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Foto do escritorAdriana Teixeira Machado

Wanda Pimentel, Para Além do Pop

Uma breve reflexão sobre a obra de Wanda Pimentel, as práticas de registro do próprio corpo, interações com o movimento feminista e a apropriação e subversão da estética Pop



Wanda Pimentel foi uma artista carioca que começou sua produção nos anos 60, teve seu trabalho marcado pelos acontecimentos das décadas de 60 e 70, seja pelo cenário feminista que se estabelecia de alguma forma no Brasil, pela estética moderna, associada tanto a Pop Art quanto ao Concretismo, ou por eventos dos quais participou, como o boicote à Bienal e o fatídico Salão da Bussóla¹. Foi aluna de Ivan Serpa no ateliê do MAM, o que a colocou em um ambiente de ampla discussão acerca da arte e do momento político e social. A associação com a Pop Art permeia grande parte dos materiais acerca da sua produção, apesar dessa corrente apresentar certos problemas de gênero, que envolve como o pop foi processado pela História da Arte, de maneira a se associar quase exclusivamente a produções de homens.


A Pop Art como referência nos trabalhos de Pimentel parece quase incontestável, mas a artista está longe de se resumir a uma artista pop. A utilização dessa corrente estética por Wanda é de vital importância para a compreensão de seu trabalho, a forma de representação compactua com os elementos discursivos acerca dos objetos e do corpo da artista. Os objetos modernos, a figura da mulher sem dimensão, tudo representado no mesmo plano da tela. A escolha estética pelo pop aparece como estratégia discursiva, mas as obras estão longe de comungar com espírito debochado e superficial da Pop Art. Ao invés disso, em sua série mais famosa, Envolvimentos, nos deparamos com a solidão doméstica da mulher em torno aos vários gadgets, que nos transportam às questões do consumismo e da modernização.


Wanda Pimentel, série Envolvimentos, 1968

Os processos que levaram a essa série partiram do olhar da artista sobre o próprio corpo, os retratos foram feitos dentro de casa e os objetos retratados são reproduções dos pertences de Wanda. A própria casa aparece como um convite à particularidade dessa mulher na intimidade da própria solidão. Os objetos passam a integrar a identidade dessa personagem, que nunca aparece com seu rosto, apenas com seus pés e pernas. Em uma lógica do consumo, ter é ser.


Pimentel, do seu lugar de fala de mulher branca, traz à tona a experiência do habitar em diferentes níveis, do habitar da casa ao habitar do próprio corpo. A casa aparece também como uma espécie de exílio, um mundo próprio que obedece ao olhar da autora. Mais adiante em sua produção aparece a imagem do corcovado através das janelas de Wanda, como uma possibilidade de vislumbrar outros mundos para além da realidade doméstica.


Wanda Pimentel, Corcovado, série Montanhas do Rio de Janeiro, 1984.

Entendendo os diversos processos de Pimentel, nos deparamos com a relação intimidade/interioridade. Interioridade essa que toma sentido literal e figurado, à medida que, ao revelar o interior de sua casa a partir do seu olhar particular, a artista nos revela também uma interioridade que é própria de suas emoções. Talvez não a toa seu corpo apareça fragmentado, Wanda nos traz a identidade a partir do próprio olhar, ao invés de retratar-se posta ao olhar de outros. Quando passa a retratar janelas, essa interioridade aparece em conflito com o que é exterior. Seu trabalho ganha planos, passa-se a compreender distâncias. A janela permite vislumbrar uma paisagem montanhosa, para além de ferramentas, móveis ou arquiteturas, algo se ergue lá fora. Existe uma certa inquietude em poder enxergar além.


Começamos pelo espaço mais íntimo e que é detentor de uma quantidade de símbolos e significados muito grande – a casa. O espaço da casa é um universo individual, íntimo e familiar, que abarca toda a complexidade da relação entre público e privado. A maneira como os espaços e os cômodos são distribuídos, a forma como os objetos estão expostos (ou não) e a seleção de quem entra na casa e em cada cômodo faz com que o espaço doméstico seja carregado de complexidade e ao mesmo tempo seja uma extensão da vida, da cultura e da posição do indivíduo na sociedade. (NERY, 2017, p. 146)


O trecho de Nery suscita a relação entre a casa e seus objetos na invenção de um universo individual, que transpassa toda a produção de Pimentel. Mesmo que a experiência da casa seja comum entre homens e mulheres, ela assume algumas particularidades entre os gêneros. Por imposição social, as mulheres são designadas como responsáveis pelo espaço doméstico, enquanto os homens cumprem seus deveres em ambientes exteriores à própria casa. A nós mulheres é negado o mundo. Não à toa, as ruas são vistas como espaços hostis e ameaçadores às mulheres. A estratégia do envolvimento parte dessa compreensão de que apenas a interioridade nos é permitida. Em um processo poético, Wanda Pimentel exercita a interioridade para burlar a ideia de que o mundo nos é negado.


Não fogem ao seu trabalho certas contradições. Ela produz através de uma ideia de mulher que habita as décadas de 60 e 70, que convive com ideias feministas, mas também com as antigas normas sociais. Antes de poder escolher por sua ideologia, ela é atingida pela modernização, que traz nova roupagem às pessoas e aos espaços, uma virada estética para uma sociedade que ainda conserva suas ideias antiquadas.


Esse mesmo número da revista O Cruzeiro trazia como capa o presidente Juscelino Kubitschek homenageando a inauguração de Brasília. Nas reportagens sobre o evento, acumulavam-se apelos à modernidade, ao trabalho e ao esforço sobre-humano para a construção da capital, um verdadeiro combate ao pessimismo. Esse mesmo tom de modernidade era também filtrado através de anúncios de produtos destinados à dona-de-casa e ao mundo feminino. Páginas e páginas de propagandas de produtos de beleza, de limpeza, de eletrodomésticos e de higiene, convidavam homens e mulheres a fazerem parte da modernidade que acenava para os anos 60. (CUNHA, 2001, p. 215)


Dessa forma nos deparamos na obra da artista com estratégias estéticas para lidar com questões complicadas. Entre essas estratégias, a associação à Pop Art, que empresta cores às criações de Pimentel. A própria autora dessas imagens revela que a cor era uma estratégia de aliviar o drama das cenas que escolhia retratar. Entre as questões complicadas que enfrenta está a própria relação com o pop, como já citado.

Um dos grandes êxitos de Wanda Pimentel está em habitar questões complicadas sem o peso de tê-las resolvidas ou dar-lhes uma resposta clara. Em vez disso, inventa a si mesma, burla a própria realidade, chora através de seu guarda-chuva e dança em cima da bancada da cozinha. Empresta cores aos próprios dramas. Passa batom, acende um cigarro. Cai em armadilhas sem deixar prender-se. Burla. Sabe o que faz. Não se preocupa em ser o que é.


 

¹A edição da Bienal de São Paulo de 1969 foi marcado por boicote por parte de uma grande quantidade de artistas brasileiros, os quais se posicionavam contra a Ditadura Militar brasileira e as frequentes censuras e perseguições à classe artística, que se intensificaram a partir do Ato Institucional 5 (conhecido pela sigla AI-5, que intitucionalizou a prática de tortura), estabelecido no ano do boicote. O Salão da Bússola, por sua vez, ocorreu no mesmo ano no espaço do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e representou um importante momento da arte contemporânea brasileira, contando com nomes emblemáticos que representam um surgimento de um pensamento artístico contemporâneo. A essa geração de artistas representados no Salão da Bússola, o crítico de arte Frederico de Morais empregou a alcunha de “Geração AI-5”, por terem emergido como vanguarda em um período de cerceamento e ameaça da liberdade artística por parte de uma direita conservadora.


 

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR


CHAGAS, Tamara Silva. Salão da Bússola: criação, conceitualismo e crítica social.Salão da Bússola: creation, conceptualism and social criticism. pp. 143-158. Revista Faro, v. 2, n. 26, 30 dez. 2017.


CORNISH, Patricia Branco. Artistas Mulheres na Ditadura Brasileira: Os casos de Wanda Pimentel e Teresinha Soares. São Paulo, 2018.


CUNHA, Maria de Fátima de. HOMENS E MULHERES NOS ANOS 1960/70: UM MODELO DEFINIDO? In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 34, p. 201-222, 2001. Editora da UFPR.


CURI, Carolina Vieira Filipini. Wanda Pimentel e Gloria Goméz-Sanchéz: novos olhares sobre as produções de extração Pop de mulheres artistas na América do Sul (1960 e 1970). In: XIV EHA - Encontro de História da Arte — UNICAMP. São Paulo, 2019.


MARQUES, Andrea Cristina. A MULHER NAS PÁGINAS DA MODERNIDADE: A REVISTA “O CRUZEIRO” E A PRODUÇÃO DA “MULHER MODERNA”. In: Anais Eletrônicos do XVI Encontro Estadual de História - ANPUH –PB. Campina Grande, 2014.


NERY, Olivia Silva. Objeto, memória e afeto: uma reflexão, In: Revista Memória em Rede, Pelotas, v.10, n.17.


SIQUEIRA, Vera Beatriz. Maldito silêncio: o canto de Wanda Pimentel. In: concinnitas, volume 01, número 24, julho de 2014.


TRIZOLI, Talita. Atravessamentos feministas: um panorama de mulheres artistas no Brasil dos anos 60/70. São Paulo, 2018.


 

Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aquie para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.


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