1958. Nas grandes planícies do Nebraska, um casal de jovens comete múltiplos assassinatos. Décadas depois, um homem decide trilhar o caminho percorrido pelos assassinos.
Uma ‘reimaginação’ do caso Starkweather
QUANDO Wendy Fowles conheceu Jim Stannard, ele já a conhecia há um bom tempo. Não que houvesse nela algo realmente notável, algo que se sobressaísse à primeira vista, mas as constantes idas de Jim, então coletor de lixo na cidade de Lincoln, estado do Nebraska, à rua de Wendy a trabalho, tornara a frequente visão de uma garota-moça no quintal de casa, fazendo o dever escolar ou apenas olhando a paisagem, bastante agradável — principalmente quando contrastado à sordidez do trabalho ao qual ele era obrigado. Contudo, a verdade é que Wendy possuía sim um quê de especial. Mesmo tendo apenas catorze anos, a jovem de cabelos escuros e olhos penetrantes (que entre muitas outras coisas recordava o olhar de uma cobra prestes a dar o bote), era razoavelmente madura para sua idade. O corpo, que ternamente maturava, tomava agora feições de mulher. Os tímidos seios de antes tornaram-se avantajados e enfim “dignos de apreço”. As curvas de uma estrada sem fim passaram a delinear toda sua extensão corpórea, e uma consciente malícia rebelde dava lugar ao tépido rosto inocente da meninice. Essas transformações, porém, embora repletas de significações atribuídas de maneira posterior, não representavam nada além do natural ciclo de mudança ocorrido na vida de uma garota como aquela no fim da década de 50. Mas isso, bem como a juventude e a sociedade americana do período, haveria de mudar drasticamente, incendiada pelos acontecimentos que Jim Stannard e Wendy em breve protagonizariam.
Jim era filho de uma família operária; as dificuldades econômicas, embora nunca lhe causassem fome, destruíram o resquício de sonho americano que desde novo aprendera a alimentar. Afastado de tudo e todos nas grandes planícies do meio oeste, o jovem de dezoito anos aprendeu cedo o espaço que era destinado a garotos como ele. E talvez por isso a figura de James Dean soasse tão misticamente próxima de sua visão de si mesmo. Dean era, como ele, um rebelde nato. Um indisciplinado sem lugar no mundo e ao mesmo tempo com o mundo inteiro para si. O cabelo de Dean era como o seu, a estrutura encorpada, músculos evidentes, ombros largos e trejeitos desleixados não negavam: era ele um homem, assim como Dean o era. Mas como em Dean — e quiçá fosse essa, entre eles, a maior semelhança —, o que tornava indubitável a masculinidade que carregava eram os femininos traços que davam feição ao rosto, e permitiam que naquele conjunto de massa e osso em proporções desiguais, habitasse a delicadeza e o mais etéreo dos equilíbrios. E foi essa característica o que mais chamara atenção de Wendy na primeira vez que o viu.
Numa das diversas vezes em que Jim ficou observando Wendy enquanto recolhia as latas de lixo em Lincoln, Nebraska, Jim decidiu interromper o trabalho, ir até ela e convidá-la para caminhar. “Eles vão me demitir de qualquer maneira mesmo”. Depois de combinar uma saída do horário de trabalho antes do previsto com o colega (que concordou relutante em cobrir as horas do rapaz), Jim foi até o gramado de Wendy e disse um sonoro e seguro: “Você quer andar por aí?”.
Sim, ela queria. Na verdade, era a primeira vez que um rapaz, um quase homem, lhe fizera uma pergunta daquelas. E para uma garota cujo desenvolvimento efervescia, aquilo significava muito. Naquele instante em específico, ela não sabia quem era Jim. Não sabia que ele era lobo solitário, um pouco como ela, nem que apesar da envolvente fisicalidade e certa confiança na fala, havia ali um homem, ou melhor, um rapaz, cuja aparência (e de modo mais específico as pernas disformes) fosse alvo de zombaria desde sua infância. O ímpeto inicial era o de dizer um enlouquecido sim. Mas Wendy também não era aquele tipo de garota.
“Eu ainda preciso fazer o dever de casa”
“Você pode levar com você, não vamos longe”
Ela gostava daquilo. De alguém que a dissesse o que fazer, não de um jeito mandão e intrusivo como fazia o seu pai, mas de um modo orientador e que lhe poupasse meios-pensamentos, dúvidas, divagações… Ela gostava do quão direto era Jim porque sentia ser ele um livro aberto ao qual a ela muito interessava folhear. Eles deram algumas voltas pelas proximidades e observaram o cair da tarde com um prazer mútuo por aquele momento estar sendo vivenciado por dois pares de olhos em vez de um só. Wendy pensou em como um par de olhos compreendia tão minúsculo campo de visão, e como ela agora somente desejava olhar as coisas sob olhos quádruplos, onde se enxerga cada vez mais e mais longe.
Pensou isso quando Jim contou a ela sobre tudo o que havia aprendido a fazer: dirigir carros de um canto para o outro, tirar leite de vacas e recolher lixo. Jim havia visto muitas coisas desde o período em que abandonou a escola para trabalhar em tempo integral. “Você não fica mais tão preso e consegue fazer as coisas como bem pensar”. Jim odiou a experiência como estudante, mas apreciava os estudos e principalmente quem se dava bem com eles — grupo que agora incluía Wendy. Ela nunca fora a melhor da classe, mas havia nela uma genuína sede de conhecimento — o que, claro, nem sempre seguia à risca o conteúdo aprendido nas salas de aula. Ela gostava de revistas de celebridades e curiosidades do mundo natural, e Jim achava fascinante a forma como a garota parecia se perder e se encontrar no meio de todas aquelas linhas e palavras complicadas. Quando muito depois, autoridades policiais encontraram livros escolares junto a armas e roupas ensanguentadas no carro de fuga do casal, Jim afirmou: “Eu pedi que ela levasse os livros com ela para que não se sentisse atrasada ou algo assim”. Era verdade, e durante todos os dias de matança, Wendy lia, no tempo livre, algum capítulo de seu livro de biologia, “só para não perder a prática”.
Jim e Wendy já se conheciam há algum tempo, e os encontros se tornavam cada vez mais frequentes. Saíam caminhar por bosques e lagos, Wendy falava pouco — nada tinha para falar —, e Jim dizia frases entrecortadas que carregavam um intrigante ar de sublimação, o que para seu enunciador significava “falar como um personagem de James Dean”. Se sentiam muito confortáveis com a presença um do outro, nos silêncios intercalados pelo cabisbaixo ruído da natureza ao redor, e nos espontâneos diálogos traçados por suas mentes ainda em formação. Numa dessas tardes à beira do lago, consumaram seu amor. Wendy se sentia estranha de um modo positivo, e a todo momento perguntava a Jim se estava “fazendo tudo certo”. Ele não sabia, nunca havia feito, e o máximo que pode responder foram murmúrios afirmativos, que descontentaram uma esforçada Wendy. Quando se despediram do lago, sagraram o espaço onde tudo ocorrera, e Jim teve um lampejo de pensamento: imaginou que muitos anos depois, alguém olharia a água, as flores e as terras sob o chão, e sob aquele mesmo céu, imaginariam Jim e Wendy por dentre os arbustos, com as pernas sobrepostas, reflexo mais inócuo da mocidade, e se perguntariam como duas criaturas humanas tão próximas do divino seriam capazes de fazer o que sabiam serem capazes. O pensamento agradou Jim.
Com o passar do tempo, Jim acabou perdendo o emprego como coletor de lixo pelas repetitivas faltas e o “desleixo no ofício” — palavras de seu próprio patrão quando o demitiu. Não encontrou nenhum outro trabalho fixo, então trabalhava em atividades esporádicas e com alta rotatividade, no campo e em alguns pontos da cidade. Jim e Wendy se encontravam às escondidas, desde que os pais de Wendy descobriram o relacionamento e proibiram que se encontrassem. Não que Jim fosse particularmente culpado por isso, ele até que tentou parecer um bom garoto quando se apresentou aos sogros, mas o histórico depunha contra ele: era muito mais velho do que ela, havia abandonado a escola e praticamente não tinha trabalho. Jim, de certo modo, respeitava isso. “Eles apenas estavam cuidando da filha deles”. Porém, no momento em que proibiram por completo o contato entre os dois, sem margem para as interpolações amigáveis de Jim, ele ficou realmente irritado.
E foi num final de outono, princípio de inverno, que essa irritação chegou ao seu ápice. Os pais de Wendy haviam inscrito a filha em todo e qualquer tipo de atividades extracurriculares, com o único intuito de impedir os encontros às escondidas com Jim, o garoto-homem problemático e de índole questionável. Apesar disso, o casal continuava a se encontrar nos momentos em que Jim sabia serem seguros. Essa restrição à liberdade, porém, pouco a pouco inflamava uma já antiga tendência a violência do rapaz. Quando ainda frequentava a escola, mais ou menos com 13 anos, Jim havia socado o rosto de um colega, depois do jovenzinho afirmar que as pernas de Jim eram “pequenas e coxas pra caralho” durante uma aula no ginásio. Não se considerava especialmente violento. Havia, claro, episódios particulares que tendencionavam a essa afirmação, mas Jim sabia bem que eram coisas de momento, onde ele precisava defender a si mesmo de pessoas que sabia serem ruins. Mas Jim, bem ao fundo, era consciente de seu rancor contra pessoas que se achavam “melhores do que eles”, o que envolvia praticamente todo mundo.
O mais recente desses casos tinha sido há apenas algumas semanas dos acontecimentos que tornariam Jim e Wendy conhecidos por toda a América. Era o começo de dezembro de 1957, e Jim havia ido a um posto de gasolina encher um pouco do tanque. Na saída, reparou num urso de pelúcia abraçado a um coração, na vitrine da loja de conveniências dentro do posto. Pensou imediatamente em Wendy. Adentrou na loja e pediu o preço ao rapaz de 22 anos, Richard Corbett. Um avoado Richard informou o valor, e acresceu a informação de que o pagamento somente poderia ser realizado à vista. O jovem Corbett na verdade tinha o pensamento em outra coisa. Tinha descoberto há pouco que sua namorada estava grávida de seu primeiro filho. Quanta alegria circundava na casa dos Corbett! Sempre tivera o sonho de ser pai, e agora o iria realizar com a garota que de maneira muito terna amava. Outras preocupações, porém, afligiam Richard. “Eu tenho que trabalhar mais, criança traz despesa e eu preciso dar uma situação confortável para minha garota”. E isso explica porque Richard estava, em pleno sábado, fazendo o plantão da noite no afastado e solitário posto de gasolina.
Jim não sabia de nada disso quando, após muitas tentativas de convencer o rapaz a lhe vender o ursinho de pelúcia no crédito, o levou a uma estrada de chão afastada do posto e atirou três vezes contra Richard com uma espingarda. Fora a primeira vez que Jim havia matado um homem, e aquilo lhe ocorreu da maneira mais natural possível. Nada o ressentiu na manhã seguinte, nem nas muitas outras posteriores. Só ele viu os olhos de superioridade com o qual aquele homem lhe olhara, e aquele olhar ele conhecia muito bem. Vários já direcionaram aquele mesmo olhar em diversos momentos da vida de Jim, e ele queria ter podido matar todos eles. “Mortos eles são todos iguais, estão todos no mesmo nível”. Nada ligava Jim ao homicídio, nem a qualquer outra pessoa, na realidade. “Um trabalho muito bem feito”, afirmou o xerife de Lincoln ao se deparar com a dificuldade do caso e sua impossível solução. Com as semanas se passando, as investigações foram esfriando e embora nunca tivessem amedrontado Jim, agora a situação permitia que ele agisse mais claramente sobre a intromissão dos pais de Wendy na natureza de seu relacionamento. Jim estava disposto a fazer o que fosse necessário para ficar com Wendy, e com a chegada do ano de 1958, muito mudaria nas prosaicas planícies do Nebraska.
LINCOLN, no estado do Nebraska, é uma cidade de natureza interiorana alçada ao prestígio de ser capital de um dos cinquenta estados da federação. Contando hoje com cerca de duzentos mil habitantes, Lincoln é considerada uma das dez cidades mais acolhedoras da América, sendo lar de muitos refugiados, de vietnamitas a iraquianos. Geograficamente, se situa entre a região das grandes planícies, bem como a maioria do Nebraska. O calor do verão é demasiado quente, e o frio do inverno é congelante. Nomeada com o sobrenome de uma das figuras mais importantes da história americana, a cidade é como muitas outras de médio porte nos Estados Unidos, e a segunda maior do estado.
O Nebraska é cercado por linhas retas ao norte por Dakota do Sul, ao sudoeste por Colorado, oeste por Wyoming, e sul por Kansas. Ao leste se situam Iowa e Missouri. É a primeira vez que viajo por essas localidades, bem no coração da América. A razão? Uma onda de assassinatos ocorrida no fim da década de 50 pelos jovens Jim Stannard e Wendy Fowles. Nessa época do ano, o tempo é ameno e embeleza os vastos campos que circundam a estrada principal que liga às várias cidades do estado. A viagem em si soa, para mim, anacrônica. A distância temporal dos acontecimentos para o presente momento é certamente um grande empecilho, mas é curioso observar a ação do tempo nessas localidades, e como em sua essência, trata-se do mesmo lugar. O mesmo caminho trilhado pelos assassinos é o que trilho agora, e as manchas de sangue por eles deixadas, embora há muito já limpas, aparecem para mim com o mesmo bordô intenso de quando fresco, e norteiam meu destino como pegadas. Pegadas humanas ou de animais?
Escrevi a estrofe de um poema sobre o caso. Ei-lo:
O efêmero do corpo,
quando confrontado com o vasto da natureza,
e com a solitude das criaturas de Deus,
torna natural a penumbra da carne,
porque há o céu que não se alcança,
e do pó ao pó um grito lança,
que mata, in contraria fata
para só então,
viver
À morte e à natureza humana, enquanto narrativa, cabe a prosa e não ao verso; Capote sabia bem disso. Desisto da poesia com a mesma rispidez em que a inicio. A existência de Truman Capote surge sobre mim como uma sombra da qual é impossível escapar. Seu A Sangue Frio retorna para mim e a história que pretendo contar com o mesmo poder de um Livro da Vida. Como se retrata quem morre, quem mata, e quem vive, após Capote já ter o feito? Como se retrata a violência em todas suas vias e sob todos seus ângulos? Como se prosa com tamanha perfeição, de modo que se torne possível controlar a respiração, a pulsação e a mente de quem o lê? Como se capta a verdade com tamanha essência, e a potencializa na mentira? Qual é as estremas da literatura e até que ponto é ela mais vivaz do que a própria vida? Capote pergunta tanto quanto responde, penso eu. Embora sua obra compreenda as extensões sobre a qual firmo minha pedra, isso me surge muito mais por inevitabilidade. Não há como interiorizar na cerne do inconsciente humano sem o fundamental de seu relato, e ainda menos, sem a plena consciência da natureza divina.
Onde está a imagem e semelhança de Deus no selvagem do homem? Afinal, Ele viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom. No fim das contas, essa viagem acaba sendo a busca pelo resquício de Deus que há em mim, e por extensão, que há também no homem.
ERA janeiro de 1958. Fazia frio mas o sangue de Jim fervia. Não era irritadiço, na realidade, passava um ar calmo e manso na maior parte do tempo. Mas havia momentos que o descontrolavam, como no caso do rapaz do posto no ano anterior, e agora, na casa dos Fowles. Wendy estava na escola, então Jim resolveu ir até a casa para resolver a situação com os pais dela de uma vez por todas. Estava preparado para uma recusa incessante sobre ele e Wendy ficarem juntos por parte dos pais, então, caso isso acontecesse, ele já tinha um plano: iria preparar uma mala pra ela, e juntos fugiriam para onde quer que desejassem. No entanto, as coisas saíram do controle, como quase sempre saía, se tratando de Jim. Ele entrou armado, “mas só para assustar eles”, e iniciou uma conversa com o pai de Wendy.
“Você vai se dar mal por isso, garoto”
“Eu não quero ter que atirar em você”
“Eu vou ligar pra polícia, seu vagabundo!”
Jim utilizava a arma como ameaça para impedir que o pai de Wendy realmente ligasse. Ele faria o necessário para somente sair de lá acompanhado por Wendy, a única garota que o havia amado ou se interessado por ele de alguma maneira. E isso em parte se explicava pela solidão involuntária da garota: não tinha amigos na escola, muito menos fora dela. Passava a maior parte do tempo quieta, divagando e observando. Observava muito, talvez a coisa que mais sabia fazer — e foi também isso o que fez, quando chegou em casa e encontrou o corpo dos pais jazidos no chão, ao redor de uma poça grande de sangue, e um afastado Jim a olhando nos olhos. “Não adianta chamar os médicos, eles já estão mortos”, murmurou Jim. Aquilo não a desestabilizou de maneira particular. Apenas a encheu de uma singela raiva, principalmente por Jim não ter a avisado sobre nada daquilo. Não odiava os pais, eram na realidade boas pessoas, embora banais, extremamente banais. Olhando nos falecidos olhos semiabertos da mãe, se perguntou se algum deles, ao menos uma vez, experimentara enxergar as coisas sob um conjunto, como ela havia feito. A inexistência de brilho no rosto dos recém-defuntos atestaram para ela que não, nunca haviam sentido aquilo que ela há pouco descobrira ser possível. Não entendiam porque era algo além da cognoscibilidade humana, algo que transcendia o mundano e as questões terrenas; e para quem sempre havia sido sozinho, aquilo era tudo o que poderia haver. Nada disso, porém, impediu Wendy de estapear Jim quando, por definitivo, constatou a morte de seu pai e de sua mãe.
O caso ocorreu assim: gritos e murmúrios, seguidos pelo alto estrondo de cinco tiros, somente silenciado por um eco fúnebre. Três acertaram o pai, e dois acertaram a mãe. Nenhum dos vizinhos escutou nada, talvez pelos disparos terem ocorrido numa sequência muito próxima, ou por suas imaginações terem associado o nefasto barulho à outra coisa que não um duplo assassinato. A Sra. Olivier, uma mulher gorda de uns 60 anos que morava na casa ao lado, pode ter imaginado ser o ronco incessante do marido, que tarde da manhã ainda dormia. O Sr. Johnson, um homem ranzinza de 45 anos (que mais pareciam 70), imaginou ser as crianças na rua fazendo “sabe lá Deus o quê”. Afinal, numa cidade pacata como Lincoln, poderia ser tudo menos um assassinato. Mas fora exatamente isso o que ocorrera, dentro da casa dos Fowles, e a poucos metros de distância dos Olivier e dos Johnson.
Mais tarde naquele mesmo dia, quando o sol não mais tornava visível o que se tentava esconder, Jim carregou os dois corpos, um de cada vez, e os jogou no alçapão que ficava na parte de trás da casa. Faz-se aqui um adendo. Os Fowles não eram membros assíduos da comunidade, nem mesmo numa cidade relativamente unida (embora não pequena) como Lincoln. Não eram frequentadores da igreja, nem representavam papel importante na estrutura estudantil. Por conta disso, ninguém sentiu de maneira exagerada a falta deles por alguns, ou sendo mais sincero, vários dias, a partir da data em que ocorreram os assassinatos. A jovem Wendy colocou uma placa no quintal de casa com os dizeres “Não se aproximem, estamos gripados!”. E isso não foi realmente algo estranho, afinal, se os Fowles não eram lá muito sociáveis, não era impossível acreditar que eram, ao menos, um pouco cuidadosos e não desejassem contaminar também seus vizinhos e pessoas próximas. Mas com o passar dos dias, até o mais crédulo dos familiares viria a estranhar uma tão prolongada ausência. E foi com essa cambaleante pulga atrás da orelha que a avó Fowles, ao passar 6 dias, decidiu comunicar a polícia sobre os “esquisitos acontecimentos que se passavam na casa dos Fowles”, que prontamente atenderam o chamado e foram até a casa.
Nos dias que se passaram, Jim e Wendy viveram na casa como marido e mulher. Cozinharam, organizaram a mobília, trocaram carícias, e viram várias vezes o nascer e o pôr do sol. Era como se o mundo ao redor tivesse parado de girar e apenas eles conseguissem se mexer. No primeiro dia, separaram a luz da escuridão. Wendy passara o dia inteiro quieta, remoendo o falecimento dos pais nas mãos de Jim. Mas caiu em si quando se deu conta por inteiro da situação: agora não havia nada que lhe importasse senão Jim. Era ele e ninguém mais. Isso explica porque não fugiu nas várias oportunidades que teve enquanto ainda estavam na casa, e muitas outras mais depois, quando outros assassinatos ainda viriam a acontecer. Afinal, sem Jim o que lhe restava? Havia uma assimilação entre eles que ultrapassava o romântico e alcançava a essência — que pareciam compartilhar por inteiro. Ao fim dos seis dias em que passaram dentro da casa, saíram e viram não o mundo que conheciam antes, mas outro que diferia por completo, onde não havia mais dúvida e confusão, mas firmamentos que demarcavam tudo o que é natural. Pouco depois, os policiais entraram na casa e não tardaram a encontrar os dois corpos putrificados no galpão de trás da casa, iniciando a maior corrida investigativa da história do estado do Nebraska. Enquanto isso ocorria, Jim e Wendy adentravam em Bennet, uma vila na região metropolitana de Lincoln, com um carro que haviam roubado, e rumavam em direção à casa de um antigo conhecido de Jim. E ali cumpriu-se o mandamento que dizia “o homem deve deixar pai e mãe, para unir-se à sua mulher e se tornarem uma só carne”.
SAIO de Lincoln e dirijo em direção à Bennet. A estadia por Lincoln foi mais longa do que eu imaginava. Mesmo muito tempo depois, a cidade ainda parece, de alguma maneira, afetada pelos acontecimentos. Imaginar Jim e Wendy pelos bosques em que visitei, caminhando pelas ruas ou na varanda da casa onde tudo aquilo se passou, não foi um árduo trabalho de imaginação. Na verdade, tudo parece intocado. Há sim a presença opressiva da modernidade sob aquele espaço, com as tecnologias e todas paranoias mercadológicas comuns à vida americana contemporânea, mas isso parece arrefecido por um ar de deslocamento que fala mais alto.
Fui à bibliotecas, procurei arquivos e conversei com pessoas que conheceram os dois adolescentes. “Ninguém poderia imaginar”, eram falas frequentes quando eu me referia a garota. “Ele era um diabo, aquele Stannard”, eram reações frequentes quando eu me referia ao garoto. No mais, pouco consegui descobrir. É como se a névoa da distância temporal tornasse turvo a visão da comunidade sobre o caso, e tudo o que sobrou foram as intensas sensações evocadas ao ler os terríveis crimes cometidos pelo casal no noticiário. Um senhor, que preferiu se apresentar apenas como Leonard, diz ter sido próximo de Jim no colégio. Na maior parte do tempo, a conversa foi uma extensa repetição de preceitos gerais sobre o casal e os crimes que cometeram, mas algo em especial chamou minha atenção.
“Ele não era do tipo durão, embora muitas pessoas depois nos tentassem fazer acreditar nisso. Acho que é essa a questão, sabe? O fato dele ser como a gente. Sim, ele era exatamente como cada um de nós, garotos. Brigávamos na escola, várias vezes fomos suspensos por algum tipo de confusão na sala ou no ginásio, mas era só isso. Jim também era assim, mas muito menos do que os outros rapazes. Ele era mais… sensível, acho que essa seria a palavra. Nós crescemos, vários se tornaram advogados, médicos, e eu tive amigos do colégio que viraram felizes lojistas e membros do comércio local. Mas Jim, bem aconteceu tudo aquilo com ele. Eu ainda acho que aquela garota teve uma ponta naquilo tudo, mas eles são culpados sim, certamente culpados. Mas eu preciso ser sincero com você quando digo que tenho um frio na espinha até hoje quando penso em tudo o que aconteceu. Alguém que cresceu como eu, e que matou tantas pessoas… Penso que sou sortudo, é isso o que acho.”
Leonard apresenta a feição sofrida, parte pelo desgaste do tempo e parte pelo intenso trabalho braçal que exerceu durante toda a vida. Um senhor alto e delgado, que procurou manter-se distante durante toda a conversa. Estava evidentemente saturado das conversas sobre o caso, de modo que murmurou um baixo (embora ainda audível) “De novo!”, quando bati na porta de sua casa e pedi para conversar sobre sua antiga amizade com Jim Stannard. Ele me confessou que há anos não vinha ninguém visitá-lo sobre aquilo, e por isso surpreendeu-se com o motivo do diálogo. A grande maioria das pessoas que intimamente conheceram Jim e Wendy quando jovens estão na verdade mortas, ou se vivas, fora de contato. Mas são muitas as que se lembram dos nefastos acontecimentos daquele inverno de 1958.
“A cidade parecia campo de guerra, sim senhor. Eu tinha uns oito ou nove anos mas ainda lembro do medo que meus pais tinham quando saiu aquela notícia da casa dos Fowles. Os pais dela estavam mortos! E naquele ponto ninguém mais acreditava que ela tinha sido sequestrada pelo Jim ou algo assim. Eu lembro que todos passaram a trancar a porta das suas casas. Imagina, trancar as portas na Lincoln dos anos 50! Eu tinha uma amiguinha, a Suzie, e a gente brincava que eles iam vir pegar a gente e ficávamos morrendo de medo depois. Acho que nada nunca mais foi igual por aqui, depois de tudo aquilo. Lembro que anos depois, mamãe ainda ficou com o pé atrás quando eu comecei a namorar um garoto do colégio. Ela dizia que ‘garotos ruins desvirtuam garotas boas’. Acho que em parte ela tava certa, apesar do John não ter a capacidade de matar uma mosca. Acabei casando com ele, mas nos separamos depois. Mamãe realmente estava certa.”
Mesmo dentre os que nem eram nascidos naquela época, o caso Fowles-Stannard parece vir à memória com a mesma lucidez de eventos marcantes no cânone nacional, como o 11 de setembro ou os assassinatos de Ted Bundy. É uma história de sangue e morte para Lincoln chamar de sua. Dentre os mais jovens, não há quem negue o tórrido interesse no caso. Jenna, uma garota de pouco mais de 18 anos, é obcecada por casos de crimes seriais. Ela me relata que o interesse mórbido nasceu ainda nova, quando ficava assustada vendo os noticiários televisivos de depois da meia-noite. Hoje, seu maior passatempo consiste em tardes assistindo o “Investigation Discovery”, ou variações de seu conteúdo em outras plataformas. Não se considera violenta, nem acredita que seu interesse tenda para um comportamento agressivo ou indiferente.
“Eu só acho… interessante? Não sei (risos), mas é algo que chama muito atenção, sim. No começo eu ficava desacreditada assistindo tudo aquilo, mas com o tempo fica comum né? Acontece tanta coisa. As vezes eu fico completamente paranoica e confiro as portas da casa umas mil vezes antes de dormir, porque lembro de algum documentário que eu vi onde o cara tinha entrado pela porta destrancada e matado toda a família. Tem quem se interesse só pela brutalidade, mas eu acho que nesses casos isso é o que menos importa. Eu fico interessada mesmo é na situação. O que fez essa pessoa fazer aquilo? Tem tanta gente doente no mundo… Meu pai me contou sobre o caso de um cara que matou por cinco dólares ou algo assim, mas o que realmente me enche de medo é aqueles que matam por matar, sabe? Os que parecem sentir prazer em tudo isso.”
O fúnebre passatempo de Jenna não é incomum para grande parte dos jovens, e isso fica evidente pelo alto número de produções desse tipo lançadas regularmente. O caminho trilhado pelos assassinos, seus meticulosos processos em cada morte, e os detalhes sanguinários fazem parte do que mais chama atenção nesse tipo de conteúdo. Jenna me questionou se era isso o que eu estava fazendo, algum documentário sobre os assassinos adolescentes de Lincoln. A respondi que sim, e que em breve ela teria acesso àquilo em alguma plataforma. A pergunta mexeu comigo profundamente. Afinal, o que eu estava fazendo ali? Seria eu como Jenna e tantos outros? Não podia negar o desejo interno que me levava a tudo aquilo, uma intensa vontade de saber mais, detalhe por detalhe e sangue por sangue. Mas seria apenas isso?
Jim e Wendy se tornaram para mim indissociáveis das paisagens das planícies do Nebraska, de modo que em todo campo de vasta extensão, eu me pegava imaginando se eles ainda estariam ali, fugindo sobre os altos milharais de tons sépias e amarelo desgastado. A violência que cometeram me interessava acima de tudo pelo contraste que exercia, quando comparado às duas figuras angelicais que a cometiam. Os dois eram jovens como Jenna é agora, e o fato de terem tido acesso tão irrestrito a violência me assusta profundamente. Se há prazer em observar o obscuro, há também em cometê-lo? Como eu poderia saber se Jenna um dia, não viria também a derramar sangue sob o preceito de experimentar a sensação que ela tão curiosamente havia visto na televisão? Penso ser como o Sr. Leonard me disse, alguns têm sorte e outros não, e isso é tudo.
AO adentrarem na minúscula Bennet, Jim e Wendy viraram a segunda à esquerda, num caminho que levava a terrenos (ainda mais) afastados da parte ‘urbana’ da vila, e dirigiram mais um pouco até encontrar a propriedade do Sr. Goldwyn, um baixo homem de 70 anos e que lembrava um velho John Huston em Chinatown. A princípio, ele não se assustou ao ver se aproximar um carro na entrada de sua fazenda. O velho Goldwyn frequentemente recebia visitas de amigos antigos, do tempo em que tinha paciência para pescar e força física para cavalgar. Era conhecido por toda aquela microrregião de Bennet como um senhor adorável, calmo e franzino. Portanto, não se assustou quando viu que era o jovem Jim Stannard que dirigia o carro. “O pequeno Jimmy!”, pensou ele. E quanto mais o carro se aproximava, maior ficava o sorriso do velho e o latido de seu imenso cachorro Terry.
Jim conhecia o velho Goldwyn desde muito novo, era um amigo de seu pai do tempo em que ainda gostava dele. Foram muitas as tardes em que o Sr. Stannard, o Sr. Goldwyn e o pequeno Jimmy passaram pescando nos infindáveis rios do Nebraska. Não eram bons pescadores, mas a ausência de peixe era suprida pela companhia adorável e pela boa conversa que jogavam fora. Jim, na verdade, falava muito pouco, mas gostava de ouvir os dois adultos contando causos (cuja veracidade era contestável até para uma criança), e dando desculpas esfarrapadas para a inconteste falta de peixes: “A maré não está boa hoje”, ou o típico “Acho que essa não é a temporada para pesca”. Jim não ressentia em nada o velho Goldwyn. Era na realidade uma boa memória de um tempo que nunca mais voltaria, os tempos em que a única preocupação de Jim eram os problemas banais da infância. Considerava sua formação absolutamente normal em todos os sentidos; nunca lhe faltou comida e possuía todos os brinquedos que desejava possuir. Quando cresceu, as coisas mudaram, é verdade. Tomou consciência da situação econômica que cercava os Stannard, e de como eram, para todos os efeitos, pobres. Isso se tornou mais evidente com a escola e a maior inclusão de Jim na comunidade, onde todos pareciam lhe olhar de cima a baixo e aquilo o repugnava. Mas ali, agora, em frente ao velho Goldwyn, ele ainda era o pequeno Jim dos vastos brinquedos de caubói e da despreocupada meninice.
“Oh, Jimmy meu garoto, como você está? Céus, como você cresceu!”
Jim era baixo, ainda mais que o Sr. Goldwyn, e aquela última fala o deixou incomodado.
“Velho Goldwyn! Não sabia se ainda te acharia por aqui.”
“E em qual outro lugar eu poderia estar? Bennet sempre acaba me puxando de volta, de alguma maneira (forçando uma aguda gargalhada).”
Jim apresentou Wendy ao velho, que se encantou pela beleza peculiar da garota. Conversaram um pouco, ainda em frente a casa, quando Jim perguntou se poderia entrar. Goldwyn não era por completo imbecil, embora gradualmente se aproximasse da senilidade. Ele reparara que aquele Jim não era o mesmo Jimmy de quando novo. Primeiro pela fala, era mais carregada, de um tipo que “quer dizer mais do que diz”, ao qual o velho Gold de maneira frequente associava a vida na cidade. Depois a garota, que diabo de garota era aquela? Ela olhava o velho com uma feição de desprezo. E por último, a conversa ainda não havia declarado a razão de tão inusual visita.
“Olha, diga-me Jimmy, o que aconteceu? Você está em apuros?”
Jim estava irritado. Sim, era claro, o velho já tinha lido tudo o que tinha acontecido pelos jornais! Como ele não pensara naquilo? Tudo bem que em um lugar como Bennet as coisas chegam com um relativo atraso, mas de algum modo ele descobrira tudo e certamente iria chamar a polícia. Jim ia puxando algo próximo a cintura quando Wendy irrompeu uma resposta.
“Estamos indo para uma viagem e Jim resolveu parar para lhe cumprimentar”
A garota olhava o velho com um olhar mais calmo desta vez. Ele retribuiu a fala com um tímido sorriso. O velho Goldwyn era um cara do Nebraska. Nascido no século passado, viu tudo o que era possível ver: guerras, cavalos e tempestades. As guerras eram muito distantes do meio do nada onde se situa o Nebraska, mas seja no Japão, na Coreia ou na Europa, Goldwyn esteve em espírito lutando com todos eles. Andou de cavalo infinitas vezes e enfrentou terríveis tornados. As garotas vinham aos montes na mocidade, e com o passar dos anos, foram afunilando-se até beirar a extinção na velhice. Nunca casou, mas amou duas e gostou bastante de outras três. Talvez tenha tido filhos, não sabia; mas considerava sua linhagem viva o bastante, mesmo que apenas no imaginário da pequena Bennet. Ele morreu ali, quando se virou para abrir a porta e recebeu cinco tiros do pequeno-grande Jimmy, seguido pelo seu amigo de muitos anos, o cachorro Terry, cujo latido incessante cravou a própria morte. Ali estava tudo o que Goldwyn tinha sido e nunca mais será — a fazenda, o cachorro, e o corpo enrugado caído no chão. Seria colocado em algum lugar na parte de trás da casa, para só depois de algum tempo ser encontrado pelos policiais e enterrado dignamente no pequeno cemitério da vila. “Não se morre tanto por aqui, por isso é pequeno”, diria alguma velha moradora estarrecida pela morte do vizinho; porque afinal, em Bennet todos são vizinhos. E ali acabou, tão repentinamente quanto começou, a vida do velho senhor Goldwyn — que já fora criança, jovem e adulto, para só então, ser morto.
Wendy ficou estarrecida com a impulsividade do companheiro. Afinal, depois de passado o desprezo inicial que Wendy sentia por quase todas as pessoas, ela até que estava gostando do velho franzino. “Por que você fez isso?”. Jim não respondia. Ele sabia porque tinha feito, era para impedir que eles fossem pegos; mas seria isso mesmo? No fundo Jim não sabia porque atirava, mas gostava de como se sentia ao fazê-lo. Wendy entrou de volta no carro enquanto Jim carregava o corpo até os fundos da casa, o depositando por baixo de um caixote que Goldwyn usava na fazenda. Estava morto de fome, por isso chamou Wendy para dentro da casa, onde cozinharam biscoitos e tomaram leite morno. Nas horas que ficaram dentro da propriedade de Goldwyn, foi como um daqueles momentos na casa de Wendy antes da fuga dos dois. Wendy imaginou como gostaria de ficar ali para sempre, apenas os dois na vastidão da natureza. Mas ela sabia que isso não seria possível, por isso, quando se aproximava do fim da tarde, Jim a avisou que iriam sair em breve — era Jim quem dizia aonde iriam e em que horário. Ela não se importava com isso, embora gostasse muito de se sentir ouvida, mesmo que apenas superficialmente.
Saquearam todo o pouco dinheiro que encontraram nos cofres do velho Goldwyn e guardaram alguns mantimentos no carro para o resto da viagem. Jim se lembrou da provável existência de um caseiro, dada a avançada idade do recém-falecido Goldwyn, e a imensa proporção de sua fazenda. Decidiu que sairiam dali o mais rápido possível, mas depararam-se com um percalço no caminho: o carro estava com as rodas presas numa espécie de lama, de modo que se tornava impossível sair dali. Ele tentou dar partida diversas vezes, mas o carro estava realmente encalhado. Jim ficou chutando a carcaça enquanto Wendy tirava as coisas do carro e caminhava em direção a entrada da propriedade. Ela propôs que tentassem uma carona, e Jim relutante (mas também sem melhores ideias) aceitou. Foram quinze minutos até o primeiro vestígio de presença humana aparecer por aquelas bandas, era um homem de mais ou menos quarenta anos e que se aproximou ao notar a figura de Wendy, uma linda e avantajada garota de quatorze anos. Ao tomar consciência também da presença de Jim, iniciou o processo contrário ao de desaceleração que havia feito, o que foi reagido por um solavanco na traseira da caminhonete por Jim. “Canalhas sujos e filhos da puta!”. Aguardaram mais dez minutos, em silêncio, até verem se aproximar um polido carro de passeio, com um lindo casal de adolescentes dentro. Jim fez sinal para que parassem, o que foi prontamente atendido pelo casal.
“Ei, vocês estão indo para onde? Querem carona?”
“Para onde vocês estiverem indo!”
Trocaram sorrisos, e Jim e Wendy entraram no banco de trás do carro. Seria a última vez que Richard James, de dezessete anos, e Claire Williams, de dezesseis, seriam vistos com vida.
BENNET é uma extensão (ainda mais rural) de Lincoln. Contando hoje com cerca de mil habitantes, a vila pacata e tipicamente estruturada, sofre do mesmo fantasma antigo que assombra também sua matriz, Lincoln. As pessoas são ainda mais reservadas, e olham com maus olhos a minha presença. Dos que eram amigos do senhor Goldwyn, e que o visitavam para relembrar os bons velhos tempos, já não sobrou nenhum. Há ainda alguns que dizem se lembrar de Goldwyn como um adorável patrono da vila na infância, mas o que a grande maioria conhece é o que foi repassado pelos seus pais ou avós, que introduzem a história de um benfeitor da comunidade brutalmente assassinado por dois jovens lunáticos geralmente como uma moral da história. Dentre os que se lembram do casal de adolescentes Richard e Claire, estão os amigos do colégio (hoje, idosos), e familiares que se questionam como teria sido a vida deles, caso tivessem a oportunidade de vivê-las.
O número de habitantes é ligeiramente inflacionado, visto que uma grande parte dos atuais moradores de Bennet, na realidade, trabalham em Lincoln e apenas voltam para casa para dormir ou nos finais de semana. Com essas pessoas, pouco consegui contato, mas são no geral bem apreciados pelo restante dos moradores. Desde a Grande Depressão, Bennet foi limitada a um apêndice na geografia do Nebraska, graças a intensa transição dos habitantes do início do século passado para cidades maiores, buscando melhores condições de vida. Por vezes, soa realmente como um lugar abandonado por Deus, bem como todo o Nebraska.
A estadia foi curta, e consistiu, na maior parte do tempo, numa visita à antiga propriedade de Goldwyn, e que hoje está sendo leiloada por um banco. Três ou quatro moraram ali, depois do trágico assassinato. Nunca constataram a presença de assombrações, e o motivo pelo qual se mudaram é dos mais variados. O corretor me apresentou a casa, e disse estar surpreso por uma pessoa “como eu” estar interessada em tão afastado espaço. “Você não é daqueles estranhos que só querem ver o lugar onde aconteceu aquela bizarrice né?”. Neguei, mas isso é essencialmente quem eu era. É uma grande propriedade protegida por uma imensa vegetação, onde o sol inebria de maneira tímida, mas calorosa. A casa passou por intensos processos de reforma, que tentaram mascarar sua inegável idade. Era velha, mas poderia, sem muitas reclamações, abrigar uma feliz família que desejasse se aventurar pelo interior do Nebraska. Tento imaginar como estava essa casa quando Jim e Wendy aqui ficaram. A poucos metros da porta de entrada, onde o corpo do velho Goldwyn caiu estirado no chão, e mais a frente, onde um casal de adolescentes encontrou seus carrascos, no ponto em que a entrada da propriedade e a estrada convergem, o sangue ainda mancha a terra coberta por fina camada de gelo? No raiar da manhã, os ecos que esse território abriga soam mais audíveis. Como na casa dos pais de Wendy, os ecos que ressoam são não de fantasmas, mas de vida; vidas interrompidas, encurtadas, e condenadas, como a de Jim e Wendy.
Para além da brutalidade, o que há de mais fatal nesses acontecimentos é sua aparente ausência de finalidade. A mente humana assimila, e em certo grau, se compadece, com a morte que se justifica. Mesmo as mais banais motivações, o ciúme, a raiva, o roubo material, soam mais lúcidos no imaginário social do que a morte sem escopo, e portanto, inatural. Talvez por isso, tanto tempo depois, Jim e Wendy ainda sejam uma incógnita. Natural born killers? Como compreender o humano que se situa fora de tudo o que compreendemos como humanidade? Como éramos nós aos dezenove anos de idade? E aos catorze? Quão perto estivemos de nos tornarmos eles? Me pego pensando se um passo, um mero passo em outra direção, não me aproximaria dessa mesma noção ambígua de existência. Caminhar por onde os dois caminharam, ver o que os dois viram, não elucidou suas vidas por completo para mim, mas conscientizou-me de que existiram como carne, do pó nasceram e ao pó voltarão; e esse exercício de correlação já exerceu sobre mim maior impacto do que qualquer similaridade mundana pudesse proporcionar.
Ainda em Bennet, resolvo visitar o cemitério local. Há dois cemitérios em Bennet, um maior, próximo a parte central da vila, e outro menor, no interior. O do velho Goldwyn está neste menor. Na lápide, consta a data de nascimento e a de falecimento, o nome, e acima disso, a epígrafe Son. Um túmulo modesto com flores lapidadas. No maior, estão os jazigos dos dois adolescentes, situados cada um próximo ao de sua família. Ambos parecem bem cuidados, e no de Claire há uma flor que aparenta ter sido recém-colocada, talvez há uma ou duas semanas. Faz um frio brando, típico dessa época do ano. Tento imaginar como estão os corpos, enterrados a sete palmos. Estariam apenas os ossos? Talvez nem isso. Não sinto nada, o tempo diluiu todo o impacto que poderia exercer sobre mim. Depois de tantos anos, o defunto abandona qualquer semelhança que poderia haver com seu eu vivo, e torna-se um transfigurado e pútrido resto corpóreo. Os jovens, mortos sem ao menos alcançar seu ápice físico, são agora nada além de pó. Para onde vai toda beleza? A sensível beleza de Claire, seus modos delicados, quase ingleses, para onde vão? E a força física, a vontade e os trejeitos duros de Richard? Um rapaz que outrora fez-se homem, para só então ser lembrança que o tempo carrega para lugar nenhum… Quem se lembrará de todos eles daqui cinquenta, cem, duzentos anos? E de mim?
“ELE não é como os outros garotos, Mindy”, confidenciou Claire à sua amiga do colégio, em alguma semana entre outubro e novembro de 1957. “Ele realmente gosta de mim. E é lindo, poderia me casar com ele”. Mindy tinha lá suas dúvidas. Claire era a estrela do high school local, uma garota doce, empenhada, e que exercia grande influência sobre todas as garotas na comunidade. Todos adoravam Claire, o que claro incluía Mindy, e também o namorado, Richard. Eles começaram a se relacionar no verão de 1957, e desde ali firmaram compromisso perante os pais de cada um. Richard era um bom garoto, trabalhador, e loucamente apaixonado por Claire. Ele comprou um belo Ford, e saía sempre a passear com Claire pelas extensões de Bennet. No colégio, eram o casal que todos adoravam. Os garotos imaginavam como seria namorar a linda Claire, e as garotas imaginavam como seria namorar o charmoso Richard. Nenhum deles, porém, ousaria interromper essa história de amor para elucidar os anseios de suas imaginações.
“E vocês, já fizeram… bem, aquilo?”, indagou uma indiscreta Mindy. Claire conhecia bem quem Mindy era, e sabia que não podia confiar nela nem um pouco quando se tratava de confissões, embora fosse uma boa amiga. “Não, é claro que não! Isso vai levar um tempo ainda, eu acho…”. Não era mentira, mas também não totalmente a verdade. O maior problema para Claire era nunca ter em quem confiar. Havia Richard, sim, e ele era um bom consolo, mas Claire sentia falta de uma amiga a quem pudesse contar todas as coisas que aconteciam a ela naquele momento, alguém que não fosse sair correndo contar tudo para as garotas invejosas do colégio, como Claire bem sabia que Mindy faria. E se ela tivesse alguém a quem falar todas as coisas que sentia, eis aqui o que ela diria:
“Richard é adorável. Ele sabe muito bem como tratar uma mulher, é verdade. Mesmo com seu estilo bruto, me sinto como uma rosa delicada em suas mãos, a qual ele preza com muito cuidado. Muita coisa tem mudado nos últimos tempos, e o que sinto por Richard parece ser a principal coisa em minha vida agora. Tudo parece evoluir entre nós de maneira tão natural! Primeiro o toque entre as mãos, depois os beijinhos, e agora esse ânimo excitante que cresce dentro de mim. Disse a ele que queria fazer as coisas com calma, para serem incríveis, e ele concordou por completo. Já tentamos algumas vezes, nunca chegamos àquela parte, mas todo o processo tem sido… bem, você sabe como é. Sinto uma pequena ansiedade, mas boa, diferente da que sinto em relação a outras coisas. Uma certa pressão é natural, mas as únicas pressões que me incomodam são as que impõem sobre mim. Todos nessa vila me olham com tanta expectativa, é quase assustador. ‘Você deve parecer impecável Claire, as garotas se espelham em você’, mamãe me diz o tempo todo. Mas a única coisa que eu gostaria de fazer é poder sair viajando por esse país com Richard, sem dar explicações e sem data para voltar. Às vezes acho que estou quase no ponto de explodir; ‘faça isso’, ‘não faça aquilo’, tudo que você faz ou não faz, em um lugar pequeno como Bennet, é motivo dos mais maldosos comentários. Querem que eu seja a Miss Bennet para sempre, mas na maior parte do tempo eu quero ser apenas eu, Claire, vivendo e fazendo as coisas no meu tempo. Mas acho que não dá pra ser tudo sempre perfeito, né?”
Em janeiro de 1958, Claire e Richard estavam no apogeu de sua paixão. Gostavam intensamente um do outro, e o mundo ao redor deles parecia partilhar dessa sensação: tudo era feliz e bom. Naquela tarde de segunda, depois de um cheio final de semana em que não tiveram tempo para estar a sós, o jovem casal resolveu passear pelo interior de Bennet como de maneira costumeira faziam. Richard pegou Claire em casa, após o colégio, e a levou a caminho de um riacho que se situa dentre duas propriedades rurais, na parte afastada da cidade. Conversaram sobre a escola, ele elogiou o lindo vestido dela, e eles sorriram ao vento ao som de Words of Love do Buddy Holly, que saia um tanto chiado do rádio do carro. Enquanto a voz de Buddy ecoava entrecortada (darlin’ i lov u…), Claire e Richard viram ao longe a figura de dois jovens acenando na lateral da estrada. Como naturalmente se faz em um lugar como Bennet, ele encostou o carro e pediu se precisavam de carona. Na realidade, Richard não queria dar carona; não por maldade ou algo assim, mas ele realmente queria passar o dia com Claire apenas. Havia planejado tudo: chegariam na beira do riacho, deixariam o rádio do carro ligado bem baixinho, e fariam aquilo que há tanto desejavam. Seria tão romântico, Claire o amaria por isso e lembraria daquele momento para sempre, ele tinha certeza. Mas então, apareceu aqueles dois jovens na beira da estrada, e aquilo, pensou Richard, “vai atrasar os planos alguns minutos”.
Wendy já estava cansada de esperar e agradeceu aos céus por aqueles dois terem aparecido. Quando eles entraram no carro, houve um choque entre os olhares das duas garotas. Claire reparou que Wendy tinha as roupas um pouco sujas e com pequenos furos, e viu também que o rapaz ao lado dela tinha manchas de sangue na barra da calça jeans clara que usava; aquilo tomou ela de horror. As duas, na realidade, correspondiam como partes indissociáveis de uma mesma metade. Elas nunca tinham se conhecido até aquele instante, e nunca teriam se o carro de Jim e Wendy não tivesse enganchado, se Wendy jamais tivesse partido com Jim, ou se o passeio de Claire e Richard fosse realizado mais tarde, ou na região central da vila. Mesmo com todas essas incógnitas e variáveis, o destino uniu as duas ali. Claire era tudo que Wendy sempre desejou ser, mas que a vida nunca permitiu que fosse: uma jovem garota exemplar. A família Fowles tinha problemas econômicos, no geral não eram bem vistos em Lincoln, e Wendy era um desastre quando se tratava de ser social ou popular, era uma garota que estava sempre na defensiva, como se todo o tempo esperasse um ataque vindo das outras pessoas. Claire era o oposto disso, um retrato exato do que se espera de uma garota nas entranhas do território americano da década de 50 — a condescendência e a doçura, uma vida voltada à comunidade mais do que a si mesma, fez com que nascesse em Claire um sonho de irromper a própria realidade, justamente como em certa medida fazia Wendy naquele momento.
O curioso lapso que a vida havia preparado para aqueles jovens de vidas tão idênticas em suas contrariedades, é daqueles momentos tragicômicos que compreendem toda a existência de um indivíduo. Quando Claire viu o sangue, entendeu que era questão de tempo até serem eles as próximas vítimas. Num intervalo de segundos, viu tudo que tinha vivido até ali passar diante dos seus olhos, e de certo modo, viu tudo isso no olhar de Wendy. Ela nunca mais veria a falsa-amiga Mindy, os pais exigentes mas amorosos, nunca mais vestiria seu lindo vestido rosa bebê que havia guardado para o baile de inverno, nem beijaria os lábios de Richard. Eles ainda tinham tanto para viver! Quando se morre tão cedo, se vê mais a vida que poderia ter, do que a que realmente teve. Eles teriam tido filhos? Talvez nem ficassem juntos, talvez Claire fosse para fora, e ele também. Estudariam, viajariam, amariam muitos outros, e em algum dia, voltariam à velha Bennet e conversariam loucamente para saber tudo o que cada um passou, desde o momento que se separaram. Richard elucidaria os afagos apaixonados que deram um ao outro, e inflamaria em Claire um anseio por repetir tudo isso. Claire contaria a ele que se tornou mãe de um garotinho esperto e que estava agora com o pai, em Lincoln. Teria se tornado enfermeira, porque nunca conseguiu conter o espírito empático que havia dentro dela, e Richard seria um bem-sucedido vendedor de carros no Kansas, sem filhos e que nunca amou alguém com a mesma intensidade que havia amado Claire. Eles se lembrariam daquela vez em janeiro de 58, quando foram à beira do riacho e fizeram amor, suaram, beijaram e atingiram outro grau de consciência. Se lembrariam de Richard deixando Claire em casa no fim do entardecer, para dar início a mais uma noite tranquila e banal nos confins do Nebraska. Eles se lembrariam, se houvesse algo a qual lembrar.
Jim puxou a arma e ordenou que os dois jovens saíssem do carro, e eles saíram todos ao mesmo tempo. Pediu para que andassem vários metros adiante, em direção a propriedade do velho Goldwyn. Claire e Richard estavam muito assustados, mas obedeceram com a vaga esperança de serem poupados com vida. Jim conduziu eles até um galpão que ficava aos fundos da propriedade, um galpão daqueles utilizados aos montes no período das dust storms que atingiram em cheio o coração da América dos anos 30, côncavo e de difícil saída. Jim matou Richard com dois tiros na cabeça, e depois atirou em Claire, cujo corpo foi encontrado num estado mais deteriorado. Para eles foi tudo natural, pois se Deus dá o direito de conceber a vida, ele há de permitir também sua retirada. E se nada disso fosse vontade Dele, como poderia julgar dois filhos seus gozando da alegria no paraíso que Ele mesmo lhes concebeu?
PENSO bastante em como seriam Jim e Wendy de verdade. Suas fotos não são tão claras sobre quem eram para mim, em parte por apenas os apresentar em uma dimensão única, estática. Lembro o tempo todo do longa de Terrence Malick, Badlands, e sua versão do casal de assassinos. Sissy Spacek faz uma Wendy acatada, aqui chamada de Holly, e Martin Sheen faz um viril Jim, aqui chamado de Kit. O cinema de Malick, de modo geral, parece estar todo sintetizado neste primeiro longa, de 1973. O intrínseco interesse pela natureza das coisas, o mundo ao redor sob uma lente de observação e assimilação, o espírito como fim primeiro e último de todas as coisas aparecem já aqui, embora de maneira muito mais discreta. Quando Malick filma os vastos campos donde seus personagens habitam, seja na floresta em que se escondem ou pelas extensas estradas pela qual fogem, ocorre um exercício de pertencimento àquele espaço, como se fossemos nós no carro junto com eles dois. De certo modo, é isso que tento replicar traçando essa viagem, imaginando incessante a figura de Jim e Wendy como fantasmas cuja sombra é impossível escapar.
Há muitas dificuldades nisso, e certamente a maior delas é o vulto com a qual suas presenças surgem para mim. Não são de corpo físico, ao mesmo tempo que são de materialidade indubitável. Seriam eles humanos? A brutalidade de seus crimes afasta o véu da consciência e aproxima a escuridão sórdida dos detalhes. Sinto que a cerne da questão é não o porquê mataram quem mataram, mas sim como se sentiram ao fazê-lo; talvez nada disso importe e as perguntas sejam uma forma de postergar a realidade, o concreto. Qual o papel de Wendy nisso tudo? Espectadora inerte ou mente vilanesca? Quanto mais me aproximo de tudo que fizeram, mais humanos soam para mim. Tão juvenis em sua inconsequência… De onde vêm tanto mal? É possível nascer assim? Seria esse mal alheio à existência humana ou parte inerente dela? Ficar tanto tempo preso numa viagem como essa me faz esquecer que existe um mundo lá fora, um mundo que continua a girar mesmo quando tudo no Nebraska parece ter emperrado.
Há um estágio no luto, o de mais fundamental importância, em que percebemos que a vida apesar de tudo continua. Depois de se fechar tão profundamente num poço fúnebre, onde a ausência toma o lugar do calor da presença, há um choque de realidade ao dar-se conta de que o mundo não se acabou. As pessoas ainda dirigem seus carros todos os dias pela manhã, tomam seu café e trocam beijos com quem amam ou fingem amar. Em alguma barriga ainda nasce vida, e em algum quarto escuro há quem chore por algum intenso amor que chegou ao fim. Na própria Lincoln, onde o casal de assassinos cometeu a maioria de seus nefastos crimes, a vida segue — talvez por não haver outra opção. Curiosamente, esses perceptíveis efeitos causados pela morte são sentidos de maneira exclusiva em vida, onde sua própria presença soa incomodativa, inatural. Os pais, irmãos, amigos e filhos dos falecidos, passaram todos por esse momento onde a penumbra do perecimento tomava o espaço de todo resquício de vivacidade que outrora tomava conta. Tenho razões para acreditar que, para Jim e Wendy, a vida antes da sanguinária matança representava o mesmo borrão de vivacidade que o luto provoca em quem o sofre. Se isso não respalda ou justifica a violência, ao menos compreende a tamanha indiferença para com as vidas que ceifaram.
Essa deturpação do ciclo humano, onde a morte reafirma o sentir-se vivo, significou para Jim a superioridade que a vida nunca havia proporcionado a ele. O que os torna humanos em tudo isso, bem como eu nessa inacabável estrada, ou como os relacionados aos falecidos no luto que passaram, é a procura inesgotável pelo algo a mais que parece ausente. O trágico dessa busca causar a morte de inocentes vidas, é tão causado por nós enquanto coletivo falho, quanto por Jim que apertou o gatilho, ou Wendy que assistiu tudo isso sob uma visão privilegiada. Em parte isso explica porque tantas décadas depois ainda há tantos Jim’s e Wendy’s com suas armas quentes e juventude inabalada. A linha que tece esse nefasto protótipo americano é de raíz muito mais profunda do que a insanidade de dois jovens no interior da maior e mais violenta nação de nossos tempos. A coexistência da violenta cultura de armas com a cada vez maior desvalorização da vida humana, torna insustentável, e em certo grau previsível, seu inevitável colapso. Talvez situar essa história de terror americana apenas sob os limites de um estado ou dois, e estruturar a malignidade como própria do indivíduo, tenha sido a forma mais fácil encontrada de trancafiar esse mal como exceptivo e distante. Mas a cada vez que adentro as profundidades dessa estrada, mais se torna visível como esse mal engloba tudo o que vejo; no fundo, não há dúvidas para mim que ele é tão humano quanto eu ou qualquer outro.
Voltando agora em direção a Lincoln, certos momentos em Bennet ainda permanecem tomando minha mente. A visita aos túmulos, as conversas com alguns moradores (os únicos receptivos) da vila, a paisagem irretocada, tudo soa aquém da violência toda que essas terras abrigaram. Quando tive acesso aos jornais da época, que se situam numa seção reservada e empoeirada da pequena biblioteca, me chamou atenção as descrições mórbidas do caso pela imprensa. A manchete “Casal de jovens encontrados mortos em alçapão rural”, seguida pelo relato de legistas, que constataram ‘sérias mutilações nas partes íntimas da garota’, parecem não corresponder ao mesmo crime que imaginei até ali. Não há um consenso exato que explique os acontecimentos por exato daquele dia, embora muitos acreditem ter sido Wendy a cometer tais agressões na garota, principalmente por ser o único assassinato que Jim negou ter cometido quando foi pego dias depois, e pelo fato de não ter sido constatado o ato de estupro. Uma névoa escurece a lucidez de tudo o que ocorreu para mim. Seria o apogeu dos sentimentos de inveja nutridos por Wendy? Ou o reflexo da perversidade tórrida de Jim? Me volto para a figura dos dois no filme de Malick e a serenidade com a qual percorrem a estrada. No fundo, torço pra ser tudo isso um sonho, ou apenas uma história de filme… Ainda tenho esperança de ser algo que não a crua realidade.
TIVERAM um impasse sobre para onde ir depois dali. Jim desejava ir ao Wyoming, ver a terra dos caubóis durões que ele brincava na infância, mas sentia ter coisas a resolver ainda em Lincoln. Wendy estava apática a qualquer que fosse a alternativa. O desgaste causado pelo extremismo da violência tinha começado a atingi-la, e embora nunca contasse isso a ele, gostaria de nunca ter saído da casa dos pais e permanecer a garota quieta e insignificante que havia sido até aquele momento na casa dos Fowles. Essa era uma opinião por muito diferente da que possuía quando a viagem iniciou, há alguns dias dali. Ela sentia que seja lá o que ocorresse, valia mais o proveito de uma semana bem vivida com alguém que ela amasse, do que anos de uma inválida existência; agora, bem, ela tinha suas dúvidas. Por fim, tinham decidido: rumariam de volta à Lincoln para um ato final e iriam à parte rica da cidade. Talvez o único ódio profundo que Jim mantinha era contra os ricos esnobes de Lincoln, cujas casas imensas e lindas ele conhecia muito bem. Tinha decorado a localização de un par delas, da época que catava os montes de lixo que eles produziam, no exaustivo trabalho. O rancor era não particular, Jim os odiava como um todo, por terem mais dinheiro, ou por se sentirem alguém melhor do que ele era. Assim, quando adentraram numa Lincoln ainda atordoada pelos recentes acontecimentos que tinham atingido a cidade, era como se tivessem vindo terminar o que tinham começado; e isso era, na prática, terminar de colocar fogo no que já tinha queimado há bastante tempo.
Os Walker não sabiam de nada daquilo quando a manhã chegou em mais uma banal terça-feira, nem sabiam que aquele mais curto dia de inverno, haveria de ser também o último de suas vidas. No dia anterior, ele, um bem-sucedido empresário do ramo industrial, de quarenta e oito anos e de nome Albert Walker, havia visto no jornal local sobre os terríveis acontecimentos que foram descobertos na casa da família Fowles. Ele não fazia ideia de quem diabos eram os Fowles, nem quem poderia ser o delinquente Jim que o jornal apontava como potencial culpado, mas sentiu-se levemente chocado pela brutalidade dos crimes, de modo que praguejou internamente algo sobre “adolescentes doentes”, ou alguma variação disso. Sua mente, como muitas vezes fazia ao dia, acabou esquecendo-se dessa nota de rodapé que ele de maneira tão despretensiosa havia lido. Por isso, não lembrou de contar à esposa, Laura, quando chegou em casa naquela segunda à noite, sobre os perigos que poderiam estar circundando as redondezas de Lincoln, nem lembrou de falar como poderiam talvez manter as portas trancadas e não atender ao chamado de estranhos, apenas como precaução. Esse esquecimento trivial do Sr. Walker representou muito trágico desenrolar, como o leitor muito em breve poderá constatar. Naquele momento, porém, não havia ocorrido consequência alguma, e os Walker se preparavam para deitar em suas camas e dormir mais uma ótima noite de sono.
E assim o fizeram. Nesse ponto, há certos detalhes que de alguma maneira merecem relativo destaque, como o fato do casal Walker ter uma governanta, a quieta e educadíssima Linda, uma mulher de cinquenta e um anos, do qual muitos deles haviam sido dedicados ao cuidado das coisas de outras pessoas, como a imensa casa dos Walker agora. Outra interessante constatação são os momentos finais do casal Walker naquela noite de segunda, e a subsequente manhã de terça. Jantaram bem e felizes a deliciosa refeição preparada por Linda, assistiram um pouco de televisão, e fizeram sua rotina particular antes de se deitarem na cama. Seria a última vez que deitariam juntos, e dormiriam próximos como tinham feito por muitos anos até ali. Há um quê de especial que não se percebe a olho nu, quando se faz a mais banal das coisas pela última vez. Naquela ocasião, por exemplo, seria a última vez que Linda prepararia seus famosos assados, a última vez que o casal assistiria à reprise de algum episódio antigo de Love Lucy, e a última vez que aquele maturado e notável par de pessoas unidas se amariam como Deus os havia feito para amar. Na manhã seguinte, seria a vez daquele trio que há tantos anos se conheciam, trocarem palavras pela última vez. O último cafezinho, o último beijo na testa (que Albert fazia sempre questão de dar em Laura antes de ir ao trabalho), os últimos acenos e olhares. Essa pintura tão exaustivamente pintada todas as manhãs na casa dos Walker, ocorria em sua versão derradeira; e não sobraria ninguém para testemunhar a importância desses ritos finais.
Jim e Wendy se aproximaram do bairro bem localizado em que viviam os Walker, e foram atraídos pelo imã que aquela residência exercia sobre eles e sobre qualquer outro. O Sr. Walker já tinha ido ao trabalho, e a Sra. Walker havia há pouco saído em direção a diretoria do clube que fazia parte. Assim, na casa de extensão absoluta, permanecia apenas a pequena figura da governanta Linda. Seria um golpe de sorte, como Jim pensou depois, o fato de, dentre todas as casas lindas e ricas dali, eles terem entrado na dos hospitaleiros Walker. A coisa aconteceu mais ou menos assim: eles estacionaram o Ford na rua que ficava atrás da casa, e caminharam disfarçadamente até a porta de entrada, numa pacata e quieta rua residencial. Bateram duas ou três vezes, e foram atendidos de imediato por uma mulher com vestes de doméstica.
“Olá! Viemos realizar um serviço, é aqui que moram os Ward?”
“Essa é a residência dos Walker, senhor”
“Isso, isso. Walker”
Jim forçou sua entrada na casa empurrando um pouco a porta, o que aterrorizou Linda por completo. Não estava acostumada a situações como essa, e em todos esses anos como governanta, nunca tinha sido assaltada ou passado por alguma situação que se assemelhasse a um crime. O terror foi muito depressa contido por Jim, que a esfaqueou incessantemente num lapso de tempo que ela, nem ele, sequer havia sentido passar. As coisas aconteceram numa velocidade ímpar, e de maneira tão abrupta quanto teceu esse primeiro contato, Jim já havia dado cabo ao corpo da fiel criada dos Walker. Ao escutar o latido agudo e chamativo do cachorro dos Walker, Jim também o matou cortando o pescoço caído pela elevada idade do canino. Wendy ficava estarrecida com a facilidade com que ele poderia matar um ser tão puro como o cão, e Jim percebendo a expressão julgadora da companheira, não tardou a tentar lhe explicar que tinha feito aquilo para impedir de serem pegos pelo vocal incômodo do animal. “Em bairros como esse não é comum cachorros latirem Wendy, os ricos iriam estranhar”. Eles adentraram mais fundo ao interior da casa, entrando em todos os quartos, abrindo todos os cômodos, puxando todas as gavetas, e vendo tudo o que poderia se ver. Wendy ficou encantada, em particular, pelas jóias e os lindos vestidos que tinha a Sra. Walker. “Ela deve ser uma mulher muito chique” disse Wendy, seguida por um “Aqui eles adoram nos fazer acreditar que são”, de Jim.
Havia na casa uma biblioteca muito grande, onde muitos títulos faziam referência a obras técnicas sobre processos industriais, mas também obras de literatura e ficção que interessavam a Wendy. Seus dedos passaram ansiosos pela extensão das lombadas, ela fechou os olhos, saltitou alguns passinhos, e tirou o livro no qual seu dedo havia parado: “The Wonderful Wizard of Oz”. Ela não sabia, mas naquele momento havia certas semelhanças curiosas entre ela e a protagonista do livro que havia tirado da estante, Dorothy. As duas eram órfãs (Wendy mais recentemente), e seguiam uma viagem estranha da qual nenhuma das duas parecia entender muito bem porque faziam parte. Mas diferente de Dorothy, Wendy não tinha uma bruxa boa que lhe ajudasse no caminho, nem sapatinhos que a protegessem do mal irretocável a qual estava destinada. Ela iniciou a leitura. “Dorothy vivia no meio das imensas pradarias do Kansas”. O Kansas era um pouco como o Nebraska, pensou Wendy. E pensou muitas outras coisas no entremeio de tempo em que leu, mais ou menos até Dorothy conhecer o Espantalho, quando teve sua leitura interrompida por Jim, que inquieto a avisava que se aproximava alguém. Ela olhou pela janela, e viu uma senhora elegante e com olhar adorável, e instantaneamente a relacionou aos vestidos que havia visto. Bem como Dorothy havia sido tirada da pequena casa em que vivia no Kansas para ser levada às terras sobrenaturais e longínquas de Oz, Wendy era agora tirada da calmaria para retornar à eloquente e sanguinária viagem que trilhava com Jim.
Eles mataram Laura Walker assim que ela pisou os pés na casa. “Agora só falta um”, pensou Jim, embora não tenha externalizado o pensamento. Jim lançou uma faca nela, e deu fim do mesmo modo que tinha dado à governanta Linda. Tal qual Dorothy tinha ganhado os sapatinhos após fazer morrer a Bruxa do Leste, Wendy tirou o sapato alto que calçava a Sra. Walker e testou em seus pés. Mesmo acreditando serem dela por direito, Wendy se sentiu estranha ao ver o par em seus pés. “São altos demais, é isso”. Tornou a tirá-los e demonstrou mais genuíno interesse pelas jóias que tinha visto no andar superior. Ficaram o resto do dia na casa, à espera de algo que Jim sabia ser o velho ricaço que era dono da casa, mas que Wendy bem imaginava ser uma passagem só de ida à Oz. O sol se punha na dimensão externa da residência, e eles comiam um lanche que Wendy havia preparado para os dois. Era recheado por um tipo diferente de frios que nenhum dos dois tinham experimentado, mas que sabiam agora ser imensamente deliciosos. A extensão das horas não incomodava eles, era proveitosa e gostariam que durasse para sempre. Jim sabia que não durariam, e sabia estar mais próxima de um fim quando o relógio apontou para as seis da tarde; afinal, logo o bem-sucedido Sr. Walker chegaria em casa depois de mais um cansativo dia de trabalho, e aguardaria ansioso ver a familiar face da criada Linda, e o rosto adorável da esposa Laura, todos à sua espera. Contudo, ele veria não dois pares de olhos conhecidos, mas o de estranhos e assassinos, que o olhariam como animais selvagens prestes a dar o bote.
Uns vinte minutos depois, eles ouviram o carro de Albert Walker se aproximar da casa. Era um homem magro e alto, maior do que Jim, e tinha os cabelos marcados por um branco gradativo. Estava talvez na melhor fase de sua vida, afinal, depois de décadas, alcançava enfim o posto de homem de negócios relevante. Na semana anterior, tinha tido uma reunião com o governador do Nebraska, e acordado um contrato envolvendo negociações industriais com o estado. Como se pode imaginar, seu eventual falecimento nas mãos do adolescente homicida causaria maior comoção na estrutura de segurança do condado do que as mortes anteriores tinham causado, e foi justamente isso o que aconteceu. Quando ele entrou na casa, esperando mais uma noite banal regada à Love Lucy e carinho da esposa, foi surpreendido pela feição jovial e charmosa de um garoto que já não tinha mais nada a perder. Tomou alguns tiros e caiu no chão coberto pelo requintado carpete, onde o sangue bordô escuro jorrado pelo furo das balas manchou o bege do tecido. Os moradores da grande casa na área nobre de Lincoln, que conheceram os dias de glória e os mais ilustres visitantes da residência hoje assombrada pelo vulto de fantasmas, estavam agora mortos um a um. Jim e Wendy pegaram jóias, roupas, mantimentos e dinheiro, e fugiram no luxuoso Packard de Albert. Sob o vento gelado do inverno, dirigiram para fora da cidade que já tinha esgotado para eles todo o resquício de novo que nela ainda poderia haver. Saíram de Lincoln pela última vez com a liberdade em que vieram à vida, e seriam agora procurados por todos os cantos das extensões rurais e urbanas do Nebraska à fora. Mas ali, naquele instante no carro preto do senhor Walker, no anoitecer da quarta, eles ainda tinham o mundo inteiro somente para eles.
NESSE ponto da viagem, depois de exaustivas semanas em que minha mente parece presa na execução do caminho trilhado pelos dois jovens, elementos da minha própria história parecem se interpolar à dos trágicos e distantes acontecimentos. Os muitos dias na estrada, mesmo cruzando trechos próximos, relativizaram minha impressão crítica da viagem de Jim e Wendy. Afinal, muitos dias longe de casa tornam a inexatidão espacial seu próprio lar; e isso acaba mexendo muito comigo, de alguma maneira. Penso agora em meu falecido pai, por um motivo em particular. Há muitos e muitos anos, quando eu não passava de um garoto, eu e ele viajávamos duas ou três vezes ao ano. Eram caminhos longos, que duravam por vezes doze horas, com as pausas se restringindo à abastecer e almoçar durante algum momento entre às onze da manhã e às duas da tarde. A parte da estrada em si era o mais tangível de todo percalço, até porque mesmo no desconforto do banco de trás de um carro de passeio, se encontra passatempos no caminho. Tinha um em particular que eu fazia bastante, consistia em utilizar meus dentes, que apesar de pequenos ocupavam um largo raio de distância entre uma extremidade a outra, pela separação que havia entre eles, e encostar os dentes caninos superior e inferior a cada vez que visse uma árvore na lateral da estrada. Com o carro em movimento e aprofundando no interior do país, onde cada vez mais presente se torna a vegetação e desaparece o extremo da ação antrópica, minhas horas iam se passando mais rápido ao combinar a ponta dos caninos de baixo e de cima no lado esquerdo, seguido pelo mesmo processo no lado direito, até o sono ser maior do que a fértil imaginação da criancice; era como se eu marcasse cada uma dessas árvores para me lembrar quando passasse por ali depois.
Não sei porque relato isso, talvez por essa forte lembrança me atingir em cheio na solidão desse estado estranho. Não posso mais realizar essas brincadeiras, o papel que exerço agora, o de quem dirige, impede essa desatenção e infantil forma de ludibriar o tempo. A estrada é tão insuportável agora como era na minha infância; odeio dirigir longas distâncias e parecer nunca sair do lugar, a paisagem é sempre tão igual. Talvez isso explique um comportamento estranho que meu pai adquiria na véspera dessas grandes viagens. Se tornava irritadiço, preocupado, falava pouco e quando abria a boca era para soltar alguma bronca. Quando se é criança, o mau humor dos pais significa o descolorir no olhar do filho, como se o borrão da vida adulta se estendesse no ainda irretocável modo de ser das coisas na infância. Creio ser essa a razão pela qual eu odeie tanto a extensão dessas terras, não suporto a existência de coisas que não consigo enxergar seu fim — aliás, sei bem onde fica a linha que demarca o limite do Nebraska e o começo do Wyoming, mas essa porra parece nunca chegar. Lincoln e Bennet são quase colados um ao outro, e quando eu via as pessoas que haviam em cada um desses lugares, a agonia dessa viagem se tornava ausente. Agora, no desolado dos confins interioranos, vejo apenas terra e campo de todos os lados da rodovia. Uma paisagem que compreende um árido que me é por completo novo. Não chega perto da secura extrema que presenciei em outras terras durante minha vida, mas o plano do terreno alicerçado a vagueza de seu conjunto tornam a visão de pastagens íngremes um pouco como o mais longínquo dos desertos.
Há muito trigo, e por vezes, a estrada se torna tão ínfima que a vastidão do natural parece tomar todo sinal de humano. De modo inconsciente, reproduzo o jogo dos dentes que fazia na infância, num trecho com maior presença de alta vegetação. Sinto como se conhecesse essas terras durante toda minha vida, e é isso o que me deixa mais ansioso para sair daqui o mais rápido possível. Por vezes, o amarelado adquire tons absolutos e toma o lugar na maior parte do caminho. Há intercalações com um verde escuro (mais raro) e um verde claro que aparece coadjuvante no amarelo da vista. No geral, se sobressai o amarelo que parece nascer do esverdeado, e quanto mais fundo nas extremidades das grandes planícies, mais comum se torna uma terra arrasada com contornos árduos, impróprios para a permanência humana. Percebo porque é ali o lugar onde Jim e Wendy se sentiram mais pertencentes; era um paraíso escondido em meio ao ermo da terra.
No rádio toca, na maior parte do tempo, Bruce Springsteen e seu Nebraska de 82. Álbum incognoscível para mim e creio que também para seu criador; vai tão fundo na alma que uma viagem dessas não pode ter partido com a cabeça no ponto de chegada. A faixa inicial narra os acontecimentos de Jim e Wendy sob a perspectiva de Jim. “Pelo menos por um tempo, senhor, eu e ela nos divertimos um pouco”. A elucidativa confissão de Jim nos versos da canção são mais tortuosos do que clarificadores, é verdade; o mais íntimo dos álbuns de Bruce, em forma e conteúdo. Há nas faixas seguintes, uma que retorna o pensamento à figura de meu pai. My Father’s House é um exemplo da impossibilidade de se escapar de quem nós somos, e por extensão, como eram nossos pais. O eu-lírico indo em busca da antiga casa do pai para ver se o encontra estabelece uma conversa profunda comigo e com essa minha “aventura”, penso eu. Teria eu embarcado em algo assim, se não houvesse em mim o profundo rancor por essas merdas de viagens? Jim e Wendy mataram tantos na sua fuga da realidade quanto eu mato a mim mesmo nessa estrada todos os dias.
Me volto à presença divina por não haver fora dela nenhuma solução. Questiono onde está Deus nessa terra tão afastada, não por descrença mas por genuína sede de saber. Penso estar Ele em todas as coisas da natureza, como sua onipresença em espírito me deduz. Se no começo do trajeto procurei entender o resquício de divindade que havia no vulgar da existência de Jim e Wendy, hoje ao menos compreendo suas vidas como parte daquilo que Deus planejou à humanidade, não como errática exceção. O que pensa Ele quando um de seus filhos mata um irmão em espécie? Os vê com olhos de pai que repreende o filho, ou os vê com compaixão e perdão? Me volto ao começo de todas as coisas quando penso em Jim e Wendy. No choque de poeira cósmica que deu forma e separou a luz da escuridão, e as mãos que teceram cada pequeno ponto do espaço e firmou cada pedra angular. Como se renega tudo isso? Como se renega a criação e se tira a vida que não foi por ti dada? E como se culpa dois seres pelo olhar deturpado que antes deles se desenvolveu, em relação à natureza das coisas?
Num canto já afastado de Lincoln, bem próximo às chamadas badlands do estado do Wyoming, onde Jim e Wendy encontraram o ponto final de sua corrida de sangue, vejo casas a alguns metros da beira da estreita estrada. Quase anoitecendo, naquele instante onde o sol já não ilumina, mas há ainda o claro deixado pelo recente de sua presença, há homens e mulheres alheios à vida que eu julgava conhecer. Distantes em tempo e local da minha compreensão moderna, parecem realizar o trivial de suas atividades no simples de suas casas. O frio que vêm com o breu agiliza essas atividades manuais, como recolher as roupas no varal ou puxar algum objeto deixado de fora para dentro da residência. Uma mulher de evidente gravidez me chamou atenção, ela sorri e aquele sorriso poderia congelar minha visão pela eternidade. Há uma aura na vida que carrega outra vida, como tornar claro o retrato da ação de Deus entre os homens; seu companheiro a olha com o mesmo encantamento. Crianças correm nas proximidades da casa ao lado, trajando vestes mais curtas do que seus corpos que rapidamente cresciam. Casas por inteiro fechadas, outras de janelas abertas e algumas com luz de tom quente sobrepujando a finesse do tecido das cortinas; ali sinto minha mente se afastar do terror que habitava Jim e Wendy para esboçar outras perguntas. Como vivem essas pessoas à margem do Éden e tão distantes do horrível imediato? O que fazem quando a noite toma conta, nas particularidades de suas moradas? Tomam consciência da graça e, fecundos, multiplicam-se, como pediu o Senhor? Porque é tão mais fácil sentir a presença de Deus no irretocável do espírito? Como eu gostaria de desconhecer o bem e o mal, e voltar a reconhecer somente o que é natural — não mais o corrompido que tomou minha visão e do mundo, mas o divertimento de compartilhar uma noção maior de existência, que transpassa o eu e dá voz ao você, para que juntos exultemos a alegria do senhor.
Já me aproximando da pequena cidade no interior do Wyoming onde Jim Stannard foi capturado pelos policiais, me dou conta de que qualquer que fosse meu anseio ao iniciar essa viagem, a recompensa máxima que posso adquirir é a compreensão da insignificância de meu relato. Não há nele nada de absoluto, e a essa altura, entre o absoluto e o incerto, fico com o que mais se pareça com uma inconclusão. Em certo grau, creio que ao virar do avesso a cerne da psique humana em A Sangue Frio, o mais maravilhoso de Truman Capote em seu relato ainda seja a ambivalência do que não é mostrado e nem possui resposta clara. Ao terminar seu livro imaginando uma cena hipotética, em que divaga sobre como a vítima adolescente da chacina seria uma bela mulher crescida, como a sua amiga de mesma idade, parece ele também demonstrar uma terna preferência pelo potencial que os acasos tornam desperdiçados. Seus assassinos não são vilanescos por completo, bem como penso serem os meus, nem há neles bondade inerte, como de forma alguma pretendo imputar aos meus, nem no auge das minhas preocupações espirituais defronte às terrenas. Acho que Capote sentiu (como eu sinto agora ao percorrer os mesmos passos que o casal de anjos caídos), que dentre tanto sangue e tristeza deixado pelos trágicos acontecimentos narrados, o mais duro e devastador é o fato dos caminhos terem se cruzado. Talvez se Wendy tivesse recebido um pouco mais de atenção no decorrer de seu crescimento, ou se Jim não fosse, dentre tantas possíveis qualidades, levado a compreender o mal que sentia como intrínseco a ele, essas vidas, as que eles tiraram e suas próprias, teriam sido poupadas ao fim. Porém, mesmo na literatura, o “e se?” não parece ter força para irromper o concreto do que é real e está bem à minha frente.
Talvez por isso, no final das contas essa viagem tenha se tornado mais sobre quem eu sou do que quem foram Jim Stannard e Wendy Fowles. Não consigo, nem desejo, ausentar meu traço de suas histórias, afinal, são vistos acima de tudo pelas minhas lentes, para só depois exporem as suas ao mundo. Logo, se torna claro que quanto mais fundo suas feições se estabelecem, mais adquirem traços meus do que deles próprios. O que vejo deles em Lincoln, bem como em Bennet e agora no Wyoming, é nada além do reflexo irredutível de mim. O trágico de estar preso a uma história como essa é a impossibilidade de se desprender de si mesmo; gostaria de ver tudo com um olhar de onipresença, e que fossem eles exteriores a tudo quem sou, toda a bagagem que carrego em mim. Nada posso colaborar ao leitor além da mentira como pressuposto perfeito do que é a verdade. Se é isso suficiente deixo a encargo não das palavras de quem lê, mas do embrulhado que eventualmente sintam. As palavras tenho muito delas, me falta agora o que não se pode dizer com elas.
A estrada que liga Lincoln, no Nebraska, à fronteira com o estado do Wyoming, é, sob todos os lados, repleta por um vasto campo onde não se enxerga o fim além do horizonte. Pelos dias que se passaram, essa paisagem tomada pelo campo foi tudo o que Jim e Wendy viram, além dos rostos um do outro. Depois de deixarem um rastro de sangue por todos os lugares onde estiveram, o casal estava agora na solidão de uma terra perdida e que só eles tinham encontrado. Jim se sentia relaxado dirigindo pela vastidão da natureza, e Wendy lia muito, gastando horas a observar aquilo tudo em companhia dele; os dois pareciam agora compartilhar um novo estado de sintonia. Nesse lado desencontrado de terra, era como se tivessem eles a povoar um novo mundo. Poderia haver uma porção de mundo reservado somente a eles, para que amassem e se sentissem amados? Não só havia, como estava escondida bem embaixo de seus narizes, nas profundezas do coração da América. O sexo permeava tudo e se encontrava sob sua mais natural forma. Eles preenchiam o infrutífero daquelas terras delineadamente planas, com a mais pura e acentuada fertilidade — e era isso ao mesmo tempo que tudo, o nada. Quando a estrada se tornava demasiado tortuosa ou cansativa, eles paravam para contemplar o significado que todas as coisas compartilhavam por igual. Viam que o verde que tingia a planta que brotava era o mesmo das outras que nasciam, e que o amarelo do desbotado significava não fim, mas recomeço de outra planta que voltaria a vir; Wendy percebeu isso antes de Jim e o explicou. A palpabilidade que certas coisas exerciam sobre eles, quando contrastado à insensibilidade de outras, tecia um quê de antítese no âmago de formação dessas duas pessoas, e talvez o que invariavelmente os tivessem atraídos um ao outro — já que dentro deles havia não cegueira, mas borrão.
A cumplicidade desses dias unidos nas planícies, bem como o afeto que tinham um pelo outro, funcionou até o ponto onde o desgaste tomou conta. Wendy, depois de dias afastada de todos, pareceu se cansar das revistas de fofoca e dos livros escolares que carregava junto. Lembrou de Dorothy, do livro que leu uma parte na rica biblioteca dos Walker. Como teria terminado a viagem dela? Encontrou o grande Mágico de Oz que descobriu existir na sua chegada àquela terra estranha? Wendy não sabia, mas daria um braço para saber. Ficou imaginando ela própria: “Bem, ela certamente deve ter visitado o mágico e feito seu pedido para voltar para casa. Mas não sem antes matar a outra bruxa que estava atrás dela! Não entendo porque ela desejaria voltar para o sem graça Kansas quando está num lugar como Oz”. A frase final ressoou sobre ela até desatinar em choro. Ela entendia Dorothy querer voltar para casa! Afinal, não há lugar como nosso lar; mas o de Wendy estava interditado por autoridades policiais e o corpo de seus pais jazendo sob um frio túmulo. Era também falso que Wendy desejasse copiosamente retornar para a sem graça Lincoln, e de maneira tão repentina quanto tornou a ter esse pensamento, o abandonou por completo. “Ela pode ter ficado, quando se diverte ninguém tem saudades de casa”.
Jim não sentia tédio, provavelmente porque pela primeira vez em sua vida, era ele quem dizia como fazer as coisas — não dizia a Wendy, mas a ele mesmo, o que já era bastante coisa. Ele preparava coisas para eles comerem sempre que conseguia, até a ausência de alimento se tornar mais comum do que a presença. Isso o preocupava, primeiro, claro, pela fome, mas além disso, sentia estar perdendo Wendy para algo além do apetite. A relação que havia entre os dois tomou contornos singulares, como é natural depois de um período de tempo relativamente longo isolado à outra pessoa. Mesmo nos momentos mais frágeis, o elo que os unia (de sobrevivência naquele instante, mas carnal e amoroso em muitos outros) era denso o suficiente para que se tornassem inevitáveis entre si. Afinal, eram feitos da mesma carne, apresentavam as mesmas fraquezas e compartilhavam algo além das similaridades corpóreas, ao menos assim acreditavam. O corpo, porém, tem seus anseios e obriga que seja saciado; logo, a fome de pão prenuncia uma muito maior e absoluta, a da palavra que não sai da boca humana.
Na solitude daquele paraíso de terras desoladas, foi entregue a eles a chave de uma fechadura que não tinham consciência de existir. Os dias se passaram, como tudo há de passar, e quanto mais se afastavam um do outro, mais perto ficavam de uma forçada saída. A paixão febril passara com a mesma rapidez que havia chego, e restou algo de natureza complexa e de difícil manejo. Seria o amor? Poderia dois adolescentes tão desprovidos de afeto pela vida amarem? Não sabiam o que era, talvez por nunca terem sido destino de tal sensação. Havia fraqueza, como há em tudo que respira, é verdade, e nem se poderia culpá-los por aspecto tão intrínseco e anterior a suas próprias existências; bem como havia desencontro e perda, primeiro de si e depois das coisas que rodeavam eles. Mas há fraqueza e perda no amor? Conheciam eles a mais bela criação divina? O amor cercava tudo que suas mãos juvenis alcançavam, mas nunca poderia adentrar em meio à recusa, em meio à descrença de quem nunca fora apresentado a ele. Mas Deus deles lembrava, como de todos os outros filhos já abençoados, e também dos esquecidos e abandonados. Por fim, talvez não tivessem eles tão sozinhos no ermo do paraíso.
Quando chegaram enfim à fronteira que separava o Nebraska do Wyoming, Jim sabia que estavam sendo procurados por todos os cantos. O assassinato de um notório homem de negócios numa circular Lincoln só poderia significar comoção, e Jim estava alerta para qualquer que fosse o perigo. Logo, assim que adentraram num território mais urbano, trataram de se desfazer cedo pela manhã do Packard que roubaram do sr. Walker. Caminhando na parte lateral da estrada, encontraram um homem dormindo no banco da frente de um Buick. Era Miles Campbell, um ex-sargento de 34 anos combatente na Segunda Guerra Mundial, e agora um caixeiro-viajante percorrendo as extensões do interior americano. Dormia desajeitado dentro do carro, uma expressão cansada, um homem de feição muito jovem, coisa que nem a sordidez da estrada conseguiu lhe tirar. Foi acordado aos solavancos por uma linda menina-moça de vestes sujas, e um rapaz impaciente e irritado. O choque do primeiro contato foi rapidamente exasperado pelo imediato horror deixado pela segunda olhada, onde Miles constatou a presença da espingarda nas mãos de Jim. Ele recebeu o primeiro tiro sem ter chance de suplicar pela própria vida ou efetivar qualquer reação que lhe pudesse evitar a morte; o impacto foi seguido por outro tiro, já o terceiro, no entanto, não saiu. O resquício de consciência que ainda havia no corpulento homem, encouraçado pela dor de outros tiros e falecimentos no seu tempo de guerra, se dissipou invariável quando um golpe acertou sua cabeça pela parte traseira da arma.
Não sabiam naquele instante, mas a morte de Campbell seria o assassinato derradeiro na trilha de sangue deixada pelo casal de jovens que aterrorizou o pacato Nebraska. Embora não soubessem daquilo com certeza, certamente o sentiam de algum modo. Para Jim, a solução era permanecer por eterno nas terras somente deles, até as pessoas esquecerem ou ambos morrerem de fome e sede. Para Wendy, que despertava aos poucos como a mente impetuosa retorna à consciência, a história deles já havia chegado a um fim. Por conta disso, o falecimento de Campbell é talvez o mais trágico se o leitor o considerar como o mais desprovido de razão. A violência ali surgiu não por ímpeto, mas por postergação, afinal, mais uma morte quiçá adiasse o final inevitável ao qual a relação entre eles estava sujeito, até Jim pensar em algo melhor ou Wendy mudar de ideia; a brutalidade, porém, é sempre poda e nunca acresço, mas isso não se sabe aos dezenove ou aos catorze anos. O que havia de concreto era um corpo, o de Miles no banco da frente, e que tinha de ser dado fim.
Largaram ele em um canto próximo à beira da estrada, e por ser plena luz do dia, não tardaram em deflagrar fuga. Há algo muito importante e que merece ser considerado sobre o Buick de Miles e também sobre as capacidades de direção de Jim: o carro tinha freio de mão, e Jim não fazia ideia do que diabos fazer com aquilo. Pode parecer estranho que o ótimo motorista de fuga Jim Stannard, responsável por os levar do Nebraska ao Wyoming correndo de uma massiva força policial, não soubesse o que um instrumento tão simplório na estrutura automotiva representava, mas é essencialmente o que ocorreu. Nenhum dos outros carros até então tinham isso, e ao se deparar com a situação por completo nova, onde o veículo não dava partida e ele não sabia a razão, uma inquietação ainda maior tomou conta do espírito de Jim. Estavam presos na porra do Wyoming sem saber como sair. Wendy observava arrefecida a situação; eles tinham um corpo, não havia meios para sair, e um abismo se agigantava entre os dois. Quando Jim tentava de todos os modos ligar o carro, abrindo a capota e procurando a solução no escuro do motor, Wendy se desligava por inteiro do que um dia (poucos atrás, aliás) foi a coragem para adentrar na sanguinária estrada de rastros que por fim deixaram. Se metamorfoseou nela outro tipo de coragem: a de abandono.
No lapso que o tempo parece dar quando uma decisão dessa magnitude é tomada, se intensificou a visão de mundo dela enquanto mancha, esboço. Não viu passar os minutos entre os chutes de Jim no veículo, até a aparição de um carro na estrada, a confusão entre o homem que o dirigia e Jim, a rápida vinda do sub-xerife da pequena cidade, e o momento em que com todas as palavras Wendy gritou: “É o Jim Stannard, ele quer me matar!”. Passou tão rápido que posteriormente Wendy teria dúvida se aquilo realmente tinha acontecido. Ela correu em direção ao sub-xerife e Jim iniciou sua fuga pelo veículo que antes apareceu para ajudar. Teria Jim olhado para ela com que olhar? Aquela face serrada que simula uma marra à la James Dean, mas que não conseguia esconder o delicado de seus traços? Havia ainda sutileza em quem Jim tinha se tornado? Ela não sabia, durante todo esse tempo tinha visto apenas o vulto do que era real. Pareceram segundos, que se tornaram minutos prolongados à horas, enquanto Wendy aguardava a resposta de que fim tomou seu correlato de estrada e de vida. Não se preocupava com ele, tinha consciência da esperteza que ele possuía para sempre se safar de algo — na realidade, estava inquieta justamente por saber que ele só seria pego se se deixasse pegar. O fim que ele teria era o que menos importava para ela, já tinha acabado tudo o que entre eles havia dado início, e restou apenas isto: o epílogo, uma anomalia à parte que não diz nada a ninguém. Que importava a ela se ele seria morto na cadeira elétrica ou na corda? E se junto a ele fosse ceifado ela, que importância tinha? Depois dos dias fecundos que viveram, onde deram um ao outro um prazer complacente que antes era inimaginável, não haveria nada mais que poderiam viver. Como teriam sido as centenas de anos vividos por Adão e Eva, posteriores à reclusão do paraíso? Teriam passado como segundos e evaporado à margem do alcance de Deus, como a vida que agora estava condenada Wendy?
A perseguição durou trechos intermináveis de chão, e teria durado muito mais, se uma bala não tivesse passado raspando a carne de Jim, ou caso ele simplesmente tivesse decidido nunca mais parar. Há, como em quase tudo que tange a existência, ambiguidade quanto à verdade absoluta dos acontecimentos. Fato é que o carro de Jim parou onde tinha de parar, e os pormenores mundanos, da fraqueza da carne ao temor sentido pela mente, importam pouco ou quase nada. Para Jim, a duração da fuga passou também como segundos. Não se surpreendera pelo abandono de Wendy, sabia que era questão de tempo até o momento que de maneira efetiva ocorresse, mas ficou surpreso com a certeza dela ao fazê-lo, e se questionou o quanto daquilo tudo que viveram não tinha agora ido terra abaixo. No entanto, se esvaiu da imaginação de Jim as aflições passadas assim que observou os carros policiais correndo à sua espreita. “O Wyoming se tornou terra proibida para o caubói sem lei aqui”, murmurou despreocupado. Afinal, ele também sabia que havia tudo chegado ao fim. Podia não saber nada do caminho por onde passa o vento, os segredos velados no corpo de uma mulher e o ventre que dela é formado, não compreendia a natureza das coisas nem do espírito, mas sua vagarosa consciência entendia muito bem encerramentos — sua vida inteira havia sido sequências ininterruptas deles, fins que não davam brecha a começos.
Quando foi pego, ou se deixado pegar, Jim estava tranquilo como poucas vezes sua fácil irritabilidade tinha permitido durante a viagem. Os policiais, orgulhosos de terem capturado o mais perigoso assassino que já passou por aquelas bandas, eram cautelosos ao se aproximarem de sua peça mais valiosa. Levou um tempo até constatarem quem era Jim Stannard por completo, mas logo se deram conta de tratar-se simplesmente de um menino, um jovem garoto, como bem eram seus filhos que agora estavam no sofá de casa ou na carteira do colégio. Aquilo embasbacou o mais velho dos policiais. Ele reparou ser um jovem bonito, de traços esbeltos e que por dentro continha uma vivacidade contagiante. “Bem diferente do Jim que eu imaginava pelos jornais, é verdade”, mais tarde admitiu ele a um jornalista local. De modo geral, se entranhou na mídia do Nebraska ao Wyoming, a ideia de Jim e Wendy como jovens diabos frutos da sujeira dos novos tempos; embora em parte contemple uma descrição certeira, um súbito estranhamento tomou os policiais e autoridades públicas que conheceram de verdade o casal posteriormente.
Jim tinha mesmo um quê de James Dean, e o final de sua aventura maluca bem que parecia a cena final de Juventude Transviada: ele não conseguiu evitar o mal maior, mas tinha agora toda a atenção que desejava. Wendy não era aquela serpente toda, aliás, tinha muito mais pinta de gato arisco que você precisa lutar para conquistar, como quase toda garota aos catorze anos. Aquilo, no entanto, não a poupou de uma vida condenada a rastejar, nem poupou Jim da cadeira elétrica, mais de um ano depois dos fatídicos acontecimentos de 1958. Tudo se desenrolou a partir dali de um modo natural, e o próprio casal alvo da narrativa poucas vezes se viu depois da separação naquela estrada do Wyoming. Uma das vezes, porém, foi logo após a captura de Jim, quando uma silenciosa Wendy acompanhou a chegada do companheiro na base policial em que seriam mantidos. Ali, Jim a prometeu que ausentaria dela qualquer culpa, e que se responsabilizaria por todas as mortes; e foi realmente o que fez, pelo menos por um tempo. Durante o julgamento e as interrogações, as versões mudavam constantemente e criavam lacunas profundas na mente dos investigadores. Quem havia atirado no Sr. Goldwyn? E no casal adolescente? E nos vários outros? A realidade como realmente aconteceu era uma incógnita para todos, inclusive para Jim e Wendy. Os policiais não entendiam a névoa que habitava a lucidez de ambos os jovens, nem entendiam os laços profundos que constituíram naqueles poucos dias de viagem, e como tão rápido aquilo se esvaeceu. A confusão se dava pelo estado oblíquo que a imatura formação de suas propriedades cognitivas possuíam — nessa fase da mocidade, quando ainda não se sabe bem quem é, se assimila melhor a ideia de dois como unidade, e portanto, uma só carne. Logo, para ambos, os assassinatos tinham se tornado desassociados de uma só mão que portava uma só arma; na essência, haviam atirado e ceifado aquelas vidas juntos, por mais que houvesse impossibilidade física e prática para tal.
O julgamento foi um jogo de cartas marcadas onde ninguém saiu declarado vencedor. A concepção geral sobre Jim e Wendy, tanto no Wyoming quanto no Nebraska, estava profundamente difundida como a de duas pessoas sem salvação. Dentre os setores mais religiosos, a questão também não encontrou defensores, principalmente pela família dos assassinos não serem “membros assíduos de nenhuma igreja”. Mesmo com tudo definido desde os primeiros instantes, o caso não deixou de inflamar as bases da estrutura social do coração da América no período de um ano até a decisão absolutória do júri, nem nas muitas décadas posteriores à sua resolução. Jim foi condenado à cadeira elétrica, e no dia 25 de junho de 1959, foi executado na Penitenciária Estadual do Nebraska, em Lincoln, onde desejava nunca ter voltado. Foi enterrado no mesmo cemitério de algumas de suas vítimas fatais, sob a epígrafe “Descanse em Paz”, num túmulo discreto e distante das sepulturas mais recentes, situadas num lugar onde as árvores altas permitiam perpassar alguma fresta de luz do sol. Wendy teve um fim considerado mais humano, e foi condenada não à morte terrena, mas a uma vida de reclusão e marcada pelos acontecimentos que participou quando era nova. Para ambos, no entanto, por mais cerceadora e nefasta soasse a pena por seus crimes, a memória ainda que distante, dos tempos fecundos onde exultaram de alegria perante à natureza divina, confortava e dava respaldo ao imperdoável de seus crimes. Em relação aos habitantes das grandes planícies que se estendem pelas profundezas americanas, o fim dado ao casal significou também a volta de ternas noites de sono — o diabo não mais aguardava à espreita, assim esperavam.
O frio chegou, e creio que para ficar. Depois de percorrer cansativas distâncias, meu corpo, e em especial minha mente, imploram ser essa a hora de parar. A chegada sorrateira do clima gelado foi o balde de água fria quase literal que irrompeu em mim uma insatisfação latente. A claridade que iluminava os passos que eu inescrupuloso seguia, desapareceram como o sol no menor sinal da noite invernal. Olhei tudo o que havia para ver; os campos de cor desgastada, as grandes propriedades que indiscretas sublimam uma velada violência, as pessoas de algum modo afetadas, gente de carne e osso afligidas pela dor que não se enxerga mas em tudo habita. Como pode eu ter visto tudo e mesmo assim não ter entendido nada? Procurei por muito tempo respostas que preenchem o corpo; encontrei várias delas, mas são nulas perante as respostas que coexistem no outro tipo de matéria. Ou seriam perguntas? Sei que houveram dois garotos, que há muitos e muitos anos do tempo que estou, mataram como se fosse qualidade inata de suas existências. Esse preâmbulo, porém, corresponde à descrição simplória dos fatos, e quando se trata de vidas humanas, se dilui a métrica no encontro ao incompreensível, ao mundo sensível e não concreto. É indissociável o que ocorre no alcance da visão humana e o que dela se esconde, e por acreditar piamente nisso, tentei buscar na materialidade esse gancho ao espírito. Fracassei nesses aspectos e em muitos outros, como vários antes de mim fizeram, e tantos depois voltarão a fazer. Falhei não por procurar no mundano o transcendental, mas por fazê-lo sem estar minha própria fé solidificada; pedra que cambaleia é fogo quente e não chão firme, disso estou certo agora.
Volto à Lincoln uma última vez. Assim como eu, Jim e Wendy retornaram à cidade após a captura no Wyoming para serem julgados pelos crimes cometidos. Esse é o passo final de uma longa e tortuosa viagem. O retorno à cidade palco de grande parte dos acontecimentos se faz também por uma curiosidade mórbida, um desejo incessante de achar o que antes passou despercebido pelos meus olhos. Caminho pelas ruas e, diferente da primeira vez, não constato a opressão de fantasmas do passado, mas sim um lugar que tenta, apesar de tudo, continuar vivendo. Se em cada esquina havia vultos do casal assassino, agora há apenas o brando resquício da memória. Teria mudado a cidade ou mudado eu? Penso ser um pouco das duas coisas. No fim das contas, de que vale o esquecimento? Lincoln parece ter aprendido a lidar com a dor, e que tentar esquecer só representa a invalidez de um doloroso sofrimento. Pensam diferente de mim os familiares de Jim e Wendy, castigados a carregar eternamente a marca do nome, o dilacerado que causa a mera existência da palavra. Nenhum Stannard ou Fowles aceitou conversar, muitos deles, inclusive, retiraram a alcunha que consideram nefasta, dificultando sua localização e encontro. “Você é parente daquele Jim… Jim Stannard?”, era o que sempre ouvia uma sobrinha-neta do jovem executado quando precisava utilizar seu nome completo para alguma coisa; ela relatou isso em uma antiga entrevista para um jornal local, e em certo grau, o mesmo poder inescrupuloso da memória atinge também os relacionados às vítimas.
Na semana passada, um baile escolar ocorreu na única instituição de ensino em Bennet, pequena vila próxima à Lincoln. Como é de praxe em todos os anos subsequentes aos falecimentos dos adolescentes Claire e Richard em janeiro de 1958, houve uma pequena homenagem aos “eternos reis e rainhas” do baile de ensino médio em Bennet. Uma coroa de flores doada pela funerária local carregava uma faixa com os dizeres “Sempre em nossos corações”, seguido pelo nome do casal assassinado, em posição de destaque no palco. Dentre os que conviveram com eles, estão os amigos do tempo do colégio responsáveis pela realização anual dessa lembrança, e que insistem para que siga ocorrendo mesmo depois que eles próprios se forem. Imaginam como teria sido a vida de ambos caso vivos, e praguejam o dia que o caminho entre os dois e seus algozes se cruzaram. Na cidade matriz, Lincoln, de proporção muito maior, a intensidade da recordação se diluiu, embora ainda mantendo delineado os traços e tons deixados pelas tragédias. Aproveitei o retorno para ver novamente o velho Sr. Leonnard e a jovem aficionada por histórias de violência, Jenna. Na casa do primeiro, minhas incessantes batidas na porta não foram o suficiente para fazê-lo acordar e abrir, ou talvez a minha imagem pelo olho mágico da porta tivesse sido o suficiente para que o fizesse ignorar minhas tentativas. De todo modo, Jenna se mostrou mais receptiva. No café antes da minha saída, ela perguntou se eu estava com o “documentário” pronto e quando ela poderia vê-lo; a respondi que achava que sim, embora estivesse desanimado com o resultado. “Não se cobre tanto. Ontem mesmo assisti um especial sobre o Stannard na TV, alguma coisa sobre o aniversário de morte dele ou coisa assim. Até procurei seu nome nos créditos iniciais, mas assim que começou percebi que não. Porcaria sangrenta das boas, acho que você deveria fazer algo assim, fiquei assustada pra caralho!”. Sorri com a avidez que ela pronunciara aquelas palavras, a verdade imputada na excitação com o grotesco, e me fascinei com a possibilidade de enxergar a barbárie com tamanha ingenuidade; talvez eu devesse mesmo ter feito algo assim.
Certas coisas nunca mudam, outras se transfiguram por completo e beiram o irreconhecível — mas Deus conhece a essência de todas elas. Num dia como haviam sido todos os outros, onde a dúvida e o receio tudo cercavam, raiou a manhã fria e senti ser essa a hora de partir. Como a vida enlutada ao qual a vila Bennet foi destinada, e a mancha ao qual os Stannard e Fowles foram condenados a viver com, acredito ter sido meu espírito tocado nessa viagem por força que me impossibilitará esquecer. Os detalhes se perderão por completo, como os rastros de minhas pegadas e a ideia de quem um dia foram Jim e Wendy, mas bem-aventurado serão os que no meio de tanto concreto e mudança encontrem resquício do que é natural e inefável, como bem sei operam os meios divinos. Se viajar por essas terras estranhas me causou a desolação que antecede a queda, compreendo ter sido parte de algo muito maior, responsável por alçar a ponte que solidifica minha busca enquanto Ele se deixa encontrar. Sei que Ele está perto, o sinto quando cai a chuva e quando da boca humana saem palavras de luz e perdão, o sinto também quando tudo mais está longe, e quanto mais perdido de seu caminho, mais forte sinto o fogo de sua presença. Não há em mim temor algum pois há Deus em tudo que existiu, existe, e existirá. Na Lincoln que outrora turvou enorme escuridão, e em cada canto onde o Senhor assentou os fundamentos da terra, o céu se abriu e dele surgiu o sol irradiando seu mais lindo brilho.
Ali, criatura contemplou criação e se fez mais perto de seu criador.
Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aquie para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.
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