cientista experimenta a própria máquina de teletransporte, com uma mosca ao seu lado. Feita a apresentação e construção inicial das personagens, o que o filme necessita provar daí em diante é a degeneração física e mental de seu protagonista. E o horror emerge, de forma intensa, deste lugar: a degradação brutal e repulsiva do corpo com o iminente perigo representado pela deterioração da mente.


Sei que preciso elaborar melhor o que quero dizer com o tal "iminente perigo" representado pelo enlouquecimento de Brundle: acontece que podemos perceber em "A Mosca" a importância do corpo e da pele - seja para nos causar repulsa ou para nos causar empatia. Na personagem de Brundle temos a repulsa, e na personagem de Veronica (Geena Davis) adquirimos empatia. "Brundlefly" torna-se um perigo para sua ex-parceira, que só o é pois, além de adquirir um corpo monstruoso, Brundle começa a tornar-se cada vez mais agressivo. Parte do horror vem do medo, da apreensão, que sentimos por Veronica e por seu corpo - que pode tanto ser violado e deteriorado por Brundlefly, como pelo bebê em sua barriga.



O outro lado do horror emerge da explicitude gráfica da destruição do corpo humano de Brundle e o surgimento de um monstro. Aqui, Cronenberg lida com o gore gráfico de forma semelhante a Carpenter em "Enigma de Outro Mundo", alongando o plano para que vejamos todas as transformações horrorosas pela qual o protagonista do filme passa, tornando cada degeneração de seu corpo horrenda, torturante de se assistir - e, ao mesmo tempo, prazerosa; afinal, é para isso que estamos assistindo este filme. As obras de horror gore do maneirismo, tal qual esta e a de Carpenter, compreendem a relação entre repulsa e prazer quase como um filme pornô também compreende (porém, em um lugar contemplativo único da arte, desconhecido pela pornografia). São obras que também entendem a relação profunda entre horror e comédia, normalmente alcançada pelo absurdo.


Assim, "A Mosca", de David Cronenberg, é um dos filmes mais aterrorizantes e agoniantes que já assisti: a partir de uma premissa de ficção científica, o diretor recusa uma certa elegância comum ao classicismo cinematográfico para sujar-se e mergulhar as promessas da inovação científica em um esgoto fétido. Existe certa malícia nessa ironia sádica que enlameia a postura requintada da ciência colocando-a como ferramenta que transforma um homem em um bicho irracional, tomando como base - mas indo além de - referências ligeiramente mais comportadas de obras mais antigas, como O Médico e o Monstro e Frankenstein.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.


Sobre o autor - Davi Pieri


Crítico de cinema, diretor de teatro, ator e estudante de Audiovisual na Universidade de Brasília. Transitando entre o pensamento e a prática artística nesse sonho urgente que é a vida.


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