André Novais antropofagiza a estética e a filosofia transcendental do cinema de Yasujiro Ozu sob a aparente realidade banal de um trabalhador de Belo Horizonte.
No meu primeiro texto sobre o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no qual falei sobre No Céu da Pátria Nesse Instante, documentário que abriu a Mostra Competitiva, eu reclamei de um certo “bom-comportamento” que o filme adota na mesma direção de muitas outras recentes obras frontalmente políticas, especialmente abordando o bolsonarismo no nosso país. Reconheço que posso ter incorrido no erro de fazer parecer que o cinema brasileiro precisava ser como preconizava Glauber sobre o Cinema Novo (“filmes feios e tristes, (...) gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto”). Me referia, contudo, ao meu incômodo particular com filmes tão diretamente políticos mas que não assumem qualquer mínima radicalidade que aproxime ao discurso sua forma. Digo isso porque é evidente que o cinema brasileiro não precisa ser nada; e nas particularidades de suas obras pode ser tudo - isso devemos à nossa antropofagia estética, como dito no Manifesto redigido por Oswald de Andrade. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Isso é o que também nos mostra a mais recente produção da Filmes de Plástico - O Dia Que Te Conheci, de André Novais Oliveira.
O filme narra a depressão, a demissão e o apaixonar de Zeca (Renato Novaes), um trabalhador comum de Belo Horizonte, sendo estruturado em três batidas narrativas principais a partir destes momentos, sempre sob uma veia cômica e leve, que consegue sentir o peso da situação psicológica e social do protagonista sem transformar o filme num espetáculo de piedade. Na verdade, a comicidade é a base da veia crítica e política do filme, desde o desvelar da condição psíquica da classe trabalhadora no capitalismo tardio - morando longe do trabalho, pegando transporte público precarizado e precisando lidar com o adoecimento psíquico-emocional proporcionado por esta mesma condição. Todas as situações que retratam esta realidade ocorrem majoritariamente pelo humor, pelos desencontros cômicos, num muito bem trabalhado castigat ridendo mores. Contudo, embora aparentemente bastante simples, o filme não se mantém numa mesma chave de lógica narrativa. Em cada uma das três batidas principais, há uma mudança significativa. Enquanto a primeira parte nos apresenta uma aparente construção estereotípica do “preguiçoso”, progressivamente nos é revelado um homem em profunda contradição entre sua inocência, jovialidade, e a dificuldade de administrar a própria realidade enquanto classe trabalhadora sob a condição de adoecimento psíquico. Essa elaboração conclui-se na segunda parte, até que na terceira - enfim a paixão -, descobrimos que apesar de todas as medicações e soluções modernizadas para os adoecimentos da alma, um simples encontro verdadeiro é o verdadeiro elixir de cura: na fuga do trabalho, divisor inflexível dos seres coletivos em salas/mesas/funções, Zeca e sua colega, Luisa (Grace Passô), que antes mal se viam embora compartilhassem diariamente o mesmo espaço profissional, podem vivenciar a cura somente proporcionada pelo encontro sensível - numa cerveja, numa conversa, na cama.
Estilisticamente, o que sustenta a substância narrativa do filme é talvez uma das ou a maior referência do diretor André Novais: Yasujiro Ozu. Aqui reside a antropofagia estética, sobre a qual inicio refletindo neste texto. Ozu era chamado de “o mais japonês dos clássicos japoneses”, sobretudo porque seus filmes se empenhavam na direção de captar realidades particularmente tradicionais do Japão, presentes desde as ações em si, as personagens, a arquitetura dos espaços e a mise-en-scène e direção de arte, até a filosofia meditativa que guiava a decupagem dos seus filmes. André Novais saboreia esta filosofia ozuniana, e traz elementos chave da estilística do diretor japonês sob sua própria subjetividade e realidade no Brasil e, mais particularmente, em Minas Gerais. Os elementos que compõem os planos de O Dia Que Te Conheci trabalham semelhantemente às composições de um filme como Era Uma Vez em Tóquio (Yasujiro Ozu, 1953), em que a câmera está posicionada nos ângulos de altura e direção precisos para criar um quadro em profundidade, que capta vários elementos do cenário enquanto permite que o movimento se estabeleça a partir dos atores na mise-en-scène, com pouquíssimos cortes. Os objetos que compõem a cena nos planos majoritariamente abertos do filme criam linhas na composição que fazem o filme parecer uma moldura fechada, imageticamente, enquanto narrativamente a sensação é de que seria possível desligar a câmera e encerrar o filme que a vida das personagens seguiria se desenrolando - igualmente ozuniano, eu diria, é este preciso equilíbrio entre o controle e o acaso, o clássico e o moderno, como já foi teorizado por Mark Cousins em relação ao cineasta japonês. Contudo, estas imagens-moldura construídas pelos objetos de cena e pela arquitetura dos espaços se faz, em Novais, a partir de elementos que sintetizam muito do que é a imagem-performance ou imagem-representação de Brasil. Ou seja, Novais sintetiza na direção de arte de seu filme o que há de mais brasileiro a partir de referências estilísticas do diretor “mais japonês”.
Portanto, a presença dos filmes de Ozu aqui não se dá no território da mera citação - o diretor André Novais antropofagiza a filosofia estética de Ozu e a digere como método estilístico. Isso se reflete, além do já citado, numa maneira maior de pensar a representação cinematográfica, que diz: “tudo importa. Tudo é filme.” Se o que cura é a fuga da rotina do trabalho, o encontro verdadeiro, não há pedaço descartável deste encontro. Assim, os planos longos mais abertos - em sua maioria planos de conjunto - estão sempre enfatizando a relação entre as personagens na ação filmada. Disso, surge o que considero a maior potência do filme (entre tantas): a integração da fragilidade do real na mise-en-scène. Porque há de se reconhecer que o trabalho de Renato Novaes e Grace Passô é lindo e cativante, mas nos longos diálogos que são encenados e reencenados, é possível perceber momentos tanto de fragilidade da elaboração das falas em si quanto dos atores - sobretudo de Renato, que não é um ator de formação e nisso carrega todas as qualidades dos atores “sem técnica”, sendo capaz de alcançar e nos conectar com o coração da personagem com mais sinceridade do que muitos ditos profissionais; porém, é possível perceber momentos de perda de ritmo, de falas com cara de texto decorado, e no geral de um “amadorismo” na interpretação. Mas nada disso é um defeito. “Amadorismo” está aqui como quem ama, porque o que estes momentos nos revelam é que muito mais do que o encontro entre estes dois personagens, O Dia Que Te Conheci é o encontro de nós, espectadores, com o amor, paixão e desejo que existe entre estes personagens, entre os atores, entre o diretor e os demais realizadores consigo e com a arte cinematográfica. Torna-se, aí, uma espécie de meta-filme que nos lembra o valor do independente e do artesanal enquanto eterna construção de um caminho, de um esforço, e não de um resultado - que pouco importa. Não à toa o filme, como já mencionei, soa como se pudesse acabar a qualquer momento sem grandes perdas - porque sua maior potência reside no caminho, nas tentativas e erros.
Entretanto, que não pareça aqui que estou afirmando que o filme é realizado, pensado, filmado ou atuado de maneira banalizada - acredito que o texto como um todo demonstra que está longe disso. Até mesmo existe um trabalho muito sofisticado de quem detém o olhar durante os vários diálogos entre Zeca e Luísa que cria uma dinamicidade fundamental para estes momentos do filme: as cenas se alternam entre uma câmera predominantemente objetiva, que narra a ação (é a câmera que prevalece nas composições que em muito se assemelha ao cinema de Ozu); e uma câmera quase subjetiva, voyeurística, que espia a ação - essa é a câmera predominante nas cenas de diálogos entre as personagens dentro do carro.
O fato é que O Dia Que Te Conheci, embora aparentemente simples, encontra muito de sua potência ao não se assumir como uma única coisa, dançando por suas contradições, piadas, críticas e forma, em um diálogo aberto entre Renato, Grace (e suas personagens), André e nós, que os vemos e ouvimos a uma posição segura. É a inocência dessa belíssima obra de André Novais Oliveira pela Filmes de Plástico, carregada por uma verdadeira paixão e sofisticação no uso da linguagem cinematográfica a partir de referências estilísticas trabalhadas sob um método muito eficiente, que faz deste um dos melhores lançamentos do cinema nacional que pude assistir nos últimos tempos.
Essa crítica faz parte da cobertura do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Nota da crítica:
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