Raphael Montes e a documentação literária de um terror sobrenatural
Susan Sontag certa vez disse: “toda arte pode ser tratada como uma modalidade de prova, (...) uma tentativa de ser indiscutível quanto às ações que representa.” Há uma diferença entre prova e análise, fundamental para a autora, que define dessa forma: “a prova estabelece que algo ocorreu. A análise mostra por que ocorreu”. “O Vilarejo”, obra do escritor brasileiro de horror Raphael Montes, é uma declaração de exatidão, um livro de fantasia que está devotado à prova; e encontra nisso matéria-prima para seu terror.
“O Vilarejo” inicia-se com um dos prefácios mais interessantes da literatura de ficção: o autor conta que recebeu do sócio de um sebo escritos em uma língua morta - o cimério - de uma senhora chamada Elfrida Pimminstoffer. Raphael conseguiu traduzir os textos, e descobriu neles sete histórias aterrorizantes que relacionavam-se, cada uma, com um demônio e o respectivo pecado capital que ele invoca: Asmodeus (luxúria), Belzebu (gula), Mammon (ganância), Belphegor (preguiça), Satan (ira), Leviathan (inveja) e Lúcifer (soberba). Ao traduzi-los, ordená-los e adaptá-los, Raphael Montes criou não apenas uma coletânea de contos, mas um romance de gelar a espinha, já que todos os contos resultam em uma conclusão que une todos em uma única história muito especial. A mulher que seria a autora original dos escritos, ao que tudo indica, pertencia a um vilarejo que sumiu do mapa. Os contos do livro vão revelar que, na história escrita por ela, o vilarejo também desaparece, por meios sobrenaturais. Muito mais do que tratar como coincidência ou imaginação, Raphael Montes fará o esforço de nos fazer acreditar na veracidade dessas histórias, como um retrato autobiográfico do local onde Elfrida viveu. Raphael demonstra, em seu esforço, que talvez uma das coisas mais importantes para um escritor de fantasia seja sua capacidade de persuasão.
Cada um dos sete contos é marcado por uma crueldade extasiante, como Raphael afirma no prefácio. As histórias soam como frias, mais precisamente inabaláveis, diante dos horrores que se desenrolam em cada conto, pois parecem, de fato, relatórios de eventos que verdadeiramente ocorreram no vilarejo. Não há uma tentativa direta de apelar à empatia do leitor com artifícios sentimentais, pois existe uma neutralidade assustadora por trás da narração de Raphael, a partir do que conta Elfrida. Tal neutralidade, como num relatório, constrói uma dialética fundamental para o livro: de um lado, temos o caráter fantasioso, sobrenatural, das histórias. De outro, temos elementos o suficiente, tanto estilísticos quanto de conteúdo (quanto ao segundo, podemos pensar nas semelhanças entre a vida real de Elfrida e o que ela escreve nos contos), para que enxerguemos a obra como uma prova do desaparecimento do vilarejo.
É necessário, aqui, entender que não estou afirmando que o que se conta em “O Vilarejo” é realidade. Não, estou tentando explorar essa característica essencial da arte como modalidade de prova (tal qual disse Sontag), que é intrinsecamente relacionada à natureza da narrativa: toda narrativa é uma mentira, mas que, em sua dualidade, é também sua própria verdade. O fato é que a narrativa de “O Vilarejo” é tão bem construída em torno de elementos reais que desafia a própria distinção entre realidade e ficção. A realidade é não mais que uma narrativa; a ficção é uma forma mais interessante de se compreender a verdade - a arte é a prova definitiva de que imaginação e vida caminham sob uma linha mais tênue do que imaginamos.
Tudo isso me lembra de um dos contos do livro: “Leviathan - As irmãs Vália, Velma e Vonda”. Este trata do pecado da inveja, e conta a história de duas irmãs gêmeas (Velma e Vonda) que divertem-se com sua amiga, Jekaterina, escrevendo histórias imaginárias sobre as pessoas do vilarejo, enquanto sua irmã mais velha (Vália) vigia-as com o namorado. A protagonista do conto, Vonda, tem o sonho de ser escritora, mas sente-se apagada por suas irmãs: a mais velha é muito bonita e tem idade para namorar o garoto mais interessante da vila; quanto à Velma, Vonda considera-a melhor escritora - e também mais extrovertida e atraente. Além disso, um ponto é importante de ser ressaltado: Vonda tem uma mancha vermelha no rosto que muito a incomoda. Mas o que há de mais intrigante neste conto é como a atividade das meninas de criar histórias é um desafio ao que se chama de “verdade”, pois suas imaginações trabalham para inventar e ao mesmo tempo acreditar em histórias que misturam vida e ficção, fato e narrativa. É exatamente isso o que Elfrida Pimminstoffer faz (apresentado para nós sob a caneta de Raphael Montes, que é tanto o tradutor como o narrador de facto dessas histórias).
Isso tudo é potencializado pelo posfácio do livro: nele, Raphael conta que, perguntando à bisneta de Elfrida sobre a história da mulher, descobriu que ela viveu na região da Ciméria e que passou os últimos treze anos de vida acamada, vivendo com delírios e pesadelos fortíssimos, no Brasil (após mudar de nome). Pediu à menina uma foto de Elfrida. Vou, assim como ele, colocar aqui a foto recebida:
Elfrida carrega a mesma mancha vermelha que a menina Vonda do conto “Leviathan”. Vonda foi a única a sobreviver no vilarejo, pois foi embora antes que ele fosse tomado pelas pragas que o destruíram (as pragas, nos contos, são resultantes de obras do demônio a partir dos pecados capitais, cometidos e abraçados pelos moradores da vila). Apenas Elfrida (ou seria Vonda?) sobrou para contar a história. O horror, a agonia e o medo em “O Vilarejo”, de Raphael Montes, surgem dessa linha fina e misteriosa que separa, de forma translúcida, realidade e ficção. Os mistérios do sobrenatural desafiam nosso ceticismo nesta obra-prima do terror nacional.
Nota do crítico:
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