Adirley Queirós articula seu discurso através dos caminhos maleáveis da narrativa cinematográfica, uma forma de deformação deliberada da realidade (leia-se: mentira), em busca de algo maior: a verdade poética.
Eu arriscaria dizer que Adirley Queirós, cineasta formado pela Universidade de Brasília e um dos mais importantes nomes do cinema da capital (e do Brasil contemporâneo), é um discípulo do maior documentarista de nossa história, Eduardo Coutinho. Ambos carregam um interesse apaixonante pela mentira que é o cinema, e pela ironia que é contar uma fantasia através do meio que mais angaria “autoridade” como “real” - o documentário. Além disso, os dois possuem suas ideologias bem marcadas em suas obras, de modo que, embora lidando com uma mentira (a narrativa do cinema), buscam, através dela, alcançar sua verdade ideológica a partir da construção de um discurso pautado na representação específica que cada um desses cineastas faz da realidade. Coutinho marca a luta camponesa para sempre na memória e história de nosso país transformando-a em matéria poética em sua obra-prima “Cabra Marcado Para Morrer”. Adirley, mais discursivo e menos prático que o diretor paulista, utiliza de um amálgama entre ficção e “realidade” para apresentar um discurso ideologicamente coeso em suas obras.
As ideologias tanto de Coutinho como de Adirley só existem em tela a partir de seu interesse pela luta popular. Assim, ambos tomam a decisão de filmar pessoas comuns e dar voz à elas. Eduardo Coutinho é um exímio manipulador da realidade e usa a narrativa documental como ninguém para, de pura matéria da realidade, construir poesia (que, reitero, só se cria através da “mentira” - ou, melhor, de um recorte específico do mundo). A exceção é um filme como Jogo de Cena, em que Coutinho deliberadamente mistura relato e ficção tal qual Adirley faz. O diretor brasiliense, ao misturar encenações, personagens, relatos e acontecimentos reais, torna translúcido o tecido que separa fantasia de documento. Dessa forma, não se fazem necessários comentários quanto à “falta de imparcialidade” de seus documentários (a ideia de que um documentário deve ser “imparcial” é uma das maiores bobagens que se acredita sobre cinema); como esperar imparcialidade de uma obra que tem como objetivo confundir seu espectador? E essa confusão é uma das grandes potências do cinema de Adirley, que busca não simplesmente ignorar a realidade, mas integrá-la a uma encenação que procura tanto um valor poético quanto um discurso social em relação ao mundo filmado.
Tecnicamente, Adirley alcança esse estado de confusão de forma admirável. Tanto ao conseguir manter uma unidade na forma com que filma tanto os acontecimentos reais como os encenados, integrando o acaso em todos eles - de modo a potencializar a sensação de imediatismo do acontecimento, o que intensifica o senso de realidade do fato filmado -, como na maneira com que dirige seus atores e em como estes alcançam uma naturalidade surreal. Num filme como “A Cidade É Uma Só?”, não há a dicção perfeita de um ator global ou o virtuosismo de um profissional, mas a honestidade brutal de alguém que vive a realidade filmada, tal como no melhor exemplo que se possa pensar do neorrealismo italiano. Portanto, se, em uma cena filmada durante um baile, o protagonista está enquadrado mas, de repente, figurantes surgem na frente da câmera, desfocados, mas tomando toda a visão que tínhamos da personagem mais importante, Adirley pouco se importa em reenquadrar o ator protagonista, pois o acaso que o diretor busca alcançar em seu filme, sempre emulando o senso documental mesmo nas sequências encenadas, é uma recusa a técnicas e preceitos de filmagem clássicos.
O amálgama e por fim a destruição das barreiras que separam realidade e ficção em “A Cidade É Uma Só?” demonstram como criar um belo discurso a partir da capacidade do cinema de soar inevitavelmente “real”, dada a natureza de suas imagens (advindas diretamente do mundo). É por isso que o cinema vive um paradoxo: embora tão falso quanto qualquer arte por se tratar de um retrato específico e sempre tendencioso do mundo, nos soa como parte desse mesmo mundo (quase tão real quanto ele) por utilizar suas imagens. Logo, o que Adirley faz para aproveitar-se dessa característica do cinema é evitar a exposição e transformar situações cotidianas em matéria para seu discurso. Os dois melhores exemplos que consigo pensar são: aqueles em que Dildu, o candidato, e seu sogro, Zé Roberto, seu cunhado, se perdem nas ruas do Plano Piloto e, ao enxergar o Congresso no horizonte, fazem piada com seu formato e brincam com a falta de reconhecimento que os dois têm em relação a um dos monumentos mais representativos dos ditames do poder no país. Essa falta de reconhecimento que surge de maneira cômica canaliza muito bem o discurso que Adirley arquiteta em seu filme quanto à alienação dos trabalhadores que construíram e seguem construindo Brasília (mas que vivem à margem) em relação ao centro do poder. O outro ótimo exemplo de uso da realidade para criação de discurso ideológico é a maneira como o diretor retrata o espaço: há longas, longas estradas entre o Plano Piloto e Ceilândia (a periferia), e Adirley faz questão de criar cenas que marcam o tedioso e extenso caminho entre o centro da Capital Federal e o local onde mora a classe trabalhadora.
Concluindo todo esse discurso encenado, a presença de Nancy Araújo, a única das personagens citadas que não interpreta, mas sim relata sua história real, agrega ainda mais senso de verdade à narrativa do filme. E, apesar de todas as considerações de natureza intelectual que fiz quanto à esta obra do diretor Adirley Queirós, ela ainda se apresenta como um retrato cotidiano muito interessante de trabalhadores brasilienses (sejam eles pessoas reais ou personagens), que é um grande filme em três pontos: tanto em como utiliza criativamente a realidade e a linguagem cinematográfica; como na forma com que amarra um discurso que vai muito além da exposição ou da necessidade de “ser importante” (é fácil fazer um filme “importante”, difícil é fazer um bom filme); e também como arco dramático de um trabalhador que busca levar a periferia para o centro do poder do país, como parte da construção de um sonho: a luta popular representada, participando da construção de um espaço urbano unido, ao contrário do urbanismo absolutamente desigual e que mais funciona como um sistema de castas delimitadas pelo espaço presente no Distrito Federal.
Nota do crítico:
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.
Sobre o autor - Davi Pieri
Crítico de cinema, diretor de teatro, ator e estudante de Audiovisual na Universidade de Brasília. Transitando entre o pensamento e a prática artística nesse sonho urgente que é a vida.
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