top of page
Foto do escritorRodrigo Heber

O Farol (2019)

Em O Farol, segundo longa de Robert Eggers, somos apresentados a um jovem e a um velho (interpretados por Robert Pattinson e Willem Dafoe) responsáveis por zelar de um farol numa ilha isolada. O mundo que adentramos é assustador, insano e terrivelmente atraente — como uma sereia. A fotografia em preto e branco de Jarin Blaschke e a trilha musical grave, com forte influência concretista, de Mark Korven fazem mais do que representar o mundo de maneira mórbida; cada pequeno elemento contribui para a criação de uma estética que emerge da visão de mundo de Eggers. Com fluidez de câmera e montagem, uma cena emenda na outra e, quase sem percebermos, somos levados numa espiral de medo às profundezas da alma humana.



Nos minutos iniciais, nada é dito. Vemos as personagens chegando aos seus aposentos: Dafoe já familiarizado e Pattinson um tanto quanto desconfortável, descobrindo aquele mundo junto conosco. Ele é o fio condutor, despertando nossa simpatia de imediato. As primeiras falas vêm no jantar da dupla, com um brinde de Dafoe — rejeitado momentaneamente por Pattinson, que prefere não beber. Nossa espiral se desenvolve por meio das repetitivas cenas de jantar, que revelam mais dos protagonistas e aprofundam a relação entre eles. A partir da rotina monótona desses homens, cujo ritual de jantar sempre começa pelo brinde de Dafoe, Eggers faz variações progressivas que nos levam onde jamais imaginaríamos. O que nos impulsiona nessa progressão é a curiosidade diante de certos mistérios, trazidos desde o momento em que Pattinson encontra uma escultura de sereia em seu colchão. Também surgem questões relativas ao apego de Dafoe pelo farol, em cuja cabine só ele entra. A repetição e associação de certas imagens — como sereias, masturbação, cadáveres boiando e tentáculos — também nos instiga quanto aos seus significados na história, na psicologia proposta e, olhando mais amplamente, no arranjo do filme em si.


Faz sentido enquadrar o filme tanto na “caixinha” do expressionismo quanto na do surrealismo, porque ele expressa a psique atormentada do protagonista através de distorções visuais e nos entrega uma simbologia onírica complexa e de difícil compreensão.

Passando por dificuldades no trabalho e em sua relação com o personagem de Dafoe, nosso protagonista começa a revelar uma profunda desconexão com a realidade, e esta se mistura aos seus medos e desejos. Em determinado momento, Dafoe informa que o último evento dramático do filme havia ocorrido há duas semanas, mas tanto Pattinson quanto o público pensa que foi na noite anterior. Sentimos como se a realidade da narrativa tivesse sido reajustada, porque acompanhamos a ótica de Pattinson, que está cada vez mais alienado. Quando a realidade se reajusta, ele a percebe por um instante e todos nos chocamos. Não sabemos bem se é ele ou Dafoe que está nos enganando — podem ser ambos! E esses reajustes de realidade ocorrem o tempo inteiro. Numa cena, o diretor varia sobre a monotonia ao colocar os dois personagens para beberem e contarem histórias juntos e, em outro momento, nos dá um banho de água fria fazendo Dafoe agir como se nada daquilo tivesse acontecido. A cada volta dessa espiral, sentimos como se estivéssemos trocando de realidade, mas as aparências do filme não mudam. A sensação é como a de uma onda que nos derruba na praia e nos prende em sua revolta por alguns instantes. Uma quantidade colossal de símbolos nos deixa sem capacidade de respirar. Isso nos atordoa. Sentimos que não existe horizonte claro para espairecermos a mente e colocarmos as ideias em ordem. Não nesse mundo. O fato dos dois homens se chamarem Thomas, como descobrimos perto do último ato, é muito representativo dessa confusão toda. Nos perguntamos se o que vale para um Thomas vale pros dois e se o filme, então, seria um grande quadro acerca da condição humana a partir de duas facetas da mesma pessoa. E o conceito de Eggers realmente caminha por aí, mas ele não nos deixa presos a essa confusão: existem diferenciações profundas e o nosso horizonte tem uma complexidade transcendente.


A grande virada na nossa compreensão do personagem de Pattinson se encontra quando ele revela que deixou seu antigo chefe, Winslow, morrer. Ele fez isso de propósito, porque o detestava, e, então, roubou sua identidade. Winslow o chamava de cachorro e ele não gostava disso. No começo do filme, Dafoe também o chama de cachorro e ele nega ser um. Entretanto, Pattinson abandona sua humanidade progressivamente: seu corpo vai se curvando, seus movimentos ficam mais bruscos e seus hábitos, mais selvagens. Ele é um cachorro, mas nega. Na verdade, ele não apenas nega como acusa Dafoe de ser um e, efetivamente, o trata como um no último ato.



Se pensarmos um pouco, tudo o que Dafoe tem de ruim, Pattinson também tem, mas a recíproca não é verdadeira. Além de que Pattinson não apresenta nada do que Dafoe tem de bom. Por exemplo, o personagem de Pattinson não gosta de trabalho algum. Dafoe, por outro lado, amou ser marinheiro e amou ser faroleiro, mesmo sabendo das dificuldades desses trabalhos (e alertando Pattinson sobre elas). O problema demonstrado não é a falta de paixões, mas a falta de conexão com o mundo em que se vive e, acima de tudo, a rejeição a toda e qualquer autoridade, implícita a essa inadequação.


Depois de refletir sobre a condição miserável do ser humano diante do inexorável em A Bruxa, Robert Eggers retoma sua reflexão em O Farol, mas incluindo uma perspectiva moral ao que antes era apenas existencial. O protagonista se aflige moralmente por sua rejeição à autoridade. Ele não consegue dormir direito. Ele sonha com Winslow e vê sinais que o lembram dele constantemente. Ele odiava seu chefe antigo porque este lhe dizia a verdade e exercia autoridade; ele odeia seu chefe atual pelos mesmos motivos. Até as gaivotas lhe provocam ódio: Dafoe conta que elas devem ser respeitadas porque carregam as almas dos marinheiros mortos. Em determinado momento, Pattinson abre uma cisterna e encontra uma gaivota morta, boiando na água. Mesmo morta, a gaivota abre e fecha o bico, como se vivesse. Nesse momento, outra gaivota pousa à sua frente e grasna com hostilidade. Pattinson se enche de raiva, a pega pelo pescoço e mata a pancadas, numa das cenas mais graficamente violentas do filme. As gaivotas exercem autoridade mística sobre ele e, como os chefes, contam o que ele é: um assassino. Relembrando-o do cadáver de seu antigo chefe — boiando, mas ainda vivo, de certo modo.


A autoridade máxima nesse microcosmo está no próprio título do filme. O farol é uma torre enorme ao redor da qual a vida do protagonista gira e cuja função é lançar luz. Dafoe ama a luz do farol e a quer só para si; ela parece viciante e é claramente associada ao sobrenatural. Nosso protagonista cobiça essa luz, apesar do ódio que nutre por figuras de autoridade. A partir de certo ponto, ele se mostra disposto a matar Dafoe para roubar as chaves da cabine e ver a luz diretamente, para descobrir o seu “segredo”. Isso ocorre porque a luz do farol não é apenas uma figura de autoridade; dentro do filme, ela é a própria autoridade, em termos absolutos. Ela é Deus ali. Pattinson a cobiça porque quer autoridade para si; ele quer ser seu próprio chefe. Mas, no universo de Eggers, ninguém possui ou pode possuir autoridade sobre si — é uma lei da própria existência.


A diferença entre seus dois filmes está no fato de que, em O Farol, existe uma figura humana em harmonia com a autoridade verdadeira: Dafoe. Além de exercer autoridade legítima sobre Pattinson, todas as suas profecias e maldições se cumprem. Eggers faz questão de deixar claro o sentido por trás da relação dos dois personagens na imagem mais significativa do filme: Dafoe nu com uma forte luz saindo dos seus olhos (o próprio farol em forma de gente) e Pattinson caído, apavorado diante dele. Tal imagem é a última de um delírio do protagonista; logo antes, ele havia encontrado seu ex-chefe Winslow e o corpo deste se transformara no seu. Portanto, quando Dafoe surge como homem-farol, notamos que ele é uma autoridade moral também, lançando luz sobre Pattinson e seus pecados.



A impressão que temos do personagem de Dafoe como uma pessoa louca e cruel se deve principalmente ao fato do protagonista projetar muito de si sobre ele. Mas apenas? Dafoe também tem seus problemas, como o fato de ter abandonado mulher e filhos por treze anos quando era marinheiro, como ele conta em determinada cena de diálogo. Ainda que não possamos ter muita certeza sobre esse fato, tal abandono é uma negligência de um aspecto da vida em função de outro. Contudo, vemos certo pesar por este fato na sua entonação e escolha de palavras. Mais um ponto importante nessa cena é que ele se compadece de Pattinson por não suportar seu antigo trabalho como lenhador. Aqui, os dois homens se abrem e Dafoe se mostra tolerante e humano. A imagem de homem-farol é algo realmente muito simbólico. Dafoe não é o farol literalmente, dentro dessa lógica; isto é, ele não é a autoridade absoluta em qualquer sentido, apenas a representa, mesmo sendo um ser humano normal. Esse é um dos pontos em que Robert Eggers menos intervém simbolicamente e menos distorce seu drama, deixando as personagens se expressarem de forma minimamente realista, ainda que o surrealismo e o expressionismo pulsem suas influências.


Na obra de Eggers, que valoriza a precisão histórica nos mínimos detalhes, esse choque entre o real e o simbólico se dá de modo especial, porque ambos elementos são igualmente expressões do nosso mundo, e se relacionam dialeticamente, resultando no mundo fictício como síntese. O mundo fictício, por sua vez, é uma representação artística de como Eggers vê o mundo: condenado pela escuridão da alma humana, carente de luz.


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



Comentarios


bottom of page