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Shin Kamen Rider (2023) e o Ritual Cinematográfico

Em seu tokusatsu contemporâneo, Hideaki Anno diviniza o espetáculo cinematográfico a partir da ritualização dos gestos de seus heróis e vilões.



Se há um elemento em Shin Kamen Rider que todo o cinema hollywoodiano poderia assimilar é a compreensão de que por de baixo de um conteúdo temático unificador (no filme de Hideaki Anno, poderíamos dizer que é algo como a “aceitação da diferença pela confiança num outro”, ou como a imposição da ideia abstrata de felicidade é autoritária e potencialmente eugênica - algo que pode ser interessante discutir numa análise temática, não tanto numa crítica), muito citado como “essencial” nos manuais de roteiro, sempre deve haver um tema estilístico. Nesse sentido, a unidade do estilo de Shin Kamen Rider se dá pela recorrente encenação de uma ritualística no espetáculo cinematográfico: o filme é um eterno espetáculo no maior dos sentidos, uma dança teatral ininterrupta, que utiliza a ação como ponto de partida para os jogos coreografados. 


Portanto, mais do que olhar para os aspectos psicológicos-dramáticos das atuações, é fundamental perceber os atores de Shin Kamen Rider tal como os atores-bailarinos dos teatros tradicionais japoneses, como o Nō e o Kabuki, nos quais é indistinguível onde termina o trabalho dramático e onde inicia-se a dança performática; do mesmo modo ocorrem as batalhas que surgem ao longo dos “episódios” do filme. Pois este é um filme episódico, onde cada “episódio” estrutura-se primeiramente com a preparação do ritual e depois com o clímax performático deste, que se dá a partir das lutas-danças com cada um dos vilões que aparecem na trama. Estes clímax frequentemente, não ao acaso, dão-se em cenários que remetem aos mais diferentes formatos de palcos teatrais - de um clássico palco italiano a um anfiteatro como no enfrentamento contra o Aum-Morcego.


Logo, Shin Kamen Rider pensa esteticamente como um tokusatsu clássico, mas elevando suas referências a partir de uma profusão imensurável de técnicas de filmagem - POV’s, câmera na mão, câmera acoplada ao corpo dos atores, ângulos estranhos, grandes planos gerais, fragmentação das cenas em planos detalhes seguidos por elipses temporais indecorosas, entre outras. Tudo isso eleva a megalomania formal do tokusatsu a outra patamar, enquanto também bebe do que há de melhor no bom e no “mau” gosto hollywoodiano, no cinema independente, nos animes e no cinema japonês, com direito a requintes muito prazerosos de Yasujiro Ozu nos diálogos, com a câmera frontal centralizando as figuras que falam com o olhar para além da objetiva.


De alguma forma, é como se este filme de Anno conseguisse juntar o que Rogério Sganzerla falou sobre seu cinema - “não tive pudor nenhum em realizar esse ou aquele plano inclinado, tal diálogo ou situação cafajeste. Fiz questão, inclusive, de filmar como habitualmente não se deve filmar, isto é, utilizando angulações preciosistas e de mau gosto, alterando a altura da câmera, cortando displicentemente, não enquadrando direitinho, sendo acadêmico quando me interessava” - e o que Michel Mourlet definiu como espetáculo - “A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo”. Hideaki Anno passaria, provavelmente, longe de ser um cineasta admirado por Mourlet, mas utilizo das citações de duas percepções opostas de cinema para “definir” um pouco do que é Shin Kamen Rider também como forma de demonstrar o quão extenso é o leque de técnicas que compõe este tokusatsu contemporâneo. Porém, o que une esta profusão de métodos e efeitos, é, como citado ao início deste texto, primeiro a percepção do espetáculo como um ritual, mas sobretudo o enfoque em sua ritualística.


Antes, é preciso compreender o próprio ato de assistir a um filme como um ritual. Ir ao teatro, a um concerto, à ópera ou ao cinema envolve sair do conforto de casa para sentar-se num lugar estranho, rodeado por estranhos, cujo objetivo comungam pela contemplação do espetáculo. As cortinas se abrem no teatro, assim como as luzes se apagam no cinema. Sobre o ritual cinematográfico, Edgar Morin escreveu: “quando as ilusões da sombra e duplo se fundem na tela branca, em uma sala noturna, para o espectador, acomodado em seu alvéolo, mônada impermeável a tudo, exceto à tela, envolvido na dupla placenta de uma comunidade anônima e da obscuridade, quando os canais de ação são fechados, abrem-se, então, as esclusas do mito, do sonho, da magia.” Não à toa, Walter Benjamin falava sobre o “valor de culto” da obra de arte. Contemplar uma obra é cultuá-la, deixar-se ter a consciência absorvida pelo espetáculo é ritualizar-se como algo maior que si, perder-se num instante superior a quem se é antes do culto. Hideaki Anno compreende isso em sua mise-en-scène em Shin Kamen Rider, e escolhe ritualizar cada sequência de ação, apresentando seus mitos em coreografias filmadas com a câmera centralizada, de modo a apontar uma importância divina aos movimentos, gestos e ações que são realizados: colocar um capacete, erguer os braços, convidar à luta. Cada movimento que é feito antes da dança (luta) propriamente começar evidencia a performance ritualística. É aqui que os limites se diluem, pois todo ritual é uma performance, e toda a performance é em si um ritual. Shin Kamen Rider performa tudo no ecrã, das movimentações dos atores ao jorro de técnicas cinematográficas que divinizam a forma do tokusatsu.


Portanto, não é ao acaso que o filme termina diluindo as próprias consciências dos protagonistas em uma única máscara, mítica, arquetípica, que absorve a individualidade sob a figura do herói - eis aqui a real função da máscara. O ritual encerra-se aos nossos olhos em Shin Kamen Rider devolvendo aos corações de quem assiste a possibilidade de experienciar o espetáculo como possibilidade de vida, de existência ritualística supraindividual - relembrando-nos que o espetáculo cinematográfico, muito mais do que alienação ou encantamento hollywoodiano que faça esquecer o desencantamento do cotidiano, pode e deve ser matéria vital.



 

Nota do crítico:


 

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autor davi pieri

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