Da Nouvelle Vague para o Cinema Novo, da França para o Terceiro Mundo: a repercussão do pensamento e obra de Godard sobre o pensamento e obra de Glauber Rocha
“Godard explode. descontrola o bom pensamento cinematográfico. Godard é um artista, Godard é um homem de nosso tempo.”
- Glauber Rocha em 1967¹
Em 1967, Glauber Rocha escreve um texto chamado Você gosta de Jean-Luc Godard? Se não, está por fora. Ele não poderia ter sido mais sintético no título: naquele contexto de emergência de vanguardas cinematográficas em todo o mundo, a influência de Godard era incontornável. Nenhum cineasta interessado em realizar um cinema político, em propor uma estética revolucionária, passaria intacto diante da obra do crítico tornado cineasta: assim se passou no Brasil com o advento do modernismo promovido pelo Cinema Novo, e sobretudo por Glauber, seu principal artífice. Cabe investigar, portanto, como a obra explosiva de Godard repercute sobre a também explosiva obra de Glauber, ainda que ambas tenham emergidos em panoramas muito diferentes: o primeiro na França dos anos 50/60, e o segundo em um país subdesenvolvido como o Brasil do mesmo período.
Destacar tal diferença de contexto é fundamental: fazer cinema no Brasil não é a mesma coisa que fazer cinema na França, então não cabe simplesmente traçar paralelos no interior de suas obras a partir de aspectos superficiais. Detectar que tanto Masculino, Feminino quanto Deus e o Diabo na Terra do Sol vão na contramão de modelos clássicos de montagem não significa muito; tampouco dizer que Acossado e Terra em Transe se aproveitam da câmera na mão como recurso estilístico. Constatar semelhanças formais (que se tornam superficiais caso sejam interpretadas como um fetiche) sem entender as razões específicas que as motivam nas obras de seus respectivos diretores levaria a encarar Godard como um modelo ideal de cinema subversivo a ser copiado ou um manual a ser reproduzido; não é sob tal viés que se encontraria, verdadeiramente, o “Godard” em Glauber, porque não foi assim que o diretor brasileiro assimilou o diretor francês e muito menos era assim que este desejava ser compreendido - ainda que alguns diretores brasileiros ligados ao Cinema Novo, à moda dos críticos que insistiam em encaixar Godard nesta ou naquela fórmula, assim procederam. Em resposta a estes, em um texto posterior (de 1970) sobre Vento do Leste, Glauber (que inclusive faz uma breve participação como ator nesse filme) é categórico:
“E aos jovens cineastas que imitam o Godard de cinco anos atrás, pensando que estão reinaugurando o cinema brasileiro, faço uma advertência: virem-se rápido, porque nos dois próximos filmes Jean-Luc pode reinventar tudo e mesmo a parafernália tropicalista não vai servir para esconder o chute dos imitadores do velho estilo de filmar e de meter o pau nos colegas.”²
Assim sendo, a influência e a repercussão de Godard sobre Glauber são de outra ordem. Vendo dessa forma, surgem mais pontos em comum entre, por exemplo, O Desprezo e Terra em Transe do que superficialmente parece haver: cada um a seu modo, esses dois filmes colocam em pauta a questão do autorismo e a necessidade do diretor de impor seu estilo independentemente se toda a indústria lhe orienta a fazer o contrário. A figura do produtor norte-americano, que surge praticamente como um antagonista do artista criador no filme de Godard citado acima, é um arquétipo que não aflige somente os envolvidos na nova onda francesa. Propor uma reação ao padrão estético exportado mundialmente pelo imperialismo dos EUA naquele momento estava na ordem do dia de qualquer vanguardista “estrangeiro”, seja ele francês, japonês, tcheco ou brasileiro - e tal reação se manifestava a partir do momento que a câmera era tomada como “um instrumento de análise e uma peça de criação”, nas palavras do próprio Glauber.³ A camera-stylo - de algum modo correlata à noção de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” - foi a tônica do autor francês e brasileiro que de algum modo tentava se impor diante do poder econômico do produtor, lacaio da estrutura capitalista. Se todo esse conflito entre diretor e dinâmica da indústria que tem como uma de suas engrenagens o produtor é representado mais explicitamente em O Desprezo, ele já estava implícito desde Acossado, quando Godard filma com um método inovador, rápido e barato - similar ao que Glauber fará em Terra em Transe, que também trata implicitamente do citado conflito: o método de Godard se torna para o cineasta brasileiro de Terceiro Mundo uma estratégia para conseguir produzir mesmo sob o espectro do imperialismo. Para ambos os diretores, a luta do cineasta deve ser simultaneamente estética, econômica e política.⁴
Portanto, o que Glauber assimilou da obra de Godard, pioneiro em colocar em prática estratégias desse tipo, foi mais a motivação política por trás do estilo do francês do que o estilo em si: a autoria e “a maneira de filmar rápido e barato”⁵ entendidas como uma reação do diretor frente à indústria e sua lógica capitalista - que, para o caso do Brasil, se torna a única forma de construir um cinema nacional diante do predomínio do cinema e estética norte-americanos. Em ambos os casos, defender o cinema de autor é assumir um posicionamento político característico dos malditos. Segundo Glauber, por percorrer o caminho marginal pavimentado por Rosselini e Buñuel, Godard é o filho mais novo de um certo tipo de cinema que
“(...) se indispõe com a indústria, brigou com os produtores, com o público, com a censura e com a crítica interessada a servir o bom gosto, a moral, o respeito e a tradição. É a origem do cinema novo, do cinema-livre, do cinema de autor; do filme que matou o "diretor-monstro", a "vedete-sagrada", o "fotógrafo-luz"; é a mise-en-scéne que saiu do enquadramento, quebrou o ritmo gramatical, estrangulou a emoção, fugiu do espetáculo; o filme que deixou de ser a narrativa gráfica de dramas pueris e literários para atingir a poderosa expressão em mãos de homens livres dos esquemas industriais; o filme político, o filme de idéias; (...) o Cinema Novo brasileiro.”⁶
Como dito anteriormente, ser influenciado por Godard nunca se tratou de querer imitar Godard - algo que, na compreensão teórica de Glauber, era especialmente impossível em um contexto de terceiro mundo mesmo se algum diretor tentasse. Realidades diferentes suscitam questões específicas a serem colocadas pelo cinema. Isto posto, em 1969, no período da atuação de Godard junto ao grupo Dziga Vertov, Glauber pontua um aspecto dessa impossibilidade:
"Nos dias passados falei com Godard sobre a colocação do cinema político. Godard sustenta que nós do Brasil estamos na situação ideal para fazer um cinema revolucionário e, ao invés disso, fazemos ainda um cinema revisionista, isto é, dando importância ao drama, ao desenvolvimento do espetáculo, em suma.
(...) Eu entendo Godard. Um cineasta europeu, francês, é lógico, que se ponha o problema de destruir o cinema. Mas nós não podemos destruir aquilo que não existe.”⁷
É justamente à importância de assimilar rigorosamente a diferença de contexto que essa citação remete. Os feitos de Godard não podem ser isolados da situação em que o cinema francês se encontrava antes dele e dos outros jovens turcos da Cahiers du Cinema. À “tradição de qualidade” dominante na França (caracterizada, resumidamente, por filmes de roteiristas em que o diretor ocupa um papel secundário⁸), os vanguardistas ligados à Cahiers apresentavam como resposta estudar, revisitar, e aprender com os bons autores estrangeiros - e naquele período isso significava os autores americanos. O que se percebe nos filmes do Godard é uma consciência histórica de todo esse cinema que veio antes dele - consciência da situação do cinema francês, das tradições do cinema clássico, das convenções e regras dos gêneros cinematográficos -, sem a qual não seria possível propor uma ruptura de forma tão precisa. Acossado revisa os filmes de gângster, Uma Mulher é Uma Mulher os musicais americanos, Alphaville os filmes de espionagem, isso tudo concomitantemente à ruptura estabelecida em relação às próprias tradições do cinema francês. Diante de tradições e convenções já consolidadas, o brilhantismo de Godard consiste em não rejeitá-las, mas sim compreender suas dinâmicas para, então, responder a elas.
Mais posteriormente, após 68, essa resposta se torna ainda mais radical do que já era no início de sua trajetória: além do rompimento com a estética vigente já praticado desde seus primeiros filmes (de outra maneira), a proposição passa a ser destruir o cinema - tese que se manifesta quando Godard se associa a Gorin e cria o grupo Dziga Vertov. A partir desse estímulo de Godard, a reflexão de Glauber: perfeitas colocações para o panorama europeu, mas não há como um cineasta brasileiro destruir um cinema que não existe; não há como reagir às tradições do cinema de seu país se elas nunca se consolidaram.
Até a emergência do Cinema Novo, a indústria do cinema brasileiro foi marcada por uma série de surtos que rapidamente se apagaram, sem criar tendência ou fazer escola. Diretores que, através de um esforço hercúleo nos anos 20, 30 ou 40, conseguiram produzir uma ou outra obra de destaque, jamais viam seu trabalho motivar um fortalecimento da indústria nacional como um todo⁹. Como Bernardet coloca:
Quantas vezes nos anos 1910 e 1920, anunciou-se o primeiro filme nacional? Não era verdade, havia precedentes, mas precedente que vinham sendo esquecidos à medida que apareciam. Por isso a expressão o “primeiro filme nacional” embora não verdadeira, refletia a situação, pois a experiência cinematográfica não se sedimentava, não se acumulava. Era sempre um recomeçar do zero. (...). O Cinema Novo me parece ter sentido agudamente essa falta de raízes cinematográficas brasileiras.¹⁰
O cineasta brasileiro dos anos 50 e 60, consequentemente, não tinha uma história cinematográfica nacional contra a qual reagir ou mesmo destruir. Em seus escritos, parece ser esse o maior ponto de divergência entre Glauber e Godard a partir do envolvimento deste com o grupo Dziga Vertov: uma divergência teórica que essencialmente se origina da distância entre o “fazer cinema” em um país de primeiro mundo e um país do terceiro mundo.
Reiterando todas as questões colocadas nesse texto, essa divergência entre Glauber e Godard não impede o primeiro de reconhecer e exaltar o gênio do francês, afinal este não foi compreendido pelo brasileiro como um tipo ideal de cineasta que deveria ser exportado e copiado - algo, para ele, impossível. Glauber em momento algum filma tendo em vista imitar a estética de Godard, mas sim - a seu próprio modo, em seu próprio contexto - conceber um cinema coerente com sua realidade específica de Terceiro Mundo. Ao fim e ao cabo, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha são duas figuras emblemáticas da história do cinema que mesmo com suas divergências têm uma essência em comum: são dois artistas que sempre foram às últimas consequências para não trair sua própria arte - isto é, nunca cederam ao “bom pensamento cinematográfico”. A obra de Godard passa por inúmeras metamorfoses no intervalo entre a sua estreia e Imagem e Palavra, de 2018, mas esse pressuposto fundamental se manteve. É um artista impossível de catalogar com um só rótulo, ou mesmo com qualquer rótulo que seja. Glauber, de modo similar, é um quando filma Barravento, em 1962, é outro quando atua em Vento do Leste, e outro quando lança A Idade da Terra, em 1980. Também um cineasta político inclassificável, também um autor explosivo, que assimilou da melhor forma as contribuições de Godard para o cinema mundial.
¹ O Cinema no Século. Glauber Rocha (Edição de 2006, p. 363)
² O Cinema no Século. Glauber Rocha (Edição de 2006, p. 317)
³ O Cinema no Século. Glauber Rocha (Edição de 2006, p. 370)
⁴ Para a análise de Glauber a esse respeito, ver o artigo intitulado Revolução cinematográfica, de 1967, em: Revolução do Cinema Novo. Glauber Rocha (Edição de 2004, p. 101-103)
⁵ O Cinema no Século. Glauber Rocha (Edição de 2006, p. 371)
⁶ O Cinema no Século. Glauber Rocha (Edição de 2006, p. 173)
⁷ Revolução do Cinema Novo. Glauber Rocha (Edição de 2004, p. 152)
⁸ Para mais detalhes a esse respeito, ver o artigo de Truffaut intitulado Uma certa tendência do cinema francês, publicado na Cahiers du Cinema em 1954.
⁹ Brasil em tempo de cinema. Jean-Claude Bernardet (Edição de 2007, p. 29)
¹⁰ Cinema brasileiro: propostas para uma história. Jean-Claude Bernardet (Edição de 2009, p. 99)
Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aqui e para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.
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