Jordan Peele entrega uma trama em multicamadas para fazer terror de verdade sem deixar de confrontar e reafirmar certos mitos
Algum tempo atrás, uma corrente de cinéfilos menos interessados e conhecedores do gênero resolveram cunhar uma nova vertente para o cinema de horror: o pós-terror. Aqueles que abraçam o termo vangloriam alguns filmes específicos como expoentes desse suposto novo gênero, tais obras teriam transcendido as barreiras cinematográficas para algo mais profundo e psicológico (inclusive esses filmes também são chamados de terrores psicológicos). Não poderia haver algo mais desrespeitoso com o terror, afinal, o prefixo “pós” é usado como um sinônimo de evolução, dando a entender que qualquer padrão de qualidade existente tenha sido superado e novos paradigmas instaurados. Mas porque quando o terror é bom demais, ou simplesmente sério, não pode mais ser terror?
Deixando minha declaração direta e grosseira já tão cedo no texto, eles continuam sendo terror independente do que significa uma coincidência temática, já que não reúnem características conjuntas o suficiente para forma um movimento, como o pós-modernismo, ou se referem à um momento específico na história da arte, como quando falamos de cinema pós-guerra. Ainda assim, por mais que abomine esse termo e tenha desprendido parte do meu texto para condená-lo, não pude deixar de pensar em como esses filmes acabaram coincidindo, foram percebidos, proclamados e elevados por “serem mais sérios”. Atribuo essa culpa à insistência realística entre o final dos anos 2000 e começo de 2010, tendência que criou uma das gerações mais engessadas de cineastas, incapazes, nesse recorte, de compreender uma dualidade essencial.
Como meu amigo Rodrigo Heber articula em seu texto Rindo de medo: o elo entre terror e comédia, o humor sempre teve um papel muito perspicaz no cinema de horror, fosse ele o amplificador e aliviador de tensão ou aquilo que, de fato, compunha sua sátira. Inevitavelmente, quando se tira esse fator na busca por uma encenação mais realista, têm-se um resultado disforme. Parece meio contraditório, mas o riso (e não é necessariamente um riso literal, talvez esteja mais para uma descontração) e o medo, são aliados que concretam uma base sólida no gênero e sua separação o estremece. Subitamente, o pós-terror deixa de não ser terror por ser melhor para não ser terror por não merecer.
Felizmente, de encontro com nosso algoz, em especial nos últimos lançamentos, podemos ver uma força de retomada que reafirma o gênero ao invés de negá-lo. Nessa leva, Não! Não Olhe! de Jordan Peele é um expoente e tanto. Fruto da imaginação de um diretor que, antes de embarcar no cinema, destilava seu talento em comédias para a TV (o que é bem significativo no contexto que trago até então), o filme não é só um ótimo épico de invasão alienígena como também recontextualiza o cinema de horror em uma perspectiva atual, sem grandes moralismos e pescando o registro cinematográfico como hereditário, poderoso e revolucionário.
Digo que é um terror fantástico pelo simples fato de que, dentre o que se tem como referencial, ele se propõe a ser um filme de monstro com uma fundamentação surpreendentemente simples: um animal selvagem que assume essa carapuça de inimigo ao seguir seu instinto. Inclusive, faz um paralelo sobre o que acontece quando a natureza se descontrola ao se voltar para o evento que assombra a carreira de Ricky e, nisso, apresenta algumas estruturas bem clássicas dentro do estilo remodelado do diretor. Peele gosta de adereçar uma forma ainda mais crua e visceral sob a violência que assola seus filmes e, especificamente nesse ponto, vejo ele se destacar em originalidade em relação à todas as referências que possui. O design de som tem uma cara bem imersiva, na cena do chimpanzé mesmo, o som de ossos se quebrando e sangue esguichando é tão realista quanto pode ser para chocar ao máximo (diria até que com pinceladas de gore mesmo).
Esse parâmetro mais cru se choca com uma honestidade metalinguística, algo bem diferente do realismo. Sinto que os filmes de terror são ótimos reflexos de suas épocas e, por mais fã dos clássicos que Jordan possa ser, ele também não vai ignorar isso. Pânico, por exemplo, tem uma representação sarcástica do jovem daquela época e emula isso dentro da sua mise-en-scène, contando o conto e aumentando um ponto. Não! Não Olhe! não é nada diferente, pega personagens que parecem ser, de fato, do cinema contemporâneo para desenvolver seu enredo. Um exemplo que mostra isso muito bem e que, de sobra, ainda brinca com um clichê é quando OJ se depara com os alienígenas em seu celeiro. Nessa ocasião, ao invés de enfrentar ou ao menos desbravar esse mal, ele dá dois passos para trás, brada um “não” e começa a gravar. Mais tarde essa ameaça se prova inofensiva, uma peça, mas a negação do “chamado” é bem significativa dentro da narrativa. No próprio trabalho de Wes Craven que cito mais cedo toda vez que alguém se aventura, ou simplesmente vai checar o que estava fazendo barulho no quintal, acaba sendo implacavelmente morto.
Aqui, tal momento é usado com uma alívio cômico, mas resume bem o restante do tom que ele aplica no filme. O que impressiona é como faz para conciliar essa abordagem irônica e verdadeira com uma inventividade gigantesca, unindo a invasão alienígena com a ação predatória, enquanto reafirma seus heróis. Ainda que brinque, jamais subestima suas personagens. OJ pode até ser um sujeito moderno, que vive e age no presente, mas em seu sangue corre algo muito poderoso e aqui nós chegamos ao ponto final desse texto que, ao meu ver, é um dos mais interessantes: como o novo filme de Jordan Peele exalta o cinema à sua própria maneira.
Começando pelas bases que cria em relação ao enredo, faz dos protagonistas parte da história da sétima arte como descendentes daquele que se prostrou diante das câmeras no primeiro registro de uma imagem em movimento. Neles há um fogo por registrar e, mais precisamente, documentar algo que mudará a percepção humana da mesma forma que seu antepassado transformou completamente a relação das pessoas com a arte. O mais fantástico é que quando esse gene revolucionário é ativado, especialmente no ato final, ele confere para OJ e Emerald características extremamente heróicas e que tanto reafirmam quanto modernizam o mito. Ele foge à cavalo enquanto possibilita o registro moderno mais significativo da raça humana e ela foge de moto enquanto se volta para o modelo antigo de registro para, de fato, capturar o animal. Peele ainda parece ressaltar o modernismo mais uma vez no que diz respeito a busca por espaço no mercado atual, os grandes dinossauros são engolidos pelo próprio material que tentam captar enquanto a juventude aguarda ansiosa para, com os recursos que achar à sua disposição, registrar o mundo e os perigos que a cercam.
Ainda assim, com tantos significados e correlações, Não! Não Olhe! não se contenta em ser um filme pesado. É denso na mesma medida que é dinâmico e sinto que, acima de tudo, Peele quer entregar diversão para seu espectador. Um filme de terror em que podemos refletir na mesma proporção que tomamos susto, que apresenta uma carga social na mesma medida de uma carga violenta e que, de quebra, ainda possibilita que olhemos para dentro do cinema e sua história. Mesmo que seja muito cedo para colocar o diretor como um dos maiores nomes do terror, seus três trabalhos até aqui são muito empolgantes e eu, como crítico e cinéfilo, fico empolgado com o que mais ele pode tirar da manga ao fazer CINEMA.
Nota do crítico:
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:
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