A Jean-Luc Godard, que, como diria Mao Zédōng, com sua faísca “incendiou toda a pradaria”
No dia 13 de setembro de 2022, faleceu um dos últimos grandes mestres do cinema ainda vivos. Com pouca margem para dúvida, o maior de seu tempo. Jean-Luc Godard repensou o cinema e se tornou parte dele em cada década na qual trabalhou. Se seu primeiro filme, Acossado, reinventava a linguagem, suas últimas obras tentavam fragmentar e analisar os pedaços que restavam de uma linguagem audiovisual tão massificada e esticada a seus limites que perdia a cada ano a sua solidez. Neste texto, porém, quero me ater sobretudo ao primeiro ponto da trajetória de Godard: quando ele inventa uma nova maneira de escrever a linguagem secreta do cinema.
Acossado tem o seu lugar merecido como uma das obras mais importantes de todos os tempos. Quando Godard o realiza, já era um dos melhores críticos da Cahiers du Cinema. Sendo também um dos grandes entendedores e amantes de cinema de seu tempo, já era possível observar em um curta como “Une Femme Coquette” que existia no Godard cineasta uma continuação do Godard crítico ao ponto de que ambos se mesclaram em textos, de maneira abstrata, estéticos, e filmes conceituais. É assim que podemos compreender como seu primeiro longa pensa o cinema tal qual Godard já fazia em seus textos, porém, no audiovisual, com uma maneira específica e completamente nova. Para pensar a linguagem, Godard precisou virá-la de cabeça para baixo e descobrir um novo ponto de partida. Ele, sobretudo, precisou virar do avesso a montagem e o olhar cinematográficos.
Um pouco de história:
A montagem é o desenvolvimento de linguagem específico do cinema, que irá unanimemente apartá-lo das outras artes (algo inegável mesmo para aqueles que a proíbem, inclusive pois tampouco é o único desenvolvimento específico da sétima arte). De primeiro momento, ela surge ainda sob a perspectiva rítmica do cinema de atrações, ou como forma de descobrir o “mundo das pequenas coisas” pelo close-up, como em The Little Doctor and The Sick Kitten (George Albert Smith, 1901) - e igualmente com a câmera sendo este “brinquedo” que desvela este pequeno mundo, como em Grandma’s Reading Glass (idem, 1900). D.W Griffith, notadamente, transmuta os primeiros experimentos de montagem em verdadeiras potências narrativas pelo seu uso dos close-ups faciais e da montagem paralela com sentido rítmico e tonal. Griffith funda o grau zero da montagem cinematográfica, erguendo os pressupostos do cinema clássico, que se torna componente elementar da superestrutura estadunidense.
Do outro lado do mundo, sob um sistema de produção que havia superado o capitalismo que definia as bases de Hollywood, os realizadores soviéticos observam os feitos de Griffith. Nomes como Kuleshov, Pudovkin e Eisenstein resolvem utilizar das técnicas sistematizadas pelo cineasta americano para transformar a montagem em potência de sentido do filme e de criação de uma arte cinematográfica socialista e revolucionária. Compreendendo o plano cinematográfico como destituído de sentido se isolado de sua inserção em uma estrutura de montagem, ou seja, pensando o plano como parte constituinte de um sistema maior, estes cineastas priorizavam a técnica cinematográfica como meio de construir associações, emoções e conceitos no espectador. Apropriaram-se da montagem griffithiana e evoluíram-na para seu cinema político, apesar de que cada um destes realizadores resguardava sua individualidade. O mais proeminente deles, Eisenstein, compreende a montagem como forma de gerar ritmo narrativo, emoções específicas no espectador pela tonalidade e atonalidade, e, em seu mais alto grau, produzir conceitos na consciência do público a partir da justaposição de duas imagens que geram uma terceira imagem mental.
Até aqui, embora tenhamos duas tendências opostas quanto à montagem cinematográfica, ambas guardam uma perspectiva de certa forma “clássica” que busca manter o espectador em seu lugar de assimilação da obra pelas imposições do corte e que enxerga um espectador que precisa ser “agradado”, seja da maneira em que o termo é mais claro (a montagem clássica de Griffith) ou na maneira eisensteiniana, em que o filme é pensado para gerar emoções e associações específicas guiando (e mesmo sacudindo, com o seu “cine-punho”) o olhar do espectador. No primeiro caso, o dos filmes de Griffith, encontramos os mais proeminentes exemplos do que Christian Metz (1972) postulou como “identificação primária” no espectador, que se trata da identificação (inconsciente) de quem assiste ao filme com o “olhar” da câmera, sendo esta a base fundamental do cinema clássico como um todo - mas em especial do hollywoodiano. No caso dos soviéticos, embora seja convidado a participar do filme de maneira muito mais ativa do que no classicismo de Hollywood, o espectador segue exposto às imposições do cineasta, sem uma consciência efetiva que o faça ser capaz de questionar e refletir antes sobre as próprias imagens que sucedem na tela e sua existência fílmica; visto que o objetivo é, primeiro, a agitação e propaganda política. Então, é possível afirmar que não há, ainda, a extinção real da passividade espectatorial que se funda com o cinema clássico.
Com o cinema moderno, em seus primórdios com o Neorrealismo Italiano e com Cidadão Kane, de alguma forma irá começar a questionar a identificação, ao negar a invisibilidade da montagem, e utilizar da profundidade de campo para erguer um discurso realista em tela, que é, ao mesmo tempo, oposto à verossimilhança psicológica do “realismo romântico” de Hollywood. Até aí, neste ponto específico da identificação, não há uma evolução tão palpável em relação ao que faziam cineastas como Vertov e Eisenstein, embora seja um passo à frente para países como a Itália e os Estados Unidos, que foram formuladores do classicismo romântico da linguagem do cinema e neste momento buscavam os limites da gramática audiovisual em direção ao realismo. Contudo, também um fator importante que constitui a identificação, muito bem desvelado por Jean-Louis Baudry (1970), que ainda se mantém nesses filmes já ditos modernos: a visão monocular perspectivista da câmera, que centra os olhos do espectador paralelamente ao ponto fixo no qual os objetos visualizados se organizam. Por isso, talvez somente seja possível enxergar a solidificação de um cinema profundamente moderno a partir da Nouvelle Vague, sobretudo com Acossado (1960), de Jean-Luc Godard.
Uma nova maneira de olhar:
Em Acossado, Godard retorce por completo a perspectiva de montagem e, logo, de olhar clássicos. Ao contrário dos realistas, utiliza ostensivamente o corte. Porém, agora, este não está mais a serviço do olhar do espectador, mas, ao contrário, surge para provocá-lo a um novo olhar cinematográfico. Seus jump cuts aleatórios, a desespacialização pela câmera instável que é submissa ao movimento incessante da edição, todas essas técnicas aparecem para desvelar a moldura da imagem e fazer pouco caso do olhar do espectador, que anteriormente na história do cinema estava principalmente centrado sob a já mencionada lógica monocular perspectivista (herdada do Renascimento). A posição privilegiada que o espectador e seu olhar ocupam diante da articulação visual da imagem foi sobretudo exposta por Baudry, que sintetiza esta percepção quando afirma: "ao focalizá-lo [o sujeito] a construção ótica cria uma realidade alucinatória" (BAUDRY, 1970). Ou seja, o aparato cinematográfico sob as bases narrativas clássicas cria uma projeção-reflexão do sujeito.
Em Acossado, talvez pela primeira vez na história do cinema com grande repercussão - depois de um ou outro momento de Homem Com Uma Câmera (Dziga Vertov, 1927) - a perspectiva monocular perde seu espaço e a posição privilegiada do espectador abandona sua razão de ser, de modo que nossos olhos podem estar tão perdidos pela imagem quanto esta é instável. Godard quer revelar que há um olhar por de trás do filme, logo, pouco importa a percepção e a identificação clássicas - pelo contrário, estas passam a ser inimigas do Cinema. O importante agora é o olhar desvelado do cineasta. Com a instabilidade de sua mise-en-scène, Godard pode libertar o espectador de fato de sua passividade.
A montagem, “inquietação” do cineasta, como está em um de seus textos, permite-o não somente escrever como também pintar sobre a tela do cinema. A partir desta primeira reflexão primordial sobre o papel da montagem e da perspectiva no filme, que está em seu primeiro longa, Godard poderá, em suas obras futuras, complexificar seu pensamento e prática para que, libertando o espectador da passividade identificativa, possa fazê-lo ativamente refletir sobre cada pedaço de filme que surge diante de seus olhos, compreender e rebater pela atitude cinematográfica espectatorial os conceitos formalmente apresentados nas obras do realizador. Ao contrário de um cinema também vividamente intelectual como o dos já citados filmes soviéticos, em que o espectador estava ali para assimilar os conceitos ideológicos que os cineastas articulavam pela montagem, no cinema de Godard aquele que assiste ao filme é convidado a participar de sua própria construção enquanto organismo vivo que só existe pela relação cineasta-espectador, em que um propõe e reflete para que, sobre esta reflexão erguida em película, o outro possa postular novos questionamentos, transformando o cinema em organismo de articulação do pensamento sobre a existência imagética bem como sobre quaisquer conceitos elaborados audiovisualmente.
Ainda que posteriormente não faça mais um uso ostensivo de jump cuts, elipses randômicas e câmera na mão com essa decupagem bastante livre como em Acossado, os filmes e experimentações de Jean-Luc Godard com a decupagem sempre seguiram atuando sob o rompimento com o que se estabeleceu na gramática da linguagem cinematográfica, ao mesmo tempo que tinha nos recursos mais clássicos do cinema o ponto de partida em sua maneira de pensar um filme. Assim, este mestre francês, para sempre imortal, deu ao espectador de cinema novos olhos. Apropriando-se de conhecimentos clássicos, reinventou-os do mesmo modo que Hokusai, artista japonês (autor da imagem acima), apropriou-se da perspectiva italiana para apresentar ao mundo uma nova maneira de observá-lo em profundidade: as montanhas estão à frente E atrás do mar, este é menor e maior que elas - o mar se eleva sobre as montanhas em uma perspectiva paradoxal.
Semelhantemente, Jean-Luc Godard revirou o olhar clássico para dar ao mundo cinematográfico os olhos necessários para que descobríssemos uma nova maneira de observar a vida em cena (e, se o cinema reproduz e suplementa a vida sob novos matizes, também uma nova forma de olhar para o mundo). Este é seu imensurável legado.
Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aqui e para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.
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