Longa-metragem do primeiro dia de Mostra Competitiva do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro entrega o esperado de acordo com a “tradição” de documentários sobre o recente fenômeno fascista no país.
Quando Mato Seco em Chamas (Adirley Queirós e Joana Pimenta, 2022) estreou na 55º edição do Festival de Brasília, o filme ceilandense rompeu com uma tradição de documentários bastante comportados sobre uma realidade desesperadora que tomou o Brasil de assalto nos últimos 10 anos: o fenômeno fascista, representado sobretudo pelo bolsonarismo. Enquanto ainda um documentário (mesmo com seus muitos elementos evidentemente ficcionais), sobretudo quando aborda questões diretamente conectadas à realidade política do momento, Mato Seco recusa os recursos fáceis que cineastas brasileiros recorreram em outras produções do gênero: o apelo ao conteúdo, ao confiar que a mera crítica ao facismo confere ao filme a potência necessária - em detrimento do apuro formal - e a abordagem meramente expositiva-observativa, fazendo as denúncias na medida certa para penetrar na circulação de festivais pelo Brasil e quiçá o mundo, mas seguro o suficiente para não ser taxado de extremista, radical, entre outros adjetivos burgueses/pequeno-burgueses. A obra de Adirley Queirós e Joana Pimenta radicaliza na medida em que torna a realidade filmada muito mais do que um retrato formalizado pró-democracia (burguesa), mas insere o seu olhar a partir da vivência de mulheres periféricas, do Sol Nascente (DF), utilizando da montagem para criar uma imagem mental eisensteiniana que conecta a realidade marginalizada do Sol Nascente à barbárie bolsonarista (não à toa, diz a lenda que A Greve foi um filme decisivo para Adirley como cineasta). Caso sejamos capazes de aprender com este rompimento acertado que Mato Seco representa, podemos alavancar a sofisticação das produções documentais nacionais. O problema é que a velha tradição retornou, com uma nova máscara, a partir de No Céu da Pátria Nesse Instante (Sandra Kogut, 2023), filme que abriu a Mostra Competitiva de longas do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Primeiro, preciso dizer que a intenção deste texto não é fomentar nenhum tipo de “autofagia” para com uma cineasta de esquerda. Contudo, não posso negar meu papel enquanto crítico, que acredito também poder ser importante, em alguma medida ainda que pequena, para uma reflexão séria que deve ser feita sobre as produções nacionais recentes. Comecemos pelos méritos do filme: o que vejo de mais interessante em No Céu da Pátria é a maneira como Kogut escolhe a abordagem de documentário majoritariamente observativo, ao passo que impõe seu viés pela forma como alterna entre um olhar próximo, inserido na realidade petista/de esquerda, com um olhar distanciado e quase sempre jocoso diante das personagens e situações bolsonaristas, que representam muito do absurdo, do ridículo e do horror que víamos diariamente sob o governo de Bolsonaro. O caráter observativo dos registros da obra somente é completamente abandonado ao final, em que o viés fica claro por uma sucessão de cenas acompanhadas de músicas como “Tá na Hora do Jair Já Ir Embora”, de Tiago Doidão.
Porém, enquanto o viés é bem trabalhado pela maneira como se alterna o olhar, até diria que de modo natural dada a inclinação da diretora, os problemas começam quando passamos a olhar mais fundo para os aspectos formais do filme. O bom comportamento é a chave formal do documentário de Kogut, e nele residem seus grandes problemas. A cineasta opta por adotar uma sequência narrativa linear, que por si só é problemática na medida em que a previsibilidade vira a regra, enquanto o filme é domado por uma tentativa de torná-lo mais documento histórico que peça cinematográfica. Isso se reflete na cinematografia apagada, por vezes aparentando ter sido feita a partir do celular, com uma imagem digital inconvenientemente polida e decupagem “acadêmica”, regrada. Quase todas as críticas presentes no filme se direcionam ao caráter antidemocrático do bolsonarismo, e pouco se insere nas questões de classe ligadas ao fenômeno fascista (ao contrário do que fazem Adirley Queirós e Joana Pimenta). Neste caso, No Céu da Pátria reverbera a mesma celebração de sempre da centro-esquerda (ou esquerda “moderada”) à abstrata “democracia”, a mesma democracia (liberal) que elegeu Bolsonaro, que elege Milei e que elegerá outros políticos de extrema direita porque em sua gênese alimenta as contradições do capitalismo, sentidas no âmago pela classe trabalhadora, que, sem esperanças diante da tal “esquerda democrática”, que é incapaz de propor um projeto de rompimento radical com a miséria e a dependência de nosso país, recorre à radicalização fascista.
A problemática aqui não é apenas no conteúdo do filme, mas fala diretamente sobre sua forma: No Céu da Pátria Nesse Instante demonstra a centro-esquerda representada pelos partidos políticos da ordem que espera ser ouvida enquanto fala abstratamente sobre “vitória da democracia” para um povo que é diariamente assassinado nas favelas do país, que corre o risco de sofrer uma tragédia humanitária com a privatização de presídios avançada pelo Executivo e pelo Ministério da Fazenda, um povo que mesmo com a vitória de um projeto político dito de esquerda precisa esperar semanas, meses ou mesmo anos para um atendimento no SUS, para conseguir uma vaga para seu filho numa boa escola ou creche, ou que jamais conseguirá entrar na universidade pela elitização do ensino - todos estes problemas propulsionados por uma política burguesa de austeridade fiscal colocada em prática pelo atual governo Lula e com a liderança do Ministro da Fazenda Fernando Haddad. A mesma esquerda institucional que recusa o olhar para as raízes dos problemas das camadas mais vulneráveis da classe trabalhadora do país produz um cinema que espera ser assistido enquanto se comporta e se coloniza esteticamente diante da barbárie. Uma esquerda acadêmica, que, distante das bases, esqueceu os “filmes feios e tristes”, os “filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto”, que nosso cinema produziu, sabendo que “a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete” e que “os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores.” Estes são trechos de Eztetyka da Fome, texto de Glauber Rocha, ao qual é fundamental recorrer num momento em que o cinema brasileiro pede por espaço em suas imagens bem-comportadas, pois é preciso também lembrar que “o Cinema Novo (...) nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons [...]”.
Para qualquer cineasta que esteja verdadeiramente comprometido com uma missão política e cultural perante o cinema brasileiro, como muitos deram a entender estar mas responderam com produções domadas pela institucionalidade burguesa e pelas degenerações pequeno-burguesas (como é o infeliz caso de No Céu da Pátria), só resta uma coisa: aprender com os loucos e radicais que ousaram desafiar os planejamentos de gabinete. Este é meu apelo a todos, todas e todes camaradas realizadores de cinema no nosso país, para romper de vez com a dependência que tantos e tantas lutaram para superarmos, de Helena Solberg e Glauber Rocha à Helena Ignez e Rogério Sganzerla.
Essa crítica faz parte da cobertura do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Nota da crítica:
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