Um ensaio sobre uma das obras mais importantes da minha vida e a forma como nos relacionamos com os filmes que nos tocam
Eu não sabia que “toda crítica é uma autobiografia” quando assisti A Ameaça Fantasma pela primeira vez, há dez anos. Entendamos como ‘crítica’, nesse caso em particular, as ideias de um indivíduo sobre determinada obra artística. Os filmes, cabe aqui o importante adendo, não existem apesar do espectador, são obras que só se realizam plenamente quando vistas e digeridas pelo outro, são corpos vivos e, assim como nós, só tomam consciência de sua existência em outrem. E isso, claro, ocorre dentro do espectador. Um filme é só um filme antes de você vê-lo, mas pode se tornar uma infinidade de coisas após assistí-lo. Talvez essa compreensão de assimilação do espectador com a obra não seja a primeira coisa que alguém relacione quando pensa na franquia multibilionária Star Wars; afinal, é no fundo um imenso mercado onde o que vale mesmo é o dinheiro, mas que não a priva do exercício de conexão aqui proposto — em parte, a intensifica.
Introduzir a importância do que ocorre exterior à obra, dentro de cada indivíduo que a consome, é sempre uma tarefa complicada. Sabemos disso quase que de maneira inconsciente: as sensações e os laços que se formam em volta da experiência sempre tiveram a voz mais forte em nossos corações. E nisso envolve-se uma complexa quantidade de partes, da qual certamente se sobressalta a linguagem cinematográfica. É ali que se situa a confluência do que tanto nos toca assistindo aos filmes. Na prática, é na linguagem onde os sentimentos que trazemos anteriores ao filme são aguçados e se juntam à imensidade de outras reações afloradas e criadas durante a exibição. Essa característica central dos elementos da linguagem são explorados a torto e a direito nos livros de teoria audiovisual; a reação humana que elas causam, porém, são pessoais e muito próprias de cada ser que tem contato com a obra, sendo, portanto, impossível de catalogar por uma régua comum a todos. Penso ser aí onde reside a graça da coisa toda.
Obviamente essa relação “pensada” da experiência cinematográfica passava longe da minha cabeça de oito ou nove anos de idade. Voltemos a essa minha primeira sessão do longa em questão. Peço que o leitor entenda esse apreço pelo passado, já que, se tratando de uma obra majoritariamente focada na ressignificação de um mundo já consolidado, o meu primeiro contato com o filme representa parte fundamental da relação espectador-filme. Nunca tinha assistido a nenhum dos filmes da franquia, e numa prateleira de locadora o título Episódio I na capa do DVD enganou muito bem o pequeno eu (falar de locadora é quase arqueologia, eu sei). Esse era um procedimento comum para os meus finais de semana regado a filmes e horas vidrado em frente à televisão. Mas como todo filme não passa à parte do universo do espectador, retrocedemos um pouco mais. Eu era uma criança muito assustada com quase tudo, o que naturalmente se intensificava na escuridão noturna, e assistir era uma boa forma de manter a cabeça em outro lugar e a sala iluminada até pegar no sono. Em especial naquele fim de semana, por algum motivo, o medo era maior. Quando o filme começou, e nas duas horas e quinze minutos posteriores, tudo aquilo desapareceu da minha imaginação.
Colocar em palavras o que significou essa experiência é um exercício curioso e dificílimo. Como explicar a intensidade emocional de algo tão indecifrável? Venho me fazendo essa pergunta há alguns anos sempre que penso em escrever sobre um filme tão especial e importante para mim. É o prelúdio de uma saga a qual nunca tinha enfim adentrado, e mesmo que eu tenha reassistido múltiplas vezes durante todos esses anos, tendo o impacto do que vem depois oprimindo como uma sombra que engrandece todo o filme, essa primeira experiência segue inexorável. É, afinal, uma obra que habita no campo mercadológico com a mesma presença que habita no sentimental. Talvez esteja aí a grande força de A Ameaça Fantasma, uma habilidade única de pertencer ao passado e ao futuro numa mesma instância, sempre indissociáveis.
Trazer às claras a história de origem do mais emblemático vilão da cultura pop ocidental era um desejo antigo de Lucas. As discussões sobre a possibilidade de uma nova trilogia rondava a franquia desde O Retorno de Jedi, em 83; faltava o meio para empreender essa revolução artística e tecnológica que tornaria Star Wars ainda maior, e o uso do digital propiciou isso. Os planos abertos com a imensidão dos planetas e batalhas dão brilho nos olhos, e a textura de um computadorizado que não preza por uma cegueira de realismo confere ao longa uma espirituosidade que não se desvirtuou com o passar dos 25 anos. Embora todos esses elementos tecnológicos sejam parte fundamental da criação e encenação do Episódio I, acredito que sua cerne seja mesmo as relações humanas. Afinal, o retorno a esse passado obscuro da saga sempre foi sobre entender como alguém se torna Darth Vader. E que choque encontrar o pequeno Jake Lloyd! Apresenta-se aí a barreira que sempre causou discórdia entre os fãs mais ferrenhos (e velhos). É declaradamente um filme infantil, de cabo a rabo, e isso que dá beleza e melancolia ao que vêm depois.
Tudo na condução de Lucas parte do princípio da infância. Não que se resguarde somente a um público infantil, mas é importante que se situe o palpável dessa encenação que preza pelo lúdico. Possivelmente o filme da franquia que melhor expõe essa relação intrínseca da fantasia com a política; tudo no universo de Star Wars parte do embate, conexão e simbiose desses elementos. Eu já gostava quando era criança mas o passar dos anos engrandeceu o Jar Jar Binks pra mim, baita personagem engraçado e que instrumentaliza essa predileção do diretor pela situação de inocência que o Anakin e o espectador se situam frente a narrativa. Mesmo nesse sentido, o filme nunca deixa esquecer todos os pretextos sociais e burocráticos que se impõem sobre seus personagens; isso vem a ser desenvolvido com mais enfoque nos Episódios II e III, mas já demonstra o interesse de Lucas na abordagem desse universo fantasioso sob uma lente de crítica ao autoritarismo e despotismo. Inclusive nas escolhas de enquadramento, que alternam desde a doçura da relação mãe e filho (quando a câmera se volta mais diretamente aos olhos da mãe de Anakin, ou ela olhando ao longe o filho partir, sempre quebra meu coração), ou o jeito terno com que ele prenuncia a relação do Anakin com a Padmé, até a câmera sutilmente indo de encontro ao maléfico Senador Palpatine em momentos de clara contradição do próprio — é, por fim, um filme muito eficaz em evidenciar a “ameaça fantasma” que permeia o filme principalmente em suas escolhas formais.
O fenômeno cultural (e portanto mercadológico) Star Wars não fica alheio a essa experiência. É, na verdade, parte fundamental dela. Posso ter nunca assistido aos filmes antes do memorável dia na locadora, mas com certeza já havia presenciado seu impacto em momento anterior. Os brinquedos e toda parafernália de merchandising para apaixonar crianças efervescem a coisa toda. De certo modo, a space opera mais famosa do cinema reflete como consumimos cultura enquanto massa, para o bem e para o mal. Assistir o relançamento do Episódio I numa sessão lotada de apaixonados pelo que esses filmes representam, pessoas que se relacionam de maneira positiva ou negativa com o longa é, certamente, experimentar algo diferente da madrugada sozinho em que, há dez anos, vi o filme pela primeira vez. No caso mais geral da série, essa relação aficionada causou a aberração de ideias e esmorecimento perante a inabilidade da conciliação produto e obra artística, como ocorre no Episódio IX e boa parte da gestão Disney. Nesse sentido, ninguém compreendeu a comunicação entre os dois lados e o que melhor se pode extrair disso do que Lucas.
Entender a conexão que estabelecemos com certos filmes extrapola qualquer simplificação. O longa talvez não me afetasse com tamanha intensidade se certos aspectos da minha realidade, mesmo infantil, dialogassem de alguma maneira com a obra. Por outro lado, a fascinação parte integralmente de como o filme se apresenta diante do espectador. É uma estrada de duas vias, um diálogo constante do que recebemos e concebemos em nós diante do que devolvemos de volta ao filme. De antemão, pode parecer pouco ou quase nada. Mas, no fim, é tudo. Devolvemos às obras a vida na mesma intensidade que adquirimos delas; damos à elas o fim primeiro e último do exercício artístico: um lugar para resplandecer. Filmes ficam ou vão embora, às vezes vão para depois voltar, regozijados. Muda o filme ou muda eu? Como Godard, penso ser sempre o segundo caso. Ainda bem que no caso de A Ameaça Fantasma, veio para ficar — e assim como ao jovem padawan, me lembrar de que o medo é o caminho para o que de pior pode haver. Uma lembrança de quando as coisas não eram tão ruins, nem para Anakin, nem para mim.
João Lucas Casanova escreve como convidado para a Cine-Stylo.
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