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Crítica | Jurado Nº 2 (2024), de Clint Eastwood

Foto do escritor: Rodrigo HeberRodrigo Heber

Entre a imparcialidade divina e as parcialidades humanas, Clint Eastwood explora as angústias de um dilema ético.



Nos créditos iniciais de Jurado Nº 2 (2024, Clint Eastwood) vemos um desenho da Justiça, a deusa que empunha a balança e a espada, de olhos vendados. Então, a tela se escurece e um fade nos leva à primeira cena do filme: a câmera começa fechada no rosto de uma mulher, que caminha de olhos vendados. Em seguida, entendemos o contexto: ela é uma grávida sendo guiada pelo marido até o quarto que ele decorou para a filha deles, que está a poucos dias de nascer. O marido é o protagonista do filme, Justin (Nicholas Hoult), um ex-alcóolatra; a esposa é Allison (Zoey Deutch), uma professora de ensino fundamental. Justin relata, em certa cena, que os dois se conheceram numa época em que ele fingia ter parado de beber, mas Allison detectou suas mentiras e o fez melhorar, abandonar a bebida e formar uma família. Ele a exalta como uma pessoa perceptiva e virtuosa, e ela realmente parece ser uma das personagens mais espertas do filme, que é cheio de personagens espertas. Entretanto, o enredo gira em torno de um segredo terrível de seu marido e demora muito para ela sequer desconfiar de qualquer coisa. E, mesmo quando a situação desse segredo muda, sua atitude geral permanece a mesma.


Se a venda sobre os olhos mitológicos da Justiça tradicionalmente representa imparcialidade, a venda sobre os olhos humanos de Allison parece representar o oposto. Com esse par de imagens iniciais, Clint Eastwood sugere a dualidade que permeia o filme: enquanto somos assombrados pela essência eterna da Justiça divina, conhecemos apenas a existência terrena da justiça humana. O que para Deus é imparcialidade, para nós é parcialidade.


Na primeira cena, partindo do plano fechado no rosto de Allison, a câmera se movimenta com os atores até um plano geral dela e Justin à porta do quarto. Quando ele tira a venda de sua esposa, o diretor corta para uma câmera subjetiva dela, que aprecia a decoração. Como em outros de seus filmes, Eastwood elege claramente um protagonista, mas não se atrela definitivamente ao seu ponto de vista. Ele compõe um mural de múltiplas subjetividades que se unem por um fio de objetividade clássica. Assim, o diretor nos dá uma visão privilegiada da narrativa, que pertence a várias personagens e a nenhuma particularmente — porque “a coisa terrível sobre a vida é que todo mundo tem suas razões”, como lamentou um personagem de Jean Renoir. Seu interesse está sempre na relação externa de universos internos: em como as razões e as paixões de uma personagem afetam seu comportamento, e como este afeta o comportamento alheio, que também é motivado por razões e paixões próprias.


Em Jurado Nº 2, este fundamento psicológico do cinema de Eastwood é colocado em primeiro plano: suas personagens principais sofrem justamente por possuírem motivações muito particulares. É um filme sobre dilemas éticos, porque a imparcialidade da Justiça eterna se digladia com as parcialidades dos indivíduos.


Nosso protagonista foi convocado para o júri de um caso de homicídio. Enquanto ouve o relato, ele percebe que esteve no local do crime no mesmo dia e horário. Sentado no banco do júri, Justin se convence de que acidentalmente foi ele o culpado por aquela morte, o que leva sua consciência a se dividir entre o dever de salvar um homem inocente da prisão perpétua e o instinto de se poupar da punição.


Assim que o júri se reúne para deliberar, numa cena que remete ao início de Doze Homens e uma Sentença (1957, Sidney Lumet), todos votam pela culpa do réu, exceto Justin, que diz não ter certeza. Cada um daqueles votos, como o filme revela, está carregado de parcialidade. Alguns jurados anunciam suas motivações de imediato: um precisa voltar ao trabalho, outro tem que cuidar de seus filhos. Outros, como o jurado interpretado por Drew Scheid, nem precisam se pronunciar: sua postura grita indiferença. Daí se revela uma forma generalizada de parcialidade no cotidiano político: a indolência. Todos os atores do caso estão no piloto automático, transformando seus afazeres cotidianos e seus prazeres fugidios em justificativas para o mau cumprimento de seus deveres. Por exemplo, o legista do caso, ao que tudo indica, não fez seu trabalho com muito esmero porque já tinha feito outras cinco autópsias no mesmo dia. Como os jurados, ele só queria ir para casa. O mesmo se aplica aos policiais, que já sabiam quem iriam acusar quando colheram o depoimento de uma das testemunhas, eles só queriam confirmar. E a testemunha, um senhor de idade, assume ingenuamente a razão de sua parcialidade: ele se sentiu útil novamente, se agradou de prestar depoimento sobre algo que não viu com muita clareza e do qual não tinha tanta certeza assim.


Toni Collette interpreta magistralmente Faith, a advogada de acusação e candidata à promotoria pública. Ela é introduzida enquanto fala ao telefone, provavelmente com sua assessora, que diz que sua eleição depende da vitória nesse caso — e aí está o seu interesse pessoal. Ela é uma política em época de campanha, que prioriza as boas aparências e os discursos altruísticos. Quando ela não está se pronunciando eloquentemente, ela está com os olhos vidrados na tela do celular ou do computador. Quando ela para para apenas ouvir, ela masca chiclete. Seu piloto automático se ligou há tanto tempo no falatório judicial e na campanha política que esse jeito meio ensimesmado projeta marcas em sua personalidade mais profunda. Faith diz acreditar que “Justiça é Verdade em ação”, mas é uma crença intelectual, meramente discursiva; sua vida prática não se move por esse tipo de crença.


Em determinada cena, Harold (J. K. Simmons) — um jurado que, exercendo sua parcialidade, foi investigar o crime por conta própria e acabou expulso do julgamento — tenta convencer Faith de que o caso está todo errado e que as investigações precisam ser retomadas, mas ela está no piloto automático e a barreira que sua atitude levanta entre eles é perceptível. Em determinado ponto, depois de soltar duas ou três frases prontas, ela simplesmente se concentra no celular e passa a ignorar Harold. O compromisso com a parcialidade que os advogados precisam ter (senão eles não trabalham), o cultivo das boas aparências e, principalmente, seu interesse pessoal pela vitória política quase impediram Faith de olhar para o que é realmente justo. Aquela indolência generalizada anestesia o senso crítico sem nem avisar. Mas a consciência de Faith é cutucada lá no fundo e, quando Harold vira as costas, ela para de mexer no celular e se põe a pensar — e aqui começa o seu dilema ético.


As coisas se complicam muito a partir daí. Em certo ponto, Justin parece apenas estar procurando alguma justificativa ética para sair ileso e não se ver como um monstro pro resto da vida, mas a melhor justificativa que surge é uma via de mão dupla, porque parte da premissa de que as pessoas não podem mudar: o réu cometeu crimes antes, então ele provavelmente cometeu esse e, mesmo se não tiver cometido, é melhor que seja preso, porque poderá cometer mais algum no futuro, caso continue solto. No entanto, Justin tem seu próprio testemunho contra essa premissa: ele era um alcoólatra inveterado que mudou completamente. As pessoas mudam e, se ele aderir a esse argumento para se salvar, ele estará faltando com a verdade não apenas em relação ao caso, mas em relação à sua própria história de vida.


Quando o tabuleiro todo se apresenta, fica claro que nenhuma resolução possível será perfeitamente ética. Esse impasse interessa muito a Eastwood porque ele é um cético político, que não vê resoluções satisfatórias para qualquer dilema complexo. Tudo é contingencial e, mesmo que a ordem política se mantenha sã, ela sempre se baseia num desarranjo fundamental, típico da condição humana. Não há caminho para um mundo melhor, apenas meios de se manter um mundo suportável. Seu ponto de partida, bastante conservador, se ancora historicamente no argumento de David Hume segundo o qual as pessoas não acreditam em coisa alguma por razões lógicas e princípios racionais; pelo contrário, todos agem pela força do hábito, apenas crendo que as coisas serão como geralmente foram. Segundo o próprio Hume, o papel que o hábito cumpre leva a consequências muito negativas, como a tendência de se presumir certezas eternas onde existem apenas fortes impressões subjetivas. Contudo, a aplicação política da teoria epistemológica humeana não se baseia na exaltação do hábito, mas na consciência de que o ser humano não pode agir segundo teorias e ideais, mas apenas pela força do hábito, que é nosso motor desde sempre.


Essa interpretação da realidade (que mais descreve do que prescreve) explica o interesse de Eastwood pela tensão entre deveres e interesses pessoais, porque ainda que ele acredite piamente na necessidade dos deveres para a manutenção e a valorização da vida em sociedade, ele não acredita que as crenças racionais efetivamente determinam o comportamento humano — apenas as crenças adquiridas pelo hábito tem esse poder. Para Eastwood, as parcialidades não são parasitas do comportamento humano, mas a própria essência dele. Se Justin, Faith, Allison, Harold ou quaisquer personagens de Jurado Nº 2 fossem imparciais quanto às suas situações, eles não representariam seres humanos, mas a própria Justiça, com a venda da imparcialidade sobre seus olhos. Até a consciência que eles têm dos deveres, da Verdade e da Justiça se resumem em parcialidades, que só impactam verdadeiramente o comportamento na medida em que o hábito as força (e não é segredo para ninguém que o cinema de Eastwood retrata a ordem política como independente da virtude).


A conclusão de que as instituições tradicionais vivem com base em mentiras e parcialidades não reflete uma tendência revolucionária por parte do cineasta, mas deriva de sua crença de que os vínculos políticos derivam de vínculos pré-políticos e de que a imparcialidade é incompatível com a natureza humana — seja isso bom ou mau. Por essa razão, seus filmes não são sobre questões internas ou externas, mas sobre as duas ao mesmo tempo. Porque ninguém consegue contemplar o mundo sem certas parcialidades, mas Eastwood jamais conseguiria abrir mão de sua consciência desses fenômenos humanos e, ingenuamente, abraçar uma parcialidade como definidora de toda a sua visão de mundo.


Deste modo, o próprio Eastwood está num dilema, porque, sendo humano, ele jamais obterá certeza sobre verdades objetivas, mas também nunca encontrará satisfação em ver o mundo apenas parcialmente. Sua mise-en-scène organiza este impasse, o direciona e o harmoniza, ainda que não o resolva plenamente. Ela faz isso, por exemplo, juntando subjetividade num único fio de objetividade (ou algo parecido que se obtém na busca pela objetividade). Seu cinema também se divide entre o espetáculo apelativo e a contemplação desinteressada, veja como prova disso que ele fez uma das maiores revisões de um gênero cinematográfico com Os Imperdoáveis (que nunca deixou de ser filme de gênero, com seus devidos apelos, mas que lança a atenção do espectador para muito além do apelo e de qualquer questão mundana). Ele também se divide entre montagem e continuidade, entre formalismo e realismo, entre feeria e documentário. Seus filmes tratam dos seus temas com convicção e rigor, mas nunca sem a humildade e a postura semi-ensaística de quem sabe da fraqueza de toda forma de esforço humano e está contente em apenas formular sua limitada compreensão aqui e ali. Sem desfazer as ambiguidades do mundo, ele as representa; sem desfazer as suas próprias ambiguidades, ele as elabora esteticamente. Tudo isso porque Eastwood sabe que, nas palavras de Bazin, “antes de ser condenável, o mundo simplesmente é mundo”. Como nossos olhos são parciais, a prudência exige que não tomemos o luxo de julgar o mundo como se fossemos deuses.


Mas mesmo essa interpretação do mundo, que denuncia e abraça as parcialidades ao mesmo tempo, é extremamente parcial. Eastwood não nega isso com o seu cinema, pelo contrário. Em todos os extremos em que seu cinema se divide, Clint tem uma preferência por aquilo que lhe dará uma visão ampla dos espaços físicos, porque ele prefere descobrir o invisível pela contemplação do visível, como John Ford, ao invés de projetar o invisível sobre o visível, como Alfred Hitchcock. Mesmo assim, ele flerta com o método oposto em todos os seus filmes, porque a realidade é complexa demais para se tomar partido definitivamente.

O cinema de Eastwood é uma apresentação e elaboração básica dos dilemas que afligem tantos quantos se dignaram a agir num mundo em que só se pode ver parcialmente. É difícil fazer qualquer coisa quando se tem consciência do emaranhado ético em que se vive, mas é impossível não fazer algo.


Ao fim, tudo o que resta para Justin e Faith é olharem um para o outro, sabendo do abismo que há entre suas ações e “a Verdade em ação”. Não há justificativa racional que abrande a dor de um conflito interno, porque a ética que importa é sempre a prática.




 

Nota do crítico:

 

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