Em seu mais atípico melodrama, Frank Capra tece uma poderosa narrativa simbólica acerca do desejo em meio a valores culturais e morais contrastantes.
O Último Chá do General Yen, de 1933, era o que o diretor Frank Capra acreditava ser um “woman’s picture”, termo utilizado no período para se referir a filmes protagonizados por mulheres, cuja trama remete à situações frequentemente atribuídas ao “universo feminino”, como preocupações sentimentais, matrimônio, auto-sacrifícios, e a vida doméstica. O melodrama talvez seja o gênero mais evidenciado dentre os filmes relacionados ao termo, que foi usado durante a década de 30 e 40, principalmente pela intensidade emocional característica do gênero, que propicia um aprofundamento sentimental dos personagens, de modo que, os sentimentos acometidos ao íntimo se sobressaiam à uma suposta sobriedade externamente exposta pelo indivíduo.
O termo, que caiu em desuso ainda no século passado, ajuda a entender aspectos sociais importantes que intrinsecamente se relacionam com a natureza do filme de Capra, como a repressão do desejo feminino em vias morais e culturais. Em O Último Chá do General Yen, a jovem missionária estadunidense Megan Davis viaja até Xangai no contexto da Guerra Civil Chinesa, para se casar com seu amigo de infância, o também missionário Dr. Strife, mas são separados devido um ataque e Megan é resgatada pelo General Yen, que fascinado pela mulher, a leva ao seu palácio de verão e a mantém como refém. O filme utiliza da evidente diferença cultural entre ambos para fomentar uma conflituosa relação de atração, que encontra no campo do inconsciente um certo grau de concretude, implicando no questionamento da própria moral dos personagens.
O embate moral entre o pensamento cristão da personagem e a filosofia ligada à preceitos tradicionais chineses do General Yen, expõe um olhar atencioso do filme para com as percepções sociais que trata, não se limitando à uma verdade absoluta, mas buscando a compreensão de diferenças culturais na formação de ambas as sociedades. Essa relação é pautada num questionamento mútuo, mas que é intensificado mediante o cenário de violência da Guerra Civil Chinesa, motivo da permanência de vários missionários no território chinês. A desilusão da missionária para com a legitimidade das próprias crenças é gradual, e ocorre quando percebe ser improfícuo seu papel de propagadora da moral cristã, em uma sociedade cujos costumes culturais apresentam suas próprias complexidades e estruturas.
Capra caracteriza essa ausência sentida no íntimo de Megan, por meio de um rico simbolismo na imagem, fazendo de O Último Chá do General Yen seu mais inusual melodrama. A presença da orientalidade se mostra constante na criação do aspecto místico que rege a trama, sendo sua intensa capacidade simbólica e de mistério, fundamental para Capra intensificar as emoções no inconsciente da personagem. A atração que há entre Megan e o General Yen assola a personagem, tanto pelo contexto de embate de valores existente entre ambos, mas também pela repressão do desejo sexual por parte de Megan, em virtude de uma suposta moralidade à ela infligida. Essa repressão se manifesta nas cenas mais simbólicas do filme, como o sonho erótico de Megan com Yen, onde vê seu desejo interno ser finalmente concretizado, em meio à uma absorção de aspectos da cultura oriental, externamente repreendidos pela personagem, mas que encontram no íntimo um certo ar de prazer e satisfação. Utilizando de efeitos imagéticos que remete inclusive ao surrealismo, Capra externaliza a complexa confusão sentimental ocorrida no âmago da personagem, por meio de uma imagem que, ao mesmo tempo que simbólica, é também a mais legítima representação de desejo.
O filme, que obteve um decepcionante retorno de bilheteria no período, tece importantes ponderações acerca da relação existente entre culturas distintas, cujos questionamentos levantados permanecem ainda válidos hoje. Embora não sendo compreendido como deveria na época de seu lançamento, e caído num certo esquecimento por conta de elementos que não condizem com os avanços sociais da atualidade (como a presença de atores brancos interpretando personagens asiáticos), o filme de Frank Capra é extremamente poderoso ao retratar uma ambiguidade moral relevada na imposição de uma cultura sobre a outra, sendo um dos mais fascinantes olhares diante dos danos causados pelo encontro de valores culturais contrastantes, na formação de laços emocionais entre indivíduos.
A atração de Megan pelo General Yen é alimentada internamente até o ponto de sua eclosão, onde o sentimento sucumbe às barreiras do inconsciente, até tomar uma forma externalizada. As diversas simbolizações expressas por Frank Capra, ressaltam a tragicidade de tal afeição, de modo que todo ato representasse para o íntimo, muito mais do que as percepções sensoriais pudessem captar. A repulsão e a atração nos sentimentos de Megan, partem então desse mesmo viés simbólico do inconsciente, e ao passo que essa relação se torna mais próxima de atingir algum grau de concretude, torna-se também mais trágica. E assim, Frank Capra procura essa impossível concretização da satisfação como o fez durante todo o filme, provindo a existência desse amor das marcas geradas em ambos por suas diferenças, e abraçando incondicionalmente a força de seus símbolos como se fossem a própria realização.
Nota do crítico:
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:
Comments