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Como Ver Filmes?

Algumas reflexões sobre como melhor aproveitar experiências cinematográficas



Quando decidi que iria me comprometer com o cinema, que não mais assistiria a filmes à toa, mas sim em busca de contemplá-lo como um objeto artístico, imediatamente me deparei com a seguinte questão: como, exatamente, assistir a um filme? Pode parecer uma questão óbvia, mas acredito que todo cinéfilo, no começo, fez questionamentos parecidos. Afinal, numa experiência cinematográfica, muitas coisas estão acontecendo: imagens, diálogos, narrativas, trilha sonora, tudo num continuum temporal ininterrupto; há quem diga que o cinema seja uma culminação de todas as artes que o precederam, junto com uma apropriação totalmente inédita do tempo. Então, no que, exatamente, devemos reparar ao assistir a um filme? Ou, de maneira sucinta: qual atitude devemos adotar diante de um filme?


Antes de continuar, vale ressaltar que meu objetivo com este ensaio não é chegar em uma resposta absoluta. Ao contrário, vejo-o como uma série de reflexões do que tem funcionado comigo ultimamente; em outras palavras, do que tem me ajudado a melhor aproveitar os filmes a que tenho assistido. Entretanto, nada do que eu escrevo aqui é para ser encarado como definitivo e inviolável, nem para mim mesmo. Por outro lado, o que busco incitar é uma reflexão sobre este tema, que, embora pareça auto-evidente, é na verdade uma problemática muito comum, além de ser fundamental àquele que quer se dedicar ao cinema.


Pois bem, à minha vida cinéfila. Uma atividade que tem sido bastante útil é assistir a filmes em contexto, qualquer que seja: histórico, temático, em relação à obra de um diretor e/ou em busca de analisar algum procedimento estilístico mais específico, etc. Pode ser, também, no contexto de uma determinada discussão, como a de um cineclube ou de um livro teórico. Acima de tudo, essa contextualização prévia me dá um senso de propósito para a experiência cinematográfica. Isso, então, faz com que o filme se diferencie qualitativamente de, por exemplo, simplesmente assistir a um vídeo à toa no YouTube. Ou seja, ao dar início a uma sessão de cinema, estou prestes a ter uma experiência única e memorável por motivos específicos.


Ademais, a contextualização tem sido essencial para que eu saiba derivar significados de uma experiência. Que eu saiba, isto é, associar as escolhas estilísticas realizadas por um filme a um projeto artístico particular, por exemplo, ou a uma certa geração da produção cinematográfica, ou a uma concepção não-hegemônica do fazer audiovisual, ou, ainda melhor processar a maneira como um filme me impacta em relação a o que ele propõe enquanto objeto artístico. No início da cinefilia, era recorrente que eu me sentisse intimidado por certos filmes, inseguro por não saber se iria conseguir “entendê-los” ou “realmente apreciá-los”. Pois bem, assistir a filmes em contexto tem me ajudado bastante a sanar essa ansiedade.


No mais, esse momento de “contextualizar” o filme antes de assisti-lo – e quero dizer antes mesmo, ou seja, logo antes de dar o play – tem se tornado uma espécie de “ritual pré-filme” para mim. Enquanto leio um pouco sobre o que circunda o filme e faço algumas anotações que julgo importantes – o ChatGPT tem sido uma ferramenta útil para essa pesquisa, diga-se de passagem; o melhor é que podemos fazer perguntas ultra-específicas e, mesmo assim, obter respostas bem completas, às vezes até com citações –, tenho me percebido entrar “no clima”, ir paulatinamente entrando num estado de foco mais aguçado. Se a experiência do filme é, digamos, um “exercício”, essa contextualização pré-filme seria um “aquecimento”.


Ao assistir ao filme em si, busco ter uma atitude mais compenetrada; afinal, ninguém que escolhe assumir um compromisso mais firme com o cinema toma-o como mera distração, mero entretenimento. Meu objetivo enquanto espectador é, num sentido bem elementar, o seguinte: quero me deixar levar pela experiência e me envolver com o que quer que ela apresente – uma narrativa, uma experiência de abstração, enfim – e, ao mesmo tempo, quero compreender a forma como o filme consegue executar tal experiência (o que, para a crítica de cinema, é a preocupação essencial).


Por ora, minha atitude como espectador tem se baseado nas propostas de dois autores: Susan Sontag, com o seu ensaio Contra a Interpretação, e Marcel Martin, no livro A Linguagem Cinematográfica. De Sontag, tiro a “erótica da arte”, ou seja, o deixar-se ser impactado pelo filme e aceitar esse confronto imediato, subjetivo e estético como o seu principal fio condutor de sentido. De Martin, ademais, assimilo a tomada de consciência de que se está diante de um filme, isto é, de se ter “um certo recuo” e “não acreditar na realidade material e objetiva do que aparece na tela”, entendendo-se que se está “diante de uma imagem, um reflexo, uma representação”.


No entanto, o que significa “se conscientizar de que se está diante de um filme”? Uma possível resposta vem do próprio estudo realizado por Martin em Linguagem Cinematográfica, mas, também, de reflexões minhas durante um curso de faculdade sobre edição: perceber que se está diante de um filme é, no sentido mais elementar o possível, perceber a montagem. Como assim? Bem, é a montagem que dá ao filme o seu "acabamento final”, de modo que, o que quer que o filme seja, o é por conta da montagem. Por isso, aliás, que Martin classifica o cinema como “a arte da montagem”.


Não é que a montagem seja o único objeto de interesse do filme, mas sim que ela seja a porta de entrada para um “envolvimento consciente”, por assim dizer, com a experiência do filme. Dessa forma, ao que este progride e efetua os seus impactos, o espectador consegue perceber não só a origem de tais impactos, como o sentido que eles produzem em relação à obra como um todo. É ao atentar-se à montagem que o espectador notará, digamos, a presença ou ausência de um corte, o que, com efeito, o faz reparar na composição de um plano, no seu fluxo interno, ou num movimento de câmera, na extensão de um espaço, na gravidade de um close-up, na dilatação ou supressão do tempo, etc. E, aqui, entra Sontag, ao que nos abrimos para a interação estética sem deixar de levar em conta que estamos diante de um filme, isto é, de um projeto artístico com seus próprios objetivos.


Ademais, tem me ajudado bastante fazer anotações durante a sessão. Essa foi uma prática que começou durante a faculdade e eu percebi que poderia trazer para a minha cinefilia pessoal. Não estou falando de ficar tentando “interpretar” cada mísera imagem – primeiro, quem leu Sontag se livra dessa tentação rapidinho, e, segundo, não é lá muito interessante ficar se detendo a cada instante de um filme porque a característica fundamental do cinema é o movimento, e o movimento é dinâmico, fluido, evanescente –, mas sim de tomar nota do que me chama a atenção, do que me afeta de alguma forma ou de pensamentos que me ocorrem que, de um modo ou de outro, tenham a ver com o filme.


Vejo essas anotações como, sobretudo, uma espécie de “expurgação” das minhas impressões mais imediatas, o que, além do mais, tem me aliviado da ansiedade de acumulá-las na minha mente. Às vezes, também, faço algumas anotações logo após o filme, dependendo do quão absorto ainda estou na experiência – anotações estas que, diga-se, também podem ser muito reveladoras; experimente sentir os seus arredores depois de ver, por exemplo, Adeus à Linguagem, de Godard –, mas ainda sem buscar conclusões mais definitivas; estas, por outro lado, vêm depois. Tenho usado o celular mesmo para fazer anotações; na sala de cinema, sento o mais longe que consigo de outros espectadores e deixo o brilho da tela no mínimo. Até agora, isso não afetou a minha concentração, tampouco a minha imersão; ao contrário, sinto que contribuiu para ambas.


Depois da sessão, costumo tomar um tempo de um dia, pelo menos, antes de voltar ao filme. Às vezes, dependendo da experiência, esse “tempo de digestão” é ainda mais longo. A partir daqui, a coisa começa a ficar meio “escrita de redação”, mas, antes de escrever o ensaio crítico propriamente, gosto de divagar mais livremente pelo filme, ainda que de maneira mais “focalizada”. Esse é um momento meio brainstorm, em que eu volto às minhas anotações, busco re-imaginar a experiência do filme, penso em seus diversos elementos – dos que me chamaram a atenção na hora aos que percebo só depois, ao pensar de maneira mais detida – e me permito essa reflexão livre.


Sinceramente, este talvez seja o meu momento preferido de toda a apreciação, porque é quando o filme “bate” de verdade. Muita coisa, é claro, eu percebo enquanto assisto, diversos elementos – por exemplo, narrativos – são ressignificados ou durante a própria sessão, ou logo após o seu fim, mas é realmente nessa reflexão livre que o filme vai se esclarecendo, que as suas relações de sentido vão ficando mais evidentes. É, também, um momento mais meditativo para mim: a reflexão me propicia, sobretudo, o prazer da própria atividade intelectual, o êxtase inigualável da lucidez.


Para fazer uma analogia, assistir a um filme, deparar-se com o objeto, é “plantar as sementes”. A reflexão livre, em especial essa primeira, é a “rega”. E a compreensão mais ampla sobre o filme – compreensão esta ao mesmo tempo criteriosa, que busca entender o projeto artístico que guia a realização do filme e se este consegue atingir as próprias pretensões (para começo de conversa), e subjetiva, conectada de maneira íntima a um envolvimento inevitavelmente pessoal –, essa compreensão é quando o filme começa a florescer.


Depois da reflexão, normalmente vem a crítica em si, onde eu tento formular uma hipótese sobre o filme em questão e “destrincho-a” num argumento suficientemente coeso. Sobre os ensaios, quero pontuar que não os entendo como um encerramento da minha relação com o filme, nem mesmo um comprometimento férreo com aquilo que escrevi para todo o sempre. Meus textos, por outro lado, são ensaísticos, em que busco apresentar não um olhar “totalitário”, mas sim uma tese razoavelmente articulada, ainda que inevitavelmente limitada, oriunda do testemunho de um cinéfilo (esperançosamente) compenetrado. Voltando à analogia: das primeiras reflexões que florescem, já consigo colher algumas flores, por num vaso e dispor na varanda (ou, na coluna da Singular). Mas filme, como toda arte, é primavera que não pára de colorir a alma.


 

Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aquie para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.


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