Terceiro milênio (Jorge Bodanzky, 1982) - Mostra Clássicos do Cinema Brasileiro | 58° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
- Rafael Ramagem & Davi Pieri
- há 19 horas
- 5 min de leitura
Terceiro milênio (Jorge Bodanzky, 1982) - Mostra Clássicos do Cinema Brasileiro | 58° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Traçados coloniais
Por Davi Pieri
Partilha amazônica do sensível na câmera-caneta de Jorge Bodanzky.

Talvez os dois grandes méritos de Terceiro Milênio (1982), filme de Jorge Bodanzky exibido na mostra Clássicos do Cinema Brasileiro na 58º edição do Festival, sejam: ter encontrado um personagem como o senador Evandro Carreira; e conseguir capturar este personagem com o uso da câmera na mão como uma verdadeira caneta, que circunscreve e reescreve o espaço filmado a partir de sua movimentação. Nesse sentido, Terceiro Milênio em muito me remeteu à Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967): uma figura política que - embora no caso de Evandro não seja demagógico nas suas ideias como o é Porfírio Diaz (Paulo Autran), acaba sendo enquanto um demagogo da atenção - é filmada sob um olhar vacilante que busca por meio de uma confrontação visual direta com esta figura explorar as contradições entre a liderança política e o povo.
A questão desta tal "demagogia da atenção", como nomeei aqui, é importante, porque é aí que se circunscreve uma relação bastante direta entre Evandro Carreira e a personagem de Autran no filme de Glauber. Em relação ao conteúdo de suas falas, Carreira seria considerado facilmente uma figura de esquerda hoje - mais à esquerda do que a grande parte do que se chama de progressismo atualmente, representado pelas alas majoritárias do PT, PSOL, PCdoB, etc. Contudo, o senador pratica uma espécie de "demagogia da atenção" ao roubar, constantemente, o protagonismo do povo para seu protagonismo próprio, de seu projeto eleitoral a partir de sua grandiloquência e de um comportamento essencialmente paternalista perante os indígenas e madeireiros.


Assim, a câmera de Bodanzky está sempre caminhando entre: de um lado, o povo, que ganha visibilidade e voz a partir do olhar da objetiva e do aparato sonoro do filme. Do outro, este senador, homem branco que entra em contradição com o povo indígena Ticuna ao tentar propor mais soluções das quais estes manifestam estarem cansados de receber, sem mudanças reais na própria vida (pelo contrário), desde a primeira chegada dos colonizadores. É possível pensar o elemento da visibilidade no filme de Bodanzky por meio do que o filósofo francês Jacques Rancière postula contemporaneamente como "(re)partilha do sensível", ato estético-político de reorientar a visibilidade, voz e demarcação ontológica de que pessoas e grupos merecem um lugar enquanto Ser-Aí (ativos e conscientes em sua condição existencial). A partir desta reflexão, é como se som e imagem de Terceiro Milênio tentassem constantemente reorientar a partilha do sensível dada como norma - esta que isola as comunidades indígenas e o interior amazonense; porém, a figura de Evandro, contraditoriamente à sua retórica política, surge como barreira à esta reorientação, como forma de manutenção do status quo de quem pode ser visto e ouvido. Ou seja, ainda que falando da exploração dos povos indígenas, o lugar de visibilidade e voz está no homem branco "eloquente", e não nos indígenas explorados.
Ainda como Porfírio Diaz, de Terra em Transe, Evandro Carreira olha para a Amazônia como uma espécie de Eldorado possível, uma civilização utópica do "novo homem". Consciente tanto da posição estética do senador e de seu idealismo grandiloquente, o filme de Jorge Bodanzky usa das contradições entre a liderança política e o povo representado como a principal tensão subentendida em cada sequência, semelhante ao que faz Glauber Rocha (porém, este, em nível mais frontal, dentro da ficção, e direcionado ao alegórico e ao absurdo). Desta maneira, Terceiro Milênio é um excelente exemplo da estética enquanto política a partir do fenômeno que Rancière identificou como partilha do sensível, sendo, para tanto, uma espécie de pós-Terra em Transe documental, tensionando limites entre personagem ficcional e personagem real a partir de seu protagonista. Por tudo isso é, também, dos grandes documentários etnográficos do cinema brasileiro.
Essa crítica faz parte da cobertura do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Terceiro milênio (Jorge Bodanzky, 1982) - Mostra Clássicos do Cinema Brasileiro | 58° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Notas para o Terceiro Milênio
Por Rafael Ramagem
Retratos amazônicos de Jorge Bodanzky para o terceiro milênio.

Em uma das falas de Jorge Bodanzky durante a apresentação do filme, exibido na mostra de clássicos do cinema brasileiro na 58ª edição do Festival de Brasília, foi dito que o alemão Wolf Gauer, um dos diretores, havia sido picado por um mosquito nos primeiros dias de filmagem na Amazônia e hospitalizado logo em seguida, deixando Jorge Bodanzky, diretor e fotógrafo, e David Pennington, técnico de som, sozinhos na função de concluir o filme que, há pouco, havia iniciado a produção.
Filmes não se dissociam de seus contextos de produção. Fatores limitantes, como equipes reduzidas e equipamentos precários, podem definir toda a abordagem de encenação de um cineasta e, consequentemente, seu estilo. Limitação técnica nunca será parâmetro de qualidade e pode, inclusive, ser o fator enriquecedor de uma obra. Vejo que, neste filme, a existência de uma única câmera operada pelo diretor, naturalmente incapaz de gravar vários ângulos simultâneos da mesma ação, foi o que me pareceu tê-lo libertado das amarras do planejamento hierárquico de constituição de imagens. Pois, aqui, a mise en scène precisou ser construída em simultaneidade com a ação, ditada pela sensibilidade subjetiva imediata do autor e pela imprevisibilidade da vida, do gesto, do sorriso. O mesmo pode ser dito sobre o som, manipulado por Pennington, que, na pluralidade de vozes entre aldeias, rios e conferências, precisou estar mais atento ao sensível, à subjetividade da fala e aos ruídos, atuando, na verdade, como coautor da obra.
Quando Bodanzky se confronta com o olhar de jovens mulheres e os semblantes de crianças inocentes, decidindo filmá-las, como muito fez em Iracema – Uma Transa Amazônica (1975), suspendendo a imagem que ilustrava a retórica, abre-se um leque de possibilidades dialéticas. Essas quebras tensionam o discurso político, junto à poesia inerente a essas imagens e colocam em evidência um dos temas do filme: a contradição.
O “homem do terceiro milênio”, Evandro Carreira, motor da narrativa, então senador do estado do Amazonas, inimigo do extrativismo, defensor, emancipador e infantilizador dos povos indígenas é um político que, em semi-desnudez, não esconde suas politicagens frente à câmera. Por consequência, mesmo com suas particularidades, que são muitas, revela também o modus operandi de uma luta da esquerda oitentista pré-abertura que não vingou e da figura paternalista do colonizador em um mundo de efervescentes lutas decoloniais. De todo modo, não são postas em dúvida suas intenções ao vislumbrar uma Amazônia soberana, e se faz o retrato de um líder reformista que custa a existir no Brasil do terceiro milênio. Sem dúvidas, um dos mais interessantes personagens do cinema brasileiro.
A câmera de Bodanzky não procura trair os personagens nem captá-los em deslizes; estes ocorrem naturalmente. Resta aos cineastas apenas o papel de observar com suposta neutralidade, já que a verdadeira neutralidade inexiste, deixando que a contradição emerja por si.
Essa crítica faz parte da cobertura do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:
Comentários