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Foto do escritorCarolina Calvet

Carta aberta à morte e solidão

A morte é o tema menos requisitado em qualquer roda de conversa; até que ela acontece e te obriga a mudar tudo



Eram 3:27 quando acordei com a garganta seca. Abri meus olhos sem entender onde estava. Ao meu redor, nenhuma luz estava acesa. Um silêncio congelante tomava conta do lugar, e eu sentia todo o meu corpo tomado por suor. Precisei de alguns segundos até entender o que havia acontecido — eu estava dentro do meu próprio quarto, depois de ter mais um pesadelo.


Completamente sozinho, eu conseguia ouvir a morte sussurrando em meus ouvidos outra vez. Ultimamente, eu tenho morrido demais, numa frequência maior do que gostaria. Já completei o meu décimo óbito, só nessa semana. Tem sido assim desde que Clarice se foi.


Às vezes, penso que gostaria que sua partida tivesse acontecido de uma forma menos dolorosa. Talvez, se eu tivesse chegado do trabalho numa quinta-feira nublada e percebido que ela havia desistido de nós, teria sido melhor. Eu preferiria que ela tivesse encontrado um outro alguém, e, lentamente, sido cada vez menos presente, até que, em silêncio, fosse embora pra sempre, após retirar todas as suas roupas do armário.


Pensar nas infinitas possibilidades de sua partida física, mas ainda nesse plano, tornaram-se mais comuns do que eu imaginava. Essa foi a melhor forma de fugir da realidade que encontrei, mas, por mais que eu tentasse me manter num mundo paralelo, não era possível disfarçar por muito tempo.


Confesso que acho a morte muito mal educada quando decide chegar sem avisar. Foi dessa maneira que ela se apresentou para mim. O chão se abriu bem na minha frente. Clarice se foi para sempre. Não do jeito que eu gostaria — ou, ao menos, preferiria que fosse. Aquela quinta-feira nublada, na verdade, trouxe sentimentos muito piores do que o de um abandono ou traição.


Ao sair do trabalho, naquele fim de tarde, passei na adega da esquina e comprei um vinho barato qualquer. Minha ideia era surpreender Clarice e terminar a noite completamente embriagado, numa falha tentativa de fazer a porra da rotina ser menos cansativa. Não era um dia especial, muito pelo contrário. Era só mais um dia ordinário e tosco, assim como todos os outros. Sem perspectivas de futuro, sem possibilidades de mudança.


Mas o ordinário, com ela, sempre se tornava especial. Em dias como aquele, uma cartela de cigarro se esvaziava em poucas horas. Bem mais rápido do que o recomendado, essa é a verdade — mas seguir regras nunca foi a nossa praia, e talvez tenha sido isso que fez com que nós nos aproximássemos.


No cruzamento da avenida principal, há poucos metros de casa, ouvi o celular tocando. Ignorei a primeira chamada e continuei andando, afinal, sempre achei um porre atender ligações. Vi o sinal ficar amarelo, e corri para conseguir atravessar a pista a tempo.


Já do outro lado da calçada, recebi uma segunda ligação. Irritado, enfiei a mão no bolso, pensando em todas as barbaridades que gritaria pro atendente de telemarketing que ousava me ligar fora do horário comercial. Ao olhar pra tela, porém, tive uma desagradável surpresa: quem ligava era Marília, mãe de Clarice, com quem eu não falava há meses, desde nossa última discussão.


Não consigo me lembrar de nada que aconteceu entre o momento em que atendi o celular até a hora em que desci do taxi no hospital do centro da cidade. Ao chegar na porta, ainda em estado de choque, fui recebido com abraços de parentes que me olhavam com dó, mas não sabiam exatamente o que dizer.


Foi uma crise convulsiva de alta duração — o médico disse. Nós fizemos de tudo, mas ela já chegou sem vida. Eu ouvia, mas não conseguia compreender. Por alguns segundos, pensei que estava passando por um teste. Esperei as câmeras aparecerem junto com o aviso de pegadinha, mas, no final das contas, acho que o apresentador do programa esqueceu de interromper a brincadeira e perdeu o timing.


Nada do que eu escutava fazia sentido. Naquela mesma manhã, antes de sair de casa, deixei seu café da manhã preparado em cima da mesa, porque sabia da dificuldade que ela tinha pra levantar cedo. Será que aquele beijo na testa que Clarice recebeu enquanto ainda dormia seria o último que eu daria? Não era possível. Não era esse o nosso combinado.


Eu sequer conseguia chorar, porque tudo era muito distante da realidade, e meu cérebro não conseguia, ou não queria, acreditar naquilo. A última mensagem que ela havia me mandado, às 15h30, ainda não tinha sido respondida: culpa de uma reunião de última hora que tomou toda a minha tarde no escritório.


Naquela noite, nossa casa esteve lotada. Amigos e familiares se organizavam em turnos para garantir que eu não ficasse sozinho em momento algum após receber a notícia. Durante as primeiras 12 horas foi bom. Foi o que me fez manter a cabeça ocupada e me obrigou a reorganizar o quartinho, que não era ocupado há meses. Preparar comida, arrumar a cama, passar um pano e tirar aquela grossa camada de poeira: não sobrou tempo pra pensar que Clarice nunca mais voltaria.


Na manhã seguinte, recebi dezenas de ligações. Eu repetia, mecanicamente, todas as informações passadas pela equipe médica, mas não conseguia acreditar no que saía da minha própria boca. Não, ela nunca havia passado mal antes. Sim, eu sei que ela era muito nova. Devo passar a tarde toda resolvendo questões burocráticas e o resto da papelada. Eu concordo, foi uma fatalidade.


Eu estava irritado comigo mesmo. Havia acabado de perder a pessoa mais importante da minha vida e não conseguia demonstrar meus sentimentos nem por um segundo. Aquela irritação, que continuou me perseguindo por dias, foi a grande responsável por me fazer expulsar todas as visitas que estavam na sala de estar.


Eu precisava de silêncio. Precisava estar ali. Sozinho. Precisava ouvir meus próprios pensamentos. E, no final da tarde, desabei. Gritei seu nome como quem busca fôlego pra respirar, mas não tive sucesso. Pensei que chamá-la fosse suficiente, e que a veria na porta do quarto com um velho vestido desbotado, mas ela não apareceu. Os vizinhos ouviram meu choro, mas não ligaram nem tocaram a campainha pra perguntar se estava tudo bem.


Eu me permiti fazer todo o barulho que precisava, sem pensar nas boas políticas de vizinhança ou no medo de passar vergonha. Chutei a porta, esmurrei o sofá e me joguei no chão. Aquela grande criança emburrada, caída na sala, tentava desesperadamente pedir ajuda, mas não sabia a quem recorrer.


Eu não sabia como seria revê-la num caixão, encostar em sua pele fria e não ter nenhuma resposta do seu corpo ao entrar em contato com o meu. Para ser sincero, eu nem queria estar lá no momento da despedida. Esse costume cristão e samaritano nunca entrou na minha cabeça, e eu sabia que já não era ela quem estaria ali.


Minha maior vontade era pegar tudo e fugir pra sempre, mas ainda haviam detalhes que precisavam ser resolvidos. A roupa que ela usaria no enterro, meu deus, como foi difícil escolher. Abrir suas gavetas e sentir seu cheiro era, de longe, o maior ato de automutilação já visto na história.


Durante o funeral, eu repetia para mim mesmo o quanto queria que aquele dia acabasse. Todos os abraços, demonstrações de afeto e frases prontas ajudavam momentaneamente, mas eu contava os segundos para não estar mais ali. Precisava acabar com aquele pesadelo, mas o tempo se arrastava.


Durante os cinco dias seguintes, não falei com ninguém. A caixa postal piscava, numa tentativa desesperada de me avisar que estava lotada, e os recados pareciam não acabar nunca. Mais de dez pessoas tocaram a campainha, mesmo sabendo que eu não seria capaz de abrir a porta. Eu não queria estar presente. Não precisava de visitas naquele momento.


O mais irônico de tudo foi achar que o dia de sua despedida seria o mais difícil – uma mera ilusão. Na primeira manhã em que acordei e fui preparar o café da manhã, senti que meu coração estava sendo dilacerado enquanto eu respirava. Num impulso, coloquei duas xícaras na mesa, como eu sempre fazia.


Fiquei ali, por alguns segundos, tentando entender meus próprios movimentos e reeducando meu cérebro de forma a entender que aquela organização não aconteceria mais. Clarice nunca mais se atrasaria para dar aulas. Minha rotina não seria mais a mesma. O cheiro do pão torrado com manteiga que ela gostava, aos poucos, seria substituído apenas pelo cheiro do café preto, amargo e sem açúcar.


Fazem três meses desde que senti o cheiro de Clarice pela última vez. Desde então, nunca mais fui recebido em casa com o abraço que me envolvia e espalhava o cheiro cítrico do shampoo e doce do amaciante, que se misturavam e traduziam exatamente quem ela era. Tentei fazer essa mesma mistura outras vezes, sem sucesso, já que a maneira em que o aroma fixava em sua pele não se repetia em mais ninguém.


Eu ainda não consegui voltar a trabalhar, e sinto que meu chefe já está ficando puto com essa história. O luto sempre tem um prazo definido pela sociedade, e se manter nele por mais tempo do que o previsto sempre é visto como exagero ou falta de maturidade emocional. Já estou sendo julgado pelos dois.


Ao contrário do que todos dizem, eu não me acostumei com essa falta. A saudade não passou a doer menos com o tempo, como todos me avisaram. Além da solidão, que me acompanha dia após dia dentro de casa, comecei a me preocupar com outro sentimento: o do esquecimento.


Eu jurei pra mim mesmo que jamais esqueceria o rosto de Clarice. Nem da cicatriz que ela tinha na sobrancelha esquerda, muito menos daquela mecha de cabelo que insistia em cair todas as vezes em que ela começava a gargalhar. Mas ao contrário do que se deseja, a mente humana é ridiculamente ignorante.


Ontem a tarde precisei revisitar nossas conversas pelo celular, algo que tenho feito quase que diariamente, mas dessa vez com um objetivo específico. Por alguns minutos, percebi que eu já não conseguia lembrar o tom da voz que me acompanhava antes de dormir, e precisei ouvir um áudio antigo a fim de me certificar de que isso não cairia no esquecimento.


Talvez seja essa a parte mais difícil da morte: a necessidade de continuar amando uma pessoa sem o estímulo da presença viva. É muito fácil amar quando se tem alguém ao lado todos os dias contando as mesmas piadas ridículas e usando um perfume com cheiro de afeto.


Precisei de um tempo para entender que o luto é nada mais do que um processo de desamor. Não por deixar de amar; isso definitivamente não seria possível. Mas por precisar reaprender a viver o amor, abrir mão de tudo que já foi um dia e readaptar uma vida inteira sem aquele alguém. É preciso arrancar aquele jeito acostumado de dentro de si para amar, de uma forma diferente, quem se foi.


Não sei se algum dia vai deixar de doer, apesar de querer muito acreditar nisso. Pela intensidade em que o silêncio me invade, acredito que não. Não há um só dia em que eu não me sinta culpado por não ter respondido sua última mensagem, aquela que recebi enquanto estava numa reunião com a alta liderança do escritório.


Penso em tudo que não pudemos ser, não por não tentarmos, mas por não termos tido tempo o suficiente. E todas às vezes em que eu caio no labirinto do “e se?”, percebo que jamais tive controle sobre o tempo, ou sobre o que pensávamos que poderíamos fazer com ele.


Eu me deparei, por esses dias, com uma frase que dizia que pra quem não gosta da vida, a morte é um consolo. Talvez faça sentido. Mas o que fazer quando o que consola sua vida deixa de existir? Quando o que te mantém de pé vai embora pra sempre? Eu não tenho mais conseguido gostar do mundo desde o dia em que Clarice partiu.


 

Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aquie para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.


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