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Foto do escritorJúlio Oliveira

Vinil Verde (2004)

Somando medo e nostalgia, Kléber Mendonça Filho dá movimento ao estático e entrega um filme brilhante.



A memória tem, por natureza, um aspecto fragmentado, em que conseguimos nos lembrar com clareza de certas especificidades, ao mesmo tempo em que outros aspectos parecem mais distantes, nebulosos ou mesmo completamente ausentes. Isso é ainda mais acentuado com a ideia de registro: através de fotografias, vídeos e áudios, conseguimos ter uma noção mais “objetiva” de algo que se passou, mas não de forma completa. No fim, a subjetividade sempre vai construir uma textura em volta da realidade vivida e experiências futuras podem moldar o entendimento de vivências passadas. Essa relação dialética entre passado e futuro também se reflete nos ensinamentos que recebemos ao longo da vida, princípios ou fundamentos que nos acompanham mesmo quando não são necessariamente benéficos. Nesse aspecto, Kléber Mendonça Filho nos aproxima da dialética do medo que é passada de geração em geração em Vinil Verde.


Apostando no uso de fotografias acompanhadas de narração - assemelhando-se às fotonovelas -, Kléber entrega uma obra fragmentada por natureza. Ao abrir mão dos 24 frames por segundo, temos sucessões de imagens que, ainda que se conectem em algum sentido, estão distantes temporalmente umas das outras. Essa distância é potencializada pelo som contínuo, que revela mais do que as fotografias são capazes. Dessa forma, a realidade objetiva da imagem fílmica é entrelaçada pela realidade subjetiva de quem assiste, preenchendo espaços entre fragmentos e assimilando a própria noção de memória.


Esse aspecto nostálgico, inclusive, é reforçado por três elementos muito específicos da linguagem. Primeiro, temos a opção pela história narrada, nos conduzindo diretamente aos contos de fadas que nossos pais contavam-nos durante a infância. O uso do discurso indireto - o narrador diz de forma indireta o que as personagens estão conversando - dá ainda mais força à narração enquanto uma herança familiar moral. Em segundo lugar, a textura das fotografias emula de forma muito direta a qualidade das fotos que tínhamos no saudoso tempo anterior à popularização da fotografia digital. Por último, mas não menos importante, os enquadramentos pouco rigorosos nos aproximam ainda mais de um ideal doméstico e nostálgico.


Interessante que, mesmo com tudo isso, o filme não se furta do terror. Para além do próprio referencial dos contos de fadas morais - e com finais muitas vezes assustadores -, há ainda o uso da trilha sonora que, assim como a imagem, conta com uma textura contínua (como um disco de vinil, obviamente) que em determinados momentos encontra arranhões e falhas que reforçam os momentos de maior impacto dramático do filme. O que dizer então das músicas, das repetições e da cacofonia? Mesmo a aplicação do zoom também trabalha na mesma direção, dando movimento ao que é, em sua natureza, imóvel, estático.


Há muita riqueza, também, no abraço ao absurdo, ignorando qualquer ideia de realismo ou normalidade. A mãe que, mesmo perdendo seus membros pouco a pouco, continua trabalhando da mesma forma, enquanto a única transformação que ocorre é na sua relação com a filha (reforçando a ideia grega de filhos que matam os pais e assumem-se enquanto novos deuses?). Kléber Mendonça Filho não tenta explicar ou justificar seu universo; como um conto de fadas macabro, ele simplesmente é o que é.


O que mais impressiona na obra, entretanto, é que todas essas escolhas formais estão em uma consonância muito bela com os caminhos narrativos. O contraste entre fantasia e ambiência doméstica externalizam a contradição ambulante que é o conforto do lar e os males que herdamos das pessoas que nos amam (e que também acabamos passando para frente). Olhando por esse lado, o aspecto estático da fotografia pode muito bem ser encarado como um reflexo da imobilidade de certas crenças, medos e vícios, além do impulso natural da busca por movimento (daí nossa intervenção subjetiva de “preencher” o espaço que existe entre as imagens).


Seja como for, é maravilhoso ver um trabalho como Vinil Verde, que não se esconde atrás de modismos e nem tem vergonha das próprias potencialidades. Dando vazão a uma ideia genuinamente profunda, ele é um exemplo de obra formalmente expressiva e engajante, que encanta os olhos e demonstra porque o nosso cinema é um dos melhores do mundo.



 

Nota do crítico:


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:


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