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Crítica | Jeanne Dielman (1975)

O importante, em arte, é exprimir. O que se exprime não tem importância.





Jeanne Dielman é, antes de tudo, a prática da busca por uma ontologia fenomenológica do cinema. A principal força do filme, antes da dilatação temporal e do naturalismo, está na eliminação de todo pressuposto da imagem em si, que não ela própria: elimina-se o psicologismo das personagens que, num cinema dramático, manifesta-se na representação de emoções sob circunstâncias imaginárias. Para isso, Chantal Akerman elimina até mesmo os resquícios de um monólogo silencioso nas personagens: em geral, é indecifrável o que se passa na cabeça de Jeanne Dielman, mesmo quando a acompanhamos por vários minutos, num único plano, tomando um café, preparando comida ou apenas parada (talvez, "pensando", quem sabe, "sentindo"). 


Seria uma radicalização do "modelo" bressoniano, se tanto Akerman quanto Bresson não viessem de uma mesma tradição. Uma que se inicia no fim do século 19, e que antes de ganhar qualquer nome (isto é, ser categorizada, no sentido contrário da fenomenologia, que primeiro vive, captando os dados imediatos do objeto) era apenas um grupo de lavadeiras num rio observadas por um trio de homens. A gênese política de Akerman, como a gênese dramática de Bresson, é o cinematógrafo fundado pelos Lumière.


Formalmente, Akerman cria uma sinfonia dos dados imediatos captados por seu "cinematógrafo": sons puramente diegéticos, sem trilha sonora; sem atores, nem psicologismos; sem truques sobre a cena (se não aqueles gerados pela manipulação do tempo através do cinematógrafo, na dilatação do plano ou nas elipses temporais). Tudo isso leva a um filme, essencialmente, livre da "interpretação" - aquela que Sontag combateu. Porque em Jeanne Dielman, como em L'Argent, assim como na saída de operários de uma fábrica, muito pouco (quando não nada) nos é dado pela palavra; tudo se desvela na ação, dimensão básica e essencial do cinematógrafo (o "fato", como nomeado por Bazin).


São, especialmente, dois momentos que realmente revelam algo sobre uma psique, percepções e sentimentos das personagens para além de uma imediaticidade naturalista (à la Tchekhov) das ações: as duas conversas que Jeanne tem com seu filho antes de dormir. Nestas. Akerman também encena demonstrar o que pensa sobre a condição de sua personagem; pensamento que só será de fato desvelado ao fim do filme, quando o esticamento do tédio e da rotina pesarosa chega a um desgaste insustentável, culminando no absurdo.


Todas as interpretações sobre Jeanne Dielman - um filme sobre a vida de uma mãe proletária com acúmulo de funções, precarizada e prostituída; uma jornada existencial sobre o 'eterno retorno' da rotina; etc. etc. surgem na relação fenomenológica noesis e noema, i.e. estabelecida entre a consciência do espectador e sua consciência sobre o filme. Isto pelas possibilidades que Akerman determina a partir da redução de sua obra aos dados imediatos do "cinematógrafo". Para isto, Chantal reorienta também o olhar e a sensibilidade do espectador (como Bresson faz em vários de seus filmes ao criar um "estado meditativo" por sua forma austera), tanto pelo esticamento do plano e pela representação da ação em sua completude e em seu naturalismo temporal quanto pela redução da composição a cores e esquemas que unificam os espaços da casa.


Quando tudo o que se manifesta no "conteúdo" das imagens esgota-se nos planos fixos de longa duração, o que sobra à sensibilidade e ao conhecimento do espectador é a percepção da forma, que vai se tornando patente ao olhar. De modo que passamos a notar cada escasso corte e cada pequena mudança de enquadramento, em busca do que olhar; de forma que Jeanne Dielman é destes raros filmes que nos ensinam a ver e ouvir mais.


O que se vê e se ouve, para além do que se expressa nos planos frontais de Chantal Akerman, cabe à significação dada à posteriori pelo espectador. 




Nota do crítico:


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