Notas sobre um pseudo-debate, ou do abismo que existe entre a mensagem e aquilo que chamamos de obra de arte.
Nestes últimos dias, surgiu um nichado debate na ingrata plataforma Twitter, agora ElonMusX ou algo assim. “Load”, apresentador do programa Desce a Letra Show (o qual eu, inclusive, acompanho e gosto), respondeu um tweet do - antes de tudo - pesquisador de arte e comunicação, GG Albuquerque:
Quero, neste texto, aproveitar a oportunidade para propor um real aprofundamento da discussão para além da bolha de 250 caracteres do Twitter. Essa que é uma discussão bastante antiga, e séria, que não pode ser resumida em “não é comunicação” ou “é comunicação e quem diz o contrário parte da ignorância”. Esse texto quer tentar ser uma faísca, um início de debate, e não um encerramento. Por isso mesmo, escolhi adotar uma abordagem mais simples e direta aos termos e temas.
Aproveito então para começar eliminando alguns erros mais frontais antes de entrar de fato no tema: ainda que alguém defenda que “arte é comunicação”, em nenhuma concepção que trabalhe com este enunciado, arte poderia ser um “meio de comunicação”, como Load determina, visto que meio é veículo - poderia-se dizer, por exemplo, que o cinema ou a fotografia são meios de comunicação (aquilo que se interpõe como ponte entre receptor e emissor da mensagem), mas a ideia de “arte” não pode em nenhum caso ser veículo, muito menos poderia sê-lo Cidadão Kane ou uma pintura de Van Gogh - estas, as obras, seriam, talvez, a mensagem; mas Marshall McLuhan já escreveu, nos anos 60, que “o meio é a mensagem”; e se eu continuar aqui, vou me aprofundar por demais nos debates teóricos que procuram definir comunicação, seus veículos e toda sua relação com emissor-mensagem-receptor, o que não é bem o objetivo desse texto.
Vamos então à definição mais eficiente e ao mesmo tempo sintética que consigo encontrar para comunicação no contexto do debate de filosofia da arte: comunicação é informação, como diz Deleuze em sua palestra transcrita como “O Ato de Criação”. Informação, filosoficamente definida por Deleuze, seria “um conjunto de palavras de ordem.” Ele continua: “Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem.” A arte não “comunica” nada porque, por maior que seja o interesse didático de uma determinada obra - e aqui falo de obras de arte; um comercial, por mais belo que seja, não é uma obra de arte, porque é meio para um fim específico fora de si mesmo -, ela não perpassa pela percepção da mesma forma que a informação veiculada nos jornais, revistas, comerciais, etc. Veja que, aqui, busco definir que o comercial é um meio de comunicação. Vejamos porque o cinema, a pintura, a literatura, a música, entre outras formas de expressão, não o são.
Primeiro, é preciso pontuar que a arte é assimilada antes na forma e posteriormente no conteúdo, antes na acepção da esfera propriamente estética e depois naquilo sobre o que se crê que fala. E eis aqui o problema: não aquilo que uma obra de fato fala, mas o que o espectador crê que ela fala, porque, partindo de uma acepção não objetiva, o resultado é que experienciar uma obra de arte só se completa na imposição da subjetividade de quem vê sobre o objeto (a obra). Nesse caso, podemos pensar num exemplo famoso da crítica de cinema. Aqui, compreendo que vou nichar o debate. Mas tentarei ser didático: o crítico e cineasta Jacques Rivette, em seu texto Da Abjeção, diz, sobre a cena final do filme Kapó (Gillo Pontecorvo, 1960), que retrata o holocausto:
“Basta ver, entretanto, em Kapò, o plano em que [a atriz Emmanuelle] Riva se suicida, jogando-se sobre o arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para, à frente reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo”.
É tentador, e fácil, afirmar que, ainda segundo Rivette, neste plano final, Gillo Pontecorvo comunica algo desprezível com sua câmera. Mas não há nada a ser comunicado aí. A questão é que Rivette assimila este encerramento de Kapó sobre a sua subjetividade, contudo, é a partir dela que ele faz uma análise perceptual dos meios conduzidos por Pontecorvo. O que significa que, claro, há elementos objetivos na percepção em arte. Mas estes elementos objetivos somente podem ser conhecidos através do estudo perceptual da subjetividade, e a isto damos o nome de Estética em filosofia. É o que se sente sobre o travelling de Pontecorvo que revela seus meios e, portanto, não há a objetividade de ordem da comunicação, da informação que se impõe sobre a assimilação do espectador.
Tampouco se pode aplicar à arte, e aqui quero nichar mais a discussão quanto ao cinema, o entendimento semiótico de “significado e significante”, caro à comunicação, como o próprio Rivette aponta no texto já mencionado. Dentre muitas razões, mas atendo-me ao tema da comunicação, a semiótica aplicada a um filme tenta compreender, pela informação, pela “linguagem”, os estímulos perceptuais que escapam à razão cotidiana, transformando-os em sistemas de associações (A é B, C é na verdade Y, nada é o que se apresenta em sua forma). São os sistemas de controle e racionalidade reduzindo a unidade perceptual de uma obra à análise, “domando a megera”, como escreveu Paulo Leminski.
Pensemos então em Tropa de Elite (José Padilha, 2007), para citar um exemplo recente como encerramento. Nele, temos a manifestação de uma ótica fascista aplicada aos meios cinematográficos de José Padilha (que pode ser fascista ou não, pouco importa). De novo, não há uma “mensagem” fascista em Tropa de Elite (os seus realizadores, ao contrário, tentam argumentar que a “mensagem” era antifascista; ou seja, pensando na ordem da comunicação, seus realizadores esqueceram a percepção envolta na assimilação estética, a primeira e principal, de um filme). A questão é que Padilha entrega a seu protagonista, Matias, o olhar sobre a realidade filmada, olhar que compartilhamos secretamente, enquanto espectadores. Ao olhar para Capitão Nascimento, a imagem fascista, Matias vê um modelo. Ao conversar conosco pelo voz em off, Capitão Nascimento aproxima-se criando uma dupla relação quase paternal: distancia-se como herói, aproxima-se como amigo confessor. Qual o resultado perceptual que se pode analisar dos meios de Padilha? Neste caso, o resultado pode ser percebido por qualquer um que viveu durante o período de lançamento de Tropa de Elite e por todos os anos seguintes. A febre com o heroísmo de Capitão Nascimento, e o Bope/Polícia Militar surgindo como os “pais” de uma nação “abandonada”.
Não há mensagem, e sem mensagem não há comunicação. Não se pensa que é, como escreveu Fernando Pessoa, mas o que se sente que é, pode de fato ser. No fim, daria para sintetizar este texto numa única citação do poeta dos poetas portugueses.
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